— Mas você não diz nada, nada? perguntou Virgília, parando diante de mim.
— Que hei de dizer? Já expliquei tudo; você teima em zangar-se; que hei de dizer? Sabe que me parece? Parece-me que você está enfastiada, que se aborrece, que quer acabar...
— Justamente!
Foi dali pôr o chapéu, com a mão trêmula, raivosa... — Adeus, D.
Plácida, bradou ela para dentro. Depois foi até à porta, correu o fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura. — Está bom, está bom, disselhe. Virgília ainda forcejou por sair. Eu retive-a, pedi-lhe que ficasse, que esquecesse; ela afastou-se da porta e foi cair no canapé. Sentei-me ao pé dela, disse-lhe muitas coisas meigas, outras humildes, outras graciosas. Não afirmo se os nossos lábios chegaram à distância de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria controversa. Lembra-me, sim, que na agitação caiu um brinco de Virgília, que eu inclinei-me a apanhá-lo, e que a mosca de há pouco trepou ao brinco, levando sempre a formiga no pé. Então eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso século, pus na palma da mão aquele casal de mortificados; calculei toda a distância que ia da minha mão ao planeta Saturno, e perguntei a mim mesmo que interesse podia haver num episódio tão mofino. Se concluis daí que eu era um bárbaro, enganas-te, porque eu pedi um grampo a Virgília, a fim de separar os dois insetos; mas a mosca farejou a minha intenção, abriu as asas e foi-se embora. Pobre mosca! pobre formiga!
E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escritura.
CAPÍTULO CIV / ERA ELE!
Restituí o grampo a Virgília, que o repregou nos cabelos, e preparou-se para sair. Era tarde; tinham dado três horas. Tudo estava
esquecido e perdoado. D. Plácida, que espreitava a ocasião idônea para a saída, fecha subitamente a janela e exclama:
— Virgem Nossa Senhora! aí vem o marido de Iaiá!
O momento de terror foi curto, mas completo. Virgília fez-se da cor das rendas do vestido, correu até a porta da alcova; D. Plácida, que fechara a rótula, queria fechar também a porta de dentro; eu dispus-me a esperar o Lobo Neves. Esse curto instante passou. Virgília tornou a si, empurrou-me para a alcova, disse a D. Plácida que voltasse à janela; a confidente obedeceu.
Era ele. D. Plácida abriu-lhe a porta com muitas exclamações de pasmo: — O senhor por aqui! honrando a casa de sua velha! Entre, faça favor. Adivinhe quem está cá... Não tem que adivinhar, não veio por outra coisa... Apareça, Iaiá.
Virgília, que estava a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os pelo buraco da fechadura. O Lobo Neves entrou lentamente, pálido, frio, quieto, sem explosão, sem arrebatamento, e circulou um olhar em volta da sala.
— Que é isto? exclamou Virgília. Você por aqui?
— Ia passando, vi D. Plácida à janela, e vim cumprimentá-la.
— Muito obrigada, acudiu esta. E digam que as velhas não valem alguma coisa... Olhai, gentes! Iaiá parece estar com ciúmes. E
acariciando-a muito: — Este anjinho é que nunca se esqueceu da velha Plácida. Coitadinha! é mesmo a cara da mãe... Sente-se, senhor doutor...
— Não me demoro.
— Você vai para casa? disse Virgília. Vamos juntos.
— Vou.
— Dê cá o meu chapéu, D. Plácida.
— Está aqui.
D. Plácida foi buscar um espelho, abriu-o diante dela. Virgília punha o chapéu, atava as fitas, arranjava os cabelos, falando ao marido, que não respondia nada. A nossa boa velha tagarelava demais; era um modo de disfarçar as tremuras do corpo. Virgília, dominado o primeiro instante, tornara à posse de si mesma.
— Pronta! disse ela. Adeus, D. Plácida; não se esqueça de aparecer, ouviu? A outra prometeu que sim, e abriu-lhes a porta.
CAPÍTULO CV / EQUIVALÊNCIA DAS JANELAS
D. Plácida fechou a porta e caiu numa cadeira. Eu deixei imediatamente a alcova, e dei dois passos para sair à rua, com o fim de arrancar Virgília ao marido; foi o que disse, e em bem que o disse, porque D. Plácida deteve-me por um braço. Tempo houve em que cheguei a supor que não dissera aquilo senão para que ela me detivesse; mas a simples reflexão basta para mostrar que, depois dos dez minutos da alcova, o gesto mais genuíno e cordial não podia ser senão esse. E isto por aquela famosa lei da equivalência das janelas, que eu tive a satisfação de descobrir e formular, no capítulo LI. Era preciso arejar a consciência. A alcova foi uma janela fechada; eu abri outra com o gesto de sair, e respirei.
CAPÍTULO CVI / JOGO PERIGOSO
Respirei e sentei-me. D. Plácida atroava a sala com exclamações e lástimas. Eu ouvia, sem lhe dizer coisa nenhuma; refletia comigo se não era melhor ter fechado Virgília na alcova e ficado na sala; mas adverti logo que seria pior; confirmaria a suspeita, chegaria o fogo à pólvora, e uma cena de sangue... Foi muito melhor assim. Mas depois? que ia acontecer em casa de Virgília? matá-la-ia o marido?
espancá-la-ia? encerrá-la-ia? expulsá-la-ia? Estas interrogações percorriam lentamente o meu cérebro, como os pontinhos e vírgulas escuras percorrem o campo visual dos olhos enfermos ou cansados.
Iam e vinham, com o seu aspecto seco e trágico, e eu não podia agarrar um deles e dizer: és tu, tu e não outro.
De repente vejo um vulto negro; era D. Plácida, que fora dentro, enfiara a mantinha, e vinha oferecer-se-me para ir à casa do Lobo Neves. Ponderei que era arriscado, porque ele desconfiaria da visita tão próxima.
— Sossegue, interrompeu ela; eu saberei arranjar as coisas. Se ele estiver em casa não entro.
Saiu; eu fiquei a ruminar o sucesso e as conseqüências possíveis. Ao cabo, parecia-me jogar um jogo perigoso, e perguntava a mim mesmo se não era tempo de levantar e espairecer. Sentia-me tomado de uma saudade do casamento, de um desejo de canalizar a vida. Por que não? Meu coração tinha ainda que explorar; não me sentia incapaz de um amor casto, severo e puro. Em verdade, as aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da vida, isto é, a exceção; eu estava enfarado delas; não sei até se me pungia algum remorso. Mal pensei naquilo, deixei-me ir atrás da imaginação; vi-me logo casado, ao pé de uma mulher adorável, diante de um baby, que dormia no regaço da ama, todos nós no fundo de uma chácara sombria e verde, a espiarmos através da chácara uma nesga do céu azul, extremamente azul...
CAPÍTULO CVII / BILHETE
Não houve nada, mas ele suspeita alguma coisa; está muito sério e não fala; agora saiu. Sorriu uma vez
somente, para Nhonhô, depois de o fitar muito tempo, carrancudo. Não me tratou mal nem bem. Não sei o que vai acontecer; Deus queira que isto passe. Muita cautela, por ora, muita cautela.
CAPÍTULO CVIII / QUE SE NÃO ENTENDE
Eis aí o drama, eis aí a ponta da orelha trágica de Shakespeare. Esse retalhinho de papel, garatujado em partes, machucado das mãos, era um documento de análise, que eu não farei neste capítulo, nem no outro, nem talvez em todo o resto do livro. Poderia eu tirar ao leitor o gosto de notar por si mesmo a frieza, a perspicácia e o ânimo dessas poucas linhas traçadas à pressa; e por trás delas a tempestade de outro cérebro, a raiva dissimulada, o desespero que se constrange e medita, porque tem de resolver-se na lama ou no sangue, ou nas lágrimas?
Quanto a mim, se vos disser que li o bilhete três ou quatro vezes, naquele dia, acreditai-o, que é verdade; se vos disser mais que o reli no dia seguinte, antes e depois do almoço, podeis crê-lo, é a realidade pura. Mas se vos disser a comoção que tive, duvidai um pouco da asserção, e não a aceiteis sem provas. Nem então, nem ainda agora cheguei a discernir o que experimentei. Era medo, e não era medo; era dó e não era dó; era vaidade e não era vaidade; enfim, era amor sem amor, isto é, sem delírio; e tudo isso dava uma combinação assaz complexa e vaga, uma coisa que não podereis entender, como eu não entendi. Suponhamos que não disse nada.
CAPÍTULO CIX / O FILÓSOFO