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deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto a minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção.
CAPÍTULO XCVIII
Cinco anos
Venceu a razão; fui-me aos estudos. Passei os dezoito anos, os dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dois era bacharel em Direito.
Tudo mudara em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a envelhecer; ainda assim os cabelos brancos vinham de má vontade, aos poucos e espa-lhadamente; a touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram os mesmos de outrora. Já não andaria tanto de um lado para outro. Tio Cosme padecia do coração e ia descansar. A prima Justina apenas estava mais idosa. José Dias também, não tanto que me não fizesse a fineza de ir assistir à minha graduação, descer comigo a serra, lépido e viçoso, como se o bacharel fosse ele. A mãe de Capitu falecera, o pai aposentara-se no mesmo cargo em que quis dar demissão da vida.
Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado quatro anos em uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de prima Justina que ele afagara a ideia de convidar minha mãe a segundas núpcias; mas, se tal ideia houve, cumpre não esquecer a grande diferença de idade.
Talvez ele não pensasse em mais que associá-la aos seus primeiros tentames comerciais, e de fato, a pedido meu, minha mãe adiantou-lhe alguns dinheiros, que ele lhe restituiu, logo que pôde, não sem este remoque: “D. Glória é medrosa e não tem ambição.”
A separação não nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre mim e Capitu. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As relações que travou com o pai de Sancha estreitaram as que já trazia com Capitu, e fê-lo servir a ambos nós, como amigo. A princípio, custou-lhe a ela aceitá-lo, preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um resto de respeito de criança. Venceu Escobar; posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio. . Que ele casou, adivinha com quem, — casou com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, MACHADO DE ASSIS • 143 •
chama a esta a “sua cunhadinha”. Assim se formam as afeições e os paren-tescos, as aventuras e os livros.
CAPÍTULO XCIX
O filho é a cara do pai
Minha mãe, quando eu regressei bacharel quase estalou de felicidade.
Ainda ouço a voz de José Dias, lembrando o evangelho de São João, e dizendo ao ver-nos abraçados:
— Mulher, eis aí o teu filho! Filho, eis aí a tua mãe!
Minha mãe, entre lágrimas:
— Mano Cosme, é a cara do pai, não é?
— Sim, tem alguma coisa, os olhos, a disposição do rosto. É o pai, um pouco mais moderno, concluiu por chalaça. E diga-me agora, mana Glória, não foi melhor que ele não teimasse em ser padre? Veja se este peralta daria um padre capaz.
— Como vai o meu substituto?
— Vai indo, ordena-se para o ano, respondeu tio Cosme. Hás de ir ver a ordenação; eu também se o meu senhor coração consentir. É bom que te sintas na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagração.
— Justamente! exclamou minha mãe. Mas veja bem, mano Cosme, veja se não é a figura do meu defunto. Olha, Bentinho, olha bem para mim.
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Sempre achei que te parecias com ele, agora é muito mais. O bigode é que desfaz um pouco. .
— Sim, mana Glória, o bigode realmente.. mas é muito parecido.
E minha mãe beijava-me com uma ternura que não sei escrever. Tio Cosme, para alegrá-la, chamava-me doutor, José Dias também, e todos em casa, a prima, os escravos, as visitas, Pádua, a filha, e ela mesma repetiam-me o título.
CAPÍTULO C
“Tu serás feliz, Bentinho!”
No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata, ia pensando na felicidade e na glória. Via o casamento e a carreira ilustre, enquanto José Dias me ajudava, calado e zeloso. Uma fada invisível, desceu ali e me disse em voz igualmente macia e cálida: “Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz.”
— E por que não seria feliz? perguntou José Dias, endireitando o tronco e fitando-me.
— Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também, espantado.
— Ouviu o quê?
— Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?
— É boa! Você mesmo é que está dizendo. .
Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos versos, meteram-se no coração da gente e falam de dentro para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Há de ser prima das feiticeiras da Escócia: “Tu serás rei, Macbeth!” —
“Tu serás feliz, Bentinho!” Ao cabo, é a mesma predição, pela mesma toada universal e eterna. Quando voltei do meu espanto, ouvi o resto do discurso de José Dias:
— .. Há de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma que ali está, que não é favor de ninguém. A distinção que tirou em todas as matérias é prova disso; já lhe contei que ouvi da boca dos lentes, em particular, os maiores elogios. Demais, a felicidade não é só a glória, é também outra coisa. . Ah! você não confiou tudo ao velho José Dias! O pobre José Dias MACHADO DE ASSIS • 145 •
está aí para um canto, é caju chupado, não vale nada; agora são os novos, os Escobares. . Não lhe nego que é moço muito distinto, e trabalhador, e marido de truz; mas, enfim, velho também sabe amar. .
— Mas que é?
— Que há de ser? Quem é que não sabe tudo. .? Aquela intimidade de vizinhos tinha de acabar nisto, que é verdadeiramente uma bênção do céu, porque ela é um anjo, é um anjíssimo. . Perdoe a cincada, Bentinho, foi um modo de acentuar a perfeição daquela moça. Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com expressões de caráter, e não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e doce. . Por que é que não me contou também o que outros sabem, e cá em casa está mais que adivinhado e aprovado?
— Mamãe aprova deveras?