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- Como ele fala bem! murmurou uma das moças.

Fabrício tomou a palavra.

- Sangue! sempre sangue! eis a Medicina romântica do insignificante Broussais! mas eu detesto tanto a Medicina sanguinária, como a estercorária, herbária, sudorária e todas as que acabam em ária.

Desde Hipócrates, que foi o maior charlatão do seu tempo, até os nossos dias, tem triunfado a ignorância, mas já, enfim, brilhou o sol da sabedoria... Hahnemann... ah!... quebrai vossas lancetas, senhores! para curar o mundo inteiro basta-vos uma botica homeopática, com o Amazonas ao pé!... queimai todos os vossos livros, porque a verdade está só, exclusivamente, no alcorão de nosso Mafoma, no Organon do grande homem! Ah! se depois do divino sistema morre por acaso alguém, é por se não ter ainda descoberto o meio de dividir em um milhão de partes cada simples átomo da matéria! Senhores, eu concordo com o diagnóstico de meu colega, mas devo combater o tratamento por ele oferecido. Uma taça de líquido fontâneo açucarado, e acidulado com algumas gotas de éter sulfúrico, é, em minha opinião, capaz de envenenar a todos os habitantes da China! O mesmo direi do cozimento do coffea arabica...

- Mas por que não têm morrido envenenados os que por vezes o têm já tomado?...

- Eis aí a consideração que os leva ao erro!... Senhor meu colega, é porque a ação maléfica desses medicamentos não se faz sentir logo... às vezes só aparece depois de cem, duzentos e mais anos... eis a grande verdade!... Mas eu tenho observações de moléstias de natureza da que nos ocupa e que vão mostrar a superioridade do meu sistema. Ouçam-me. Uma mulher padecia este mesmo mal; já tinha sofrido trinta sangrias; haviam-lhe mandado aplicar mais de trezentas bichas, purgantes sem

conta, vomitórios às dúzias e tisanas aos milheiros; quis o seu bom gênio que ela recorresse a um homeopata, que, com três doses, das quais cada uma continha apenas a trimilionésima parte de um quarto de grão de nihilitas nihilitatis, a pôs completamente restabelecida; e quem quiser pode ir vê-la na rua... É certo que não me lembro agora onde, mas posso afirmar que ela mora em uma casa e que hoje está nédia, gorda, com boas cores e até remoçou e ficou bonita... Outro fato.

- Basta! basta!...

- Pois bem, basta; e propondo a aplicação da nihilitas nihilitatis na dose da trimilionésima parte de um quarto de grão, dou por terminado o meu discurso.

- O Sr. Leopoldo tem a palavra.

- Senhores, eu devo confessar que restam-me muitas dúvidas a respeito do diagnóstico e, portanto, julgo útil recorrermos ao magnetismo animal, para vermos se a enferma, levada ao sonambulismo, nos aclara sua enfermidade. Além disto, eu tenho fé de que não há moléstia alguma que possa resistir à maravilhosa aplicação dos passes, que tanto abismaram Paracelso e Kisker. Ainda mais: se o diagnóstico do colega que falou em primeiro lugar é exato, dobrada razão acho para sustentar o meu parecer porque, enfim, se similia similibus curantur, necessariamente o magnetismo tem de curar a baquites. Voto, pois, para que comecemos já a aplicar-lhe os passes.

Seguiu-se o discurso de Augusto que, por longo demais, parece prudente omitir. Em resumo basta dizer que ele combateu as raras teorias de Filipe, mas concordou com o tratamento por ele proposto e falou com arte tal que D. Carolina o escolheu para assistente de sua ama.

Augusto determinou as aplicações convenientes ao caso, mas, não tendo entrado no número delas a essencial lembrança de um escalda-pés, caiu a tropa das mezinheiras sobre o desgraçado estudante, que se viu quase doido com a balbúrdia de novo alevantada no quarto.

- Menos ruído, minhas senhoras, dizia o rapaz; isto pode ser fatal à doente!

- Ora... eu nunca vi negar-se um escalda-pés!

- Ainda em cima de não lhe mandar aplicar uma ajuda, esquece-se também do escalda-pés!...

- Se não lhe derem um escalda-pés, eu não respondo pelo resultado!...

- Olhem como a doente está risonha, só por ouvir falar em escalda-pés!...

- Aquilo é pressentimento!

- Sr. Doutor, um escalda-pés!...

- Pois bem, minhas senhoras, disse Augusto para se ver livre delas, dêem-lhe o preconizado escalda-pés!

E fugindo logo do quarto, foi pensando consigo mesmo que as coisas que mais contrariam o médico são: primeiro, a saúde alheia, segundo, um mau enfermeiro e, por último, enfim, as senhoras mezinheiras.

14

Pedilúvio Sentimental

Ria-se, jogava-se, brincava-se. Todos se haviam já esquecido da pobre Paula. Na verdade também que, por ter a ama de D. Carolina tomado seu copo de vinho de mais, não era justo que tantas moças e moços, em boa disposição de brincar, e umas poucas de velhas determinadas a maçar meio mundo, ficassem a noite inteira pensando na carraspana da rapariga. E além disso, quatro semidoutores já haviam pronunciado favorável diagnóstico; como, pois, se arrojaria Paula a morrer, contra a ordem expressa dos quatro hipocratíssimos senhores?...

Era por isso que todos brincavam alegremente, menos o Sr. Keblerc que, diante de meia dúzia

de garrafas vazias, roncava prodigiosamente; grande alemão para roncar!... era uma escala inteira que ele solfejava com bemóis, bequadros e sustenidos!... dir-se-ia que entoava um hino... a Baco.

Os rapazes estavam nos seus gerais; a princípio, como é seu velho costume, haviam festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas que se achavam na sala, principalmente aquelas que tinham trazido consigo moças; mas, passada meia hora, adeus etiquetas e cerimônias!... Estabeleceu-se um cordão sanitário entre a velhice e a mocidade; a Sra. D. Ana achou a ocasião oportuna para ir dar ordens ao chá, D. Violante ocupou-se em desenvolver a um velho roceiro os meios mais adequados para se preencher o defict provável do Brasil para o ano financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de importação, nem criar impostos, abolindo-se, pelo contrário, a décima urbana. Já se vê que D.

Violante tinha casas na cidade. Restavam quatro senhoras, que julgaram a propósito jogar o embarque, que na verdade as divertia muito, como o episódio do ás galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores, viúvos, casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no écarté, jugo muito bonito e muito variado, que nos vieram ensinar os senhores franceses, grandes inventores, sem dúvida!...

A rapazia empregava melhor o seu tempo: também jogava, mas na sua roda não havia nem mesa, nem cartas, nem dados. O seu jogo tinha diretor que, exceção de regra entre os mais, não podia ter menos de cinqüenta anos. Era um homem de estatura muito menos que ordinária, tinha o rosto muito vermelho, cabelos e barbas ruivas, gordo, de pernas arqueadas, ajuntava ao ridículo de sua figura muito espírito; não estava bem senão entre rapazes, por felicidade deles sempre se encontra desses. Tal o diretor da roda dos moços. O Sr. Batista (este é o seu nome) era fértil em jogos; quando um aborrecia, vinha logo outro melhor. Já se havia jogado o do toucador e o do enfermo. O terceiro agradou tanto, que se repetia pela duodécima vez, com aplauso geral, principalmente das moças: era, sem mais nem menos, o jogo da palhinha.

Caso célebre!... já se viu que coincidência!... ora expliquem, se são capazes... Tem-se jogado a palhinha doze vezes e em todas as doze tem a sorte feito com que Filipe abrace D. Clementina e Fabrício D. Joaninha! E sempre, no fim de cada jogo, qualquer das duas recua um passo, como se pouca vontade houvesse nelas de dar o abraço, e fazendo-se coradinha, exclama:

- Quantos abraços!... pois outra vez?...

- Eu já não dei inda agora?... ora isto!...

Entre os rapazes, porém, há um que não está absolutamente satisfeito: é Augusto. Será por que no tal jogo da palhinha tem por vezes ficado viúvo?... não! ele esperava isso como castigo de sua inconstância. A causa é outra: a alma da ilha de... não está na sala! Augusto vê o jogo ir indo o seu caminho muito em ordem; não se rasgou ainda nenhum lenço, Filipe ainda não gritou com a dor de nenhum beliscão, tudo se faz em regra e muito direito; a travessa, a inquieta, a buliçosa, a tentaçãozinha não está aí; D. Carolina está ausente!...

Com efeito, Augusto, sem amar D. Carolina (ele assim o pensa), já faz dela idéia absolutamente diversa da que fazia ainda há poucas horas. Agora, segundo ele, a interessante Moreninha é, na verdade, travessa, mas a cada travessura ajunta tanta graça, que tudo se lhe perdoa. D. Carolina é o prazer em ebulição; se é inquieta e buliçosa, está em sê-lo a sua maior graça; aquele rosto moreno, vivo e delicado, aquele corpinho, ligeiro como abelha, perderia metade de que vale, se não estivesse em contínua agitação.

O beija-flor nunca se mostra tão belo como quando se pendura na mais tênue flor e voeja nos ares; D.

Carolina é um beija-flor completo.

Neste momento a Sra. D. Ana entrou na sala, e depois, dirigindo-se à grande varanda da frente, sentou-se defronte do jardim. Batista acabava de dar fim ao jogo da palhinha e começava novo; Augusto pediu que o dispensassem e foi ter com a dona da casa.

- Não joga mais, Sr. Augusto? disse ela.

- Por ora não, minha senhora.

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