Capitu limitou-se a arregalar muito os olhos, e acabou por dizer:
— Padre é bom, não há dúvida; melhor que padre só cônego, por causa das meias roxas. O roxo é cor muito bonita. Pensando bem, é melhor cônego.
— Mas não se pode ser cônego sem ser primeiramente padre, disse-lhe eu mordendo os beiços.
— Bem; comece pelas meias pretas, depois virão as roxas. O que eu não quero perder é sua missa nova; avise-me a tempo para fazer um vestido à MACHADO DE ASSIS • 77 •
moda, saia-balão e babados grandes. . Mas talvez nesse tempo a moda seja outra. A igreja há de ser grande, Carmo ou S. Francisco.
— Ou Candelária.
— Candelária também. Qualquer serve, contanto que eu ouça a missa nova.
Hei de fazer um figurão. Muita gente há de perguntar: “Quem é aquela moça faceira que ali está com um vestido tão bonito?”
— “Aquela é D. Capitolina, uma moça que morou na Rua de Matacavalos. .”
— Que morou? Você vai mudar-se?
— Quem sabe onde é que há de morar amanhã? disse ela com um tom leve de melancolia; mas, tornando logo ao sarcasmo: E você no altar, metido na alva, com a capa de ouro por cima, cantando. . Pater noster...
Ah! como eu sinto não ser poeta romântico para dizer que isto era um duelo de ironias! Contaria os meus botes e os dela, a graça de um e a pronti-dão de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, até ao meu golpe final que foi este:
— Pois, sim, Capitu, você ouvirá a minha missa nova, mas com uma condição.
Ao que ela respondeu:
— Vossa Reverendíssima pode falar.
— Promete uma coisa?
— Que é?
— Diga se promete.
— Não sabendo o que é, não prometo.
— A falar verdade são duas coisas, continuei eu, por haver-me acudido outra ideia.
— Duas? Diga quais são.
— A primeira é que só se há de confessar comigo, para eu lhe dar a pe-nitência e a absolvição. A segunda é que. .
— A primeira está prometida, disse ela vendo-me hesitar, e acrescentou que esperava a segunda.
Palavra que me custou, e antes não me chegasse a sair da boca; não ouvi-ria o que ouvi, e não escreveria aqui uma coisa que vai talvez achar incrédulos.
— A segunda. . sim. . é que. . Promete-me que seja eu o padre que case você?
— Que me case? disse ela um tanto comovida.
• 78 • DOM CASMURRO
Logo depois fez descair os lábios, e abanou a cabeça.
— Não, Bentinho, disse, seria esperar muito tempo; você não vai ser padre já amanhã, leva muitos anos. . Olhe, prometo outra coisa; prometo que há de batizar o meu primeiro filho.
CAPÍTULO XLV
Abane a cabeça, leitor
Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível.
Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, não há nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, como tais palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca.
Quanto ao meu espanto, se também foi grande, veio de mistura com uma sensação esquisita. Percorreu-me um fluido. Aquela ameaça de um primeiro filho, o primeiro filho de Capitu, o casamento dela com outro, portanto, a separação absoluta, a perda, a aniquilação, tudo isso produzia um tal efeito, que não achei palavra nem gesto; fiquei estúpido. Capitu sorria; eu via o primeiro filho brincando no chão. .
CAPÍTULO XLVI
As pazes
As pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro a minha glória, e diria que as negociações partiram de mim; mas não, foi ela que as iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou também a cabeça, mas voltando os olhos para cima a fim de ver os meus. Fiz-me de rogado; depois quis levantar-me para ir embora, mas nem me levantei, nem sei se iria. Capitu fitou-me uns olhos tão ternos, e a posição os fazia tão súplices, que me deixei ficar, passei-lhe o braço pela cintura, ela pegou-me na ponta dos dedos, e. .
Outra vez D. Fortunata apareceu à porta da casa; não sei para que, se nem me deixou tempo de puxar o braço; desapareceu logo. Podia ser um MACHADO DE ASSIS • 79 •
simples descargo de consciência, uma cerimônia, como as rezas de obrigação, sem devoção, que se dizem de tropel; a não ser que fosse para certificar aos próprios olhos a realidade que o coração lhe dizia. .
Fosse o que fosse, o meu braço continuou a apertar a cintura da filha, e foi assim que nos pacificamos. O bonito é que cada um de nós queria agora as culpas para si, e pedíamos reciprocamente perdão. Capitu alegava a insônia, a dor de cabeça, o abatimento do espírito, e finalmente “os seus calundus”. Eu, que era muito chorão por esse tempo, sentia os olhos molhados. . Era amor puro, era efeito dos padecimentos da amiguinha, era a ternura da reconciliação.