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- Eu? Pode ser... Esta minha cabeça!...

- Não é a tua cabeça, Augusto, é o teu coração.

Houve um momento de silêncio. Augusto abriu um livro e fechou-o logo; depois tomou rapé, passeou pelo quarto duas ou três vezes e, finalmente, veio de novo sentar-se junto de Leopoldo.

- É verdade, disse; não é a minha cabeça: a causa está no coração. Leopoldo, tenho tido pejo de te confessar, porém não posso mais esconder estes sentimentos que eu penso que são segredos e que todo o mundo mos lê nos olhos! Leopoldo, aquela menina que aborreci no primeiro instante, que julguei insuportável e logo depois espirituosa, que daí a algumas horas comecei a achar bonita, no curto trato de um dia, ou melhor ainda, em alguns minutos de uma cena de amor e piedade, em que a vi de joelhos banhando os pés de sua ama, plantou no meu coração um domínio forte, um sentimento filho da admiração, talvez, mas sentimento que é novo para mim, que não sei como o chame, porque o amor é um nome muito frio para que o pudesse exprimir!... Eu a mim não conheço... não sei onde irá isto parar... Eu amo! ardo! morro!

- Modera-te, Augusto, acalma-te, não é graça; olha que estás vermelho como um pimentão.

- Oh! tudo naquela ilha fatal se assanhou para enfeitiçar-me, tudo, até a própria mentira.

- E tu acreditaste muito nessa senhora?...

- Escuta, Leopoldo: uma vez que com a avó de Filipe conversava na gruta, eu fatigado e sequioso, bebi um copo d’água da fonte do rochedo; então, a nossa boa hóspeda contou-me uma fabulosa e singular tradição daquela fonte. A água dizia-se milagrosa e quem bebesse dela não sairia da ilha sem amar algum de seus habitantes. Eis aqui, pois, uma mentira, mas uma mentira que excitou a minha imaginação; uma mentira que me perseguiu lá dois dias e que me persegue ainda hoje; uma mentira, enfim, que se transformou em verdade, porque eu bebi daquela água e não pude deixar a ilha sem amar, e muito, um de seus habitantes...

- Deveras que isso não deixa de ser interessante. Mas que efeito esperas tu que provenha de toda essa moxinifada?

- Que efeito?... O... amor...

- Amor?... Amor não é efeito, nem causa, nem princípio, nem fim, e é tudo, tudo isso ao mesmo tempo; é uma coisa que... sim... finalmente, para encurtar razões, amor é o diabo... Dize-me, pois,

sinceramente falando, qual o resultado que pensas tirar de tudo isso que me contaste.

- Que resultado?... O... amor...

- E ele a dar-me com o maldito amor! Augusto, falemos sério; essa tua exaltação estava muito em ordem num moço que quisesse desposar D. Carolina; porém tu nem cuidas em casamento nem, se tal pensasses, te lembrarias, roceiro como és, de escolher para mulher uma menina que foi criada, educada e pode-se dizer que mora na Corte.

- Esta agora não é má!... Deveras que ainda não me passou pela mente a idéia do casamento, nem chegará a tal ponto minha loucura; mas suponhamos o contrário disto: que mal tu achas em que um roceiro se case com uma moça da cidade?...

- Que mal?... Ora, escuta: devendo ir morar na roça, a moça tem, necessariamente, de mudar de costumes e de vida; compreende, pois, quanto atormentará o coração do pobre marido à vista dos dissabores e contrariedades que sofrerá na solidão e monotonia campestre a senhora amamentada no seio dos prazeres e festins da Corte!... quanto devem entristecer os suspiros e saudades de que serás testemunha, quando a amada companheira recordar-se de sua família, de suas amigas, do teatro, do passeio, dessa cadeia de delícias, enfim, que, a pesar dela a ligará ainda a seu passado!...

- Oh! não, não, Leopoldo, se o marido for amado por ela!... Quando se ama deveras e se está com o objeto do amor, não se recorda, não se deseja, não se quer mais nada!...

- Tu falas em amor, Augusto?... Ainda bem que somos ambos estudantes da roça e posso dizer-te agora o que entendo, sem medo de ofender a susceptibilidade de cortesão algum. Pois ainda não observaste que o verdadeiro amor não se dá muito com os ares da cidade?... que por natureza e hábito, as nossas roceiras são mais constantes que as cidadoas?... Olha, aqui encontramos nas moças mais espírito, mais jovialidade, graça e prendas, porém, nelas não acharemos nem mais beleza, nem tanta constância. Estudemos as duas vidas. A moça da Corte cresce e vive comovida sempre por sensações novas e brilhantes, por objetos que se multiplicam e se renovam a todo o momento, por prazeres e distrações que se precipitam; ainda contra a vontade, tudo a obriga a ser volúvel: se chega à janela um instante só, que variedade de sensações! seus olhos têm de saltar da carruagem para o cavaleiro, da senhora que passa para o menino que brinca, do séquito do casamento para o acompanhamento do enterro! Sua alma tem de sentir ao mesmo tempo o grito de dor e a risada de prazer, os lamentos, os brados de alegria e o ruído do povo; depois, tem o baile com sua atmosfera de lisonjas e mentiras, onde ela se acostuma a fingir o que não sente, a ouvir frases de amor a todas as horas, a mudar de galanteador em cada contradança. Depois, tem o teatro, onde cem óculos fitos em seu rosto parecem estar dizendo

- és bela! e assim enchendo-a de orgulho e muitas vezes de vaidade; finalmente, ela se faz por força e por costume tão inconstante como a sociedade em que vive, tão mudável como a moda dos vestidos.

Queres agora ver o que se passa com a moça da roça?...

Ali ela está na solidão de seus campos, talvez menos alegre, porém, certamente, mais livre; sua alma é todos os dias tocada dos mesmos objetos; ao romper d’alva, é sempre e só aurora que bruxuleia no horizonte; durante o dia, são sempre os mesmos prados, os mesmos bosques e árvores; de tarde, sempre o mesmo gado que se vem recolhendo ao curral; à noite, sempre a mesma lua que prateia seus raios na lisa superfície do lago. Assim, ela se acostuma a ver e amar um único objeto; seu espírito, quando concebe uma idéia, não a deixa mais, abraça-a, anima-a, vive eterno com ela; sua alma, quando chega a amar, é para nunca mais esquecer, é para viver e morrer por aquele que ama. Isto é assim, Augusto; considera que é lá em nosso campos que mais brilham esses sentimentos, que são a mesma vida e que não podem acabar senão com ela!...

- Como estás exagerado, Leopoldo! juraria que desejas casar com alguma moça da roça!

- Oh!... se esse desejo me dominar, certamente que o satisfarei com uma das muitas cachopinhas de minha terra.

- Eu logo vi que nos teus raciocínios e observações andava o gênio da prevenção; escuso-me,

porém, de responder-te, pois que falaste em geral e desse modo concedes...

- Que há muitas exceções, sem dúvida?

- Bom! quando não, tu me forçarias a tomar a palavra para defender a linda Moreninha, que tanto me cativa?

- Então, Augusto, teremos, porventura, um romance?

- Que romance?

- Perderás a aposta e ao completar-se o mês...

- Daqui até lá... se eu pudesse esquecê-la!... mas aquela menina não é como as outras: é uma tentação... um diabinho...

- Quando, pois, começas a escrever?

- Estás tolo... respondeu Augusto, tomando por um momento seu antigo bom humor; eu ainda pretendo nestes quinze dias mudar de amor três vezes.

Basta, porém, de estudantes. Já temos ouvido bastante o nosso Augusto e demorar-nos mais tempo em seu gabinete fora querer escutar ainda as mesmas coisas: porque o tal mocinho, que quer campar de beija-flor, parece que caiu no visco dos olhos e graças da jovem beleza da ilha de... e está sinceramente enamorado dela; ora, todos sabem que os amantes têm um prazer indizível em matrequear os ouvidos dos que os atendem com uma história muito comprida e mil vezes repetida que, reduzindo-se à expressão mais simples, ficaria em zero ou, quando muito, nos seguintes termos: “eu olhei e ela olhou; eu lhe disse - pode ser, não pode ser”. Deixemos, portanto, o senhor Augusto entregue a seus cuidados de moço, e tanto mais que já conhecemos o estado em que se acha. Vamos agora entrar no coraçãozinho de um ente bem amável, que não tem, como aquele, uma pessoa a quem confie suas penas, e por isso sofre talvez mais. Faremos uma visita à nossa linda Moreninha.

Também suas modificações têm aparecido no caráter de D. Carolina, depois dos festejos de Sant’Ana. Antes deles, era essa interessante jovenzinha o prazer da ilha de... Irreconciliável inimiga da tristeza, ela ignorava o que era estar melancólica dez minutos e praticava o despotismo de não consentir que alguém o estivesse; junto dela, por força ou vontade, tudo tinha que respirar alegria; sabia tirar partido de todas as circunstâncias para fazer rir, e, boa, afável e carinhosa para com todos, amoldava os corações à sua vontade; o ídolo, o delírio de quantos a praticavam, era ela a vida daquele lugar e empunhava com as suas graças o cetro do prazer. Hoje suas maneiras são outras; e, enquanto suas músicas se empoeiram, seu piano passa dias inteiros fechado, suas bonecas não mudam de vestido, ela vaga solitária pela praia, perdendo seus belos olhares na vastidão do mar, ou, sentada no banco de relva da gruta, descansa a cabeça em sua mão e pensa... Em quê?... quais serão os solitários pensamentos de uma menina de menos de quinze anos?... E às vezes suspira... um suspiro?... Eis o que é já um pouco explicativo.

Assim como o grito tem o eco, a flor o aroma e a dor o gemido, tem o amor o suspiro; ah! o amor é demoninho que não pede para entrar no coração da gente e, hóspede quase sempre importuno, por pior trato que se lhe dê, não desconfia, não se despede, vai-se colocando e deixando ficar, sem vergonha nenhuma, faz-se dono da casa alheia, toma conta de todas as ações, leva o seu domínio muito cedo aos olhos, e às vezes dá tais saltos no coração, que chega a ir encarapitar-se no juízo; e então, adeus minhas encomendas!...

Pois muito bem, parece que a tal tentação anda fazendo pelóticas no peito da nossa cara menina; também não há moléstia de mais fácil diagnóstico. Uma mocinha que não tem cuidados, com quem a mamãe não é impertinente, que não sabe dizer onde lhe dói, que não quer que se chame médico, que suspira sem ter flatos, que não vê o que olha, que acha todo o guisado mal temperado, é porque já ama; portanto, D. Carolina ama, mas... a quem?!...

Ah! Sr. Augusto! Sr. Augusto! a culpa é toda sua, sem dúvida. Esta bela menina, acostumada

desde as faixas a exercer um poder absoluto sobre todos os que a cercam, não pôde ouvir o estudante vangloriar-se de não ter encontrado ainda uma mulher que o cativasse deveras, sem sentir o mais vivo desejo de reduzi-lo a obediente escravo de seus caprichos; ela pôs então em ação todo o poder de suas graças, ideou mesmo um plano de ataque, estudou a natureza e os fracos do inimigo; observou; bateu-se: o combate foi fatal a ambos, talvez, e no fim dele a orgulhosa guerreira apalpou o seu coração e sentiu que nele havia penetrado um dardo; consultou a sua consciência e ouviu que ela respondia; se venceste também estás vencida!

Com efeito, D. Carolina ama o feliz estudante, e uma mistura de saudades e de temor da inconstância do seu amado é provavelmente a causa de sua tristeza; ajunte-se a isto a novidade e os cuidados de um amor nascente e primeiro, o incômodo de um sentimento novo, inexplicável, que lhe enchia o inocente coração e ver-se-á que ela tem suas razões para andar melancólica.

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