A ideia, por exemplo, de um menino mais pobre do que realmente foi e de compleição mais frágil do que teve. E a lista seria longa: não consta que Machado tivesse tentado apagar suas raízes ou que lhe faltasse amor pela família; a existência da padaria Gallot, onde teria aprendido francês, carece de documentação plausível; o primeiro poema que publicou não foi “A palmeira”, mas “À Ilma. Sra. D. P. J. A.”; Carolina não ampliou as leituras de Machado nem tampouco lhe aperfeiçoou o estilo; o espaço entre a primeira e a segunda fase da obra, cuja fronteira seria Memórias póstumas 2 NÓBREGA, Isabel da, Cartas de amor de gente famosa. Estoril: Prime Books, 2009. p. 42.
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de Brás Cubas, deixou de ser vista como um abismo; não faltam árvores e quintais no coração da narrativa e a natureza não está fora de seus quadros, como também as cartas que escreveu não respiram frias distâncias; por último, Machado jamais deixou de lado as questões políticas como o caso Christie, a escravidão e a República.
Um dos pontos mais relevantes ressaltados por Lucchesi estaria, justamente, na questão de se colocarem classificações, em especial, nos romances do autor. Machado de Assis possui um conjunto de obras muito diversifi-cado. Seria muito impreciso dividir seus romances em fase romântica e fase realista. Para um grande mestre da linguagem, como ele, não existem classificações. Rigorosamente, sabe-se, cada livro é um livro. Tal fato não nega que as obras de Machado estejam dentro de um determinado período histórico e literário. Trata-se, apenas, de esclarecer alguns processos, que julgamos fundamentais, para todos aqueles dignos de serem reconhecidos como inovadores e arejadores da linguagem. Justamente um dos principais objeti-vos da literatura. O que se pode afirmar, com mais segurança, é que todo e qualquer escritor possui algumas obras em que a maturidade, em todos os graus, é percebida de maneira mais clara.
Nas palavras de Machado:3
Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia de feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isso Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, – devoção, ou talvez medo; creio que medo.
Aí tem o leitor em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz, – tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? [. .] Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.
Observe-se que nada como a expressão do grande mestre para que se en-tendam melhor as questões de maturidade, não somente intelectual, mas de tantas outras fases de nossa vida que se interseccionam e, efetivamente, nos 3 ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. Brasília: Edições Câmara, 2018. p. 58.
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tornam diferentes. Quantos e quantos escritores não reviram suas obras quando mais velhos? Quantos não reescreveram, por sinal, até romances? Por entende-rem, naturalmente, que na época em que foram escritos fossem, talvez, mais ingênuos. Menos afetados pelas exigências da vida. Ou menos perfeccionistas.
Não faltam razões para que um escritor revise suas obras e, via de regra, se torne mais exigente. Uma coisa é escrever aos 20 anos. Outra coisa é escrever aos 50.
Diante do exposto, não podemos negar que o conjunto de obras de Machado traz suas marcas inconfundíveis. Por isso mesmo sua literatura é tão singular. Ou seja, contém um grande grau de ironia, crítica social, memo-rialismo e, sobretudo, insubordinação aos cânones estabelecidos por modis-mos e normas estabelecidas pela tradição literária.
O estilo machadiano é autenticado pela busca incansável de novas formas de expressão. “O essencial seria não perder de vista a força do interdito e a leitura do intervalo”,4 como afirma Marco Lucchesi. Machado possibilita longos exercícios de imaginação, entre outros motivos, porque seus textos são cheios de lacunas que devem ser preenchidas pela fantasia e imaginação do leitor. A predominância do lacônico permite que façamos não a famosa inverdade de que cada um possa interpretar uma obra como queira, no entanto, podemos criar inferências subjetivas em relação às imagens de Capitu, Bentinho, Virgília, Quincas Borba. Podemos navegar com liberdade pelas, muitas vezes, solitárias atmosferas machadianas. O estilo escritural conciso, econômico e telegráfico de Machado de Assis, de certa forma, influenciou as gerações pos-teriores da literatura brasileira. Apenas para ficarmos com alguns exemplos, como negar a marca machadiana em Oswald de Andrade e Graciliano Ramos?
Machado de Assis é um dos maiores mestres da condição humana. A leitura de seus textos nos permite a imersão, nunca desnecessária, em suas ironias, comparações metafóricas, metonímias e imagens que residem, se-guramente, nas travessias fantásticas pela interioridade humana. Raros escritores, de todos os tempos, conseguem desvelar o subterrâneo de nós mesmos. Machado desmonta a condição humana e com isso revela a nós mesmos.
“Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal”.5 Desfaz elementos de hipocrisia. Desnuda simulações. Toca em pon-4 LUCCHESI, Marco. Ficções de um gabinete ocidental: ensaios de história e literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p.112.
5 ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Brasília: Edições Câmara, 2018. p. 103.
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tos nevrálgicos de nossa alma. Mas nem por isso é áspero ou grosseiro. Sua escritura é pontual. Elegante. Há uma delicadeza e suavidade em seus textos que são admiráveis: “Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios”.6
Cremos que somente escritores cuja grandiosidade é qualitativa, portanto incomensurável, como é o caso de Machado de Assis, puderam e podem compreender que a solidão e a solidariedade são os únicos caminhos que nos levam a pensar, juntamente com Marguerite Yourcenar, que: “Há almas que nos fazem acreditar que a alma existe. Nem sempre são as mais geniais, porque as mais geniais são as que souberam melhor se exprimir. São às vezes almas balbuciantes, quase sempre silenciosas”.7 No encerramen-to de Memórias p óstumas de Brás Cubas, cuja leitura julgamos imperdível, Machado declara: “– Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.8 Embora não tenha deixado, como afirma, o legado “da nossa miséria”, deixou para nós, e, talvez, nem suspeitasse disso, o legado de seu conjunto de obras, cuja permanência tem enriquecido, conti-nuamente, nossos horizontes.
A literatura machadiana é, frequentemente, revisitada – não somente no Brasil – por estudantes, professores, pesquisadores e por todos aqueles que tentam compreender, de maneira mais autêntica, a arquitetura existen-cial eternamente labiríntica-musical regida pelos abismos que nos separam de nós mesmos e daqueles que nos cercam.
Ana Maria Haddad Baptista9
6 ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Brasília: Edições Câmara, 2018. p. 103.
7 YOURCENAR, Marguerite. O tempo, esse grande escultor. Tradução de Ivo Barroso. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 127.
8 ASSIS, Machado. Memórias p óstumas de Brás Cubas. Brasília: Edições Câmara, 2018. p. 186.
9 Ana Maria Haddad Baptista é graduada em letras, possui mestrado e doutorado pela PUC/
SP e pós-doutorado em história da ciência pela Universidade de Lisboa e pela PUC/SP.
Atualmente, trabalha como pesquisadora e professora nos programas de pós-graduação stricto sensu na área da educação da Universidade Nove de Julho/SP. É também líder do grupo de pesquisa Tempo-Memória: Educação, Literatura e Linguagens (CNPq). Possui dezenas de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. É colunista mensal da Revista Filosofia, da Editora Escala, em São Paulo.
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CAPÍTULO I
Do título
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
— Continue, disse eu acordando.
— Já acabei, murmurou ele.
— São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você.” — “Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.” — “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.”
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Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.
Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.