Mas tudo emmudeceu ante um chut terrível do marquez, que desapertára o cache-nez, já excitado, no enternecimento que sempre lhe davam estes humanitarismos poeticos. E
entretanto, no estrado, o Alencar achára a solução do soffrimento humano! Fôra uma Voz que lh'a ensinára! Uma Voz sahida do fundo dos seculos, e que através d'elles, sempre suffocada, viera crescendo todavia irresistivelmente desde o Golgotha até á Bastilha! E
então, mais solemne por traz da mesa, com um arranque de Precursor e uma firmeza de Soldado, como se aquelle honesto movel de mogno fosse um pulpito e uma barricada - o Alencar, alçando a fronte n'uma grande audacia á Danton, soltou o brado temeroso. Alencar queria a Bepublica!
Sim, a Republica! Não a do Terror e a do odio, mas a da mansidão e do Amor. Aquella em que o Millionario sorrindo abre os braços ao Operario! Aquella que é Aurora, Consolação, Refugio, Estrella mystica e Pomba...
Pomba da Fraternidade,
Que estendendo as brancas azas
Por sobre os humanos lodos,
Envolve os seus filhos todos
Na mesma santa Igualdade!...
Em cima, na galeria, resoou um bravo ardente. E immediatamente, para o suffocar, sujeitos sérios lançaram, aqui e além: «Chut, silencio!» Então Ega ergueu as mãos magras, bem alto, berrou com um destaque atrevido:
- Bravo! Muito bem! Bravo!
E todo pallido da sua audacia, entalando o monoculo, declarou para os lados:
- Aquella democracia é absurda... Mas que os burguezes se dêem ares intolerantes, isso não! Então applaudo eu!
E as suas mãos magras de novo se ergueram, bem alto, junto das do marquez que retumbavam como malhos. Outros em volta, immediatamente, não se querendo mostrar menos democratas que o Ega e aquelle fidalgo de tão grande linhagem, reforçaram os bravos com calor. Já pela sala se voltavam olhares inquietos para aquelle grupo cheio de revolução. Mas um silencio cahiu, mais commovido e grave, quando o Alencar (que inspiradamente previra a intolerancia burgueza) perguntou em estrophes iradas o que detestavam, o que receavam elles, no advento sublime da Republica? Era o pão carinhoso dado á criança? Era a mão justa estendida ao proletario? Era a esperança? Era a aurora?
Receaes a grande luz?
Tendes medo do Abecê?...
Então castigai quem lê,
Voltai á plebe soez!
Recuai sempre na Historia,
Apagai o gaz nas ruas,
Deixai as crianças nuas,
E venha a forca outra vez!
Palmas, mais numerosas, já sinceras, estalaram pela sala, que cedia emfim ao repetido encanto d'aquelle lyrismo humanitario e sonoro. Já não importava a Republica, os seus perigos. Os versos rolavam, cantantes e claros; e a sua onda larga arrastava os espiritos mais positivos. Sob aquelle bafo de sympathia Alencar sorria, com os braços abertos, annunciando uma a uma, como perolas que se desfiam, todas as dadivas que traria a Republica. Debaixo da sua bandeira, não vermelha mas branca, elle via a terra coberta de searas, todas as fomes satisfeitas, as nações cantando nos valles sob o olhar risonho de Deus. Sim, porque Alencar não queria uma Republica sem Deus! A Democracia e o Christianismo, como um lirio que se abraça a uma espiga, completavam-se, estreitando os seios! A rocha do Golgotha tornava-se a tribuna da Convenção! E para tão dôce ideal não se necessitavam cardeaes, nem missaes, nem novenas, nem igrejas. A Republica, feita só de pureza e de fé, reza nos campos; a lua cheia é hostia; os rouxinoes entoam o tantum ergo nos ramos dos loureiraes. E tudo prospéra, tudo refulge - ao mundo do Conflicto substitue-se o mundo do Amor...
Á espada succede o arado,
A Justiça ri da Morte,
A escóla está livre e forte,
E a Bastilha derrocada.
Róla a tiára no lodo,
Brota o lirio da Igualdade,
E uma nova Humanidade
Planta a cruz na barricada!
Uma rajada farta e franca de bravos fez oscillar as chammas do gaz! Era a paixão meridional do verso, da sonoridade, do Liberalismo romantico, da imagem que esfuzia no ar com um brilho crepitante de foguete, conquistando emfim tudo, pondo uma palpitação em cada peito, levando chefes de repartição a berrarem, estirados por cima das damas, no enthusiasmo d'aquella republica onde havia rouxinoes! E quando Alencar, alçando os braços ao tecto, com modulações de preghiera na voz roufenha, chamou para a terra essa pomba da Democracia, que erguera o vôo do Calvario, e vinha com largos sulcos de luz -
foi um enternecimento banhando as almas, um fundo arrepio d'extasi. As senhoras amolleciam nas cadeiras, com a face meia voltada ao céo. No salão abrazado perpassavam frescuras de capella. As rimas fundiam-se n'um murmurio de ladainha, como evoladas para uma Imagem que pregas de setim cobrissem, estrellas d'ouro coroassem. E mal se sabia já se Essa, que se invocava e se esperava, era a deusa da Liberdade – ou Nossa Senhora das Dôres.
Alencar no emtanto via-a descer, espalhando um perfume. Já Ella tocava com os seus pés divinos os valles humanos. Já do seu seio fecundo trasbordava a universal abundancia.
Tudo reflorescia, tudo rejuvenescia:
As rosas têm mais aroma!
Os fructos têm mais doçura!
Brilha a alma clara e pura,
Solta de sombras e véos...
Foge a dôr espavorida,