- Deixa lá, acudiu Ega, é um irresponsavel!
Mas já Carlos corria pelas escadas: Ega seguiu atraz, inquieto, temendo uma violencia.
Quando chegaram á porta, Eusebio mettera para os lados do Carmo. E alcançaram-no no largo da Abegoaria, áquella hora deserto, mudo, com dois bicos de gaz mortiços. Ao vêr Carlos fender assim sobre elle, sem paletot, de peitilho claro na noite escura, o Eusebio, encolhido, balbuciou atarantadamente: «Olá, por aqui...»
- Ouve cá, estupôr! rugiu Carlos, baixo. Então tambem andaste mettido n'essa maroteira da Corneta? Eu devia rachar-te os ossos um a um!
Agarrára-lhe o braço, ainda sem odio. Mas, apenas sentiu na sua mão de forte aquella carne mollenga e tremula, resurgiu n'elle essa aversão nunca apagada - que já em pequeno o fazia saltar sobre o Eusebiosinho, esfrangalhal-o, sempre que as Silveiras o traziam á quinta. E então abanou-o, como outr'ora, furiosamente, gozando o seu furor. O pobre viuvo, no meio das lunetas negras que lhe voavam, do chapéo coberto de luto que lhe rolára nas lages, dançava, escanifrado e desengonçado. Por fim Carlos atirou-o contra a porta d'uma cocheira.
- Acudam! Aqui d'el-rei, policia! rouquejou o desgraçado.
Já a mão de Carlos lhe empolgára as guelas. Mas Ega interveio:
- Alto! Basta! O nosso querido amigo já recebeu a sua dóse...
Elle mesmo lhe apanhou o chapéo. Tremendo, arquejando, de bruços, Eusebiosinho procurava ainda o guarda-chuva. E, para findar, a bota de Carlos atirada com nojo, estatelou-o nas pedras, para cima d'uma sargeta onde restavam immundicies e humidade de cavallo.
O largo permanecia deserto, com o gaz adormecendo nos candieiros baços.
Tranquillamente os dois recolheram ao sarau. No peristylo, cheio de luz e plantas, cruzaram-se com o patriota de barbas em bico, rodeado d'amigos, em caminho para o botequim, limpando ao lenço o pescoço e a face, exclamando com o cansaço radiante d'um triumphador:
- Irra! custou, mas sempre lhes fiz vibrar a corda!
Já o Alencar estaria gorgeando! Os dois amigos galgaram a escada. E com effeito Alencar apparecera no estrado, onde ardia ainda o candelabro de duas velas.
Esguio, mais sombrio n'aquelle fundo côr de canario, o poeta derramou pensativamente pelas cadeiras, pela galeria, um olhar encovado e lento: e um silencio pesou, mais enlevado, diante de tanta melancolia e de tanta solemnidade.
- A Democracia! annunciou o auctor d'Elvira com a pompa d'uma revelação.
Duas vezes passou pelos bigodes o lenço branco, que depois atirou para a mesa. E
levantando a mão n'um gesto demorado e largo:
Era n'um parque. O luar
Sobre os vastos arvoredos,
Cheios de amor e segredos...
- Que lhe disse eu? exclamou o Ega, tocando no cotovêlo do marquez. É sentimento...
Aposto que é o festim!
E era com effeito o festim, já cantado na Flôr de Martyrio, festim romantico, n'um vago jardim onde vinhos de Chypre circulam, caudas de brocado rojam entre macissos de magnolias, e das aguas do lago sobem cantos ao gemer dos violoncellos... Mas bem depressa transpareceu a severa idéa social da Poesia. Emquanto, sob as arvores radiantes de luar, tudo são «risos, brindes, lascivos murmurios» - fôra, junto ás grades douradas do parque, assustada com o latir dos molossos, uma mulher macilenta, em farrapos, chora, aconchegando ao seio magro o filho que pede pão... E o poeta, sacudindo os cabellos para traz, perguntava porque havia ainda esfomeados n'este orgulhoso seculo XIX? De que servira então, desde Spartacus, o esforço desesperado dos homens para a Justiça e
para a Igualdade? De que servira então a cruz do grande Martyr, erguida além na collina, onde, por entre os abetos:
Os raios do sol se somem,
O vento triste se cala...
E as aguias revolteando
D'entre as nuvens estão olhando
Morrer o filho do Homem!
A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com as mãos tremendo no ar, desolava-se de que todo o Genio das gerações fosse impotente para esta coisa simples - dar pão á criança que chora!
Martyrio do coração!
Espanto da consciencia!
Que toda a humana sciencia
Não solva a negra questão!
Que os tempos passem e rolem
E nenhuma luz assome,
E eu veja d'um lado a fome
E do outro a indigestão!
Ega torcia-se, fungando dentro do lenço, jurando que rebentava. «E do outro a indigestão!» Nunca, nas alturas lyricas, se gritára nada tão extraordinario! E sujeitos graves, em redor, sorriam d'aquelle realismo sujo. Um jocoso lembrou que para indigestões já havia o bi-carbonato de potassa.
- Quando não são das minhas! rosnou um cavalheiro esverdinhado, que alargava a fivela do colete.