- Não, obrigado, Villaça. Vamos dar uma volta pelas salas... Vá jantar comnosco. Ás seis! Mas ás seis em ponto, que ha petiscos especiaes.
E os dois amigos atravessaram o perystillo. Ainda lá se conservavam os bancos feudaes de carvalho lavrado, solemnes como coros de cathedral. Em cima porém a ante-camara entristecia, toda despida, sem um movel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos muros. Tapeçarias orientaes que pendiam como n'uma tenda, pratos mouriscos de reflexos de cobre, a estatua da Friorenta rindo e arrepiando-se, na sua nudez de marmore, ao metter o pésinho na agua - tudo ornava agora os aposentos de Carlos em Paris: e outros caixões apilhavam-se a um canto, promptos a embarcar, levando as melhores faianças da Toca.
Depois no amplo corredor, sem tapete, os seus passos soaram como n'um claustro abandonado. Nos quadros devotos, n'um tom mais negro, destacava aqui e além, sob a luz escassa, um hombro descarnado de eremita, a mancha livida d'uma caveira. Uma friagem regelava. Ega levantára a gola do paletot.
No salão nobre os moveis de brocado côr de musgo estavam embrulhados em lençoes d'algodão, como amortalhados, exhalando um cheiro de mumia a terebinthina e camphora.
E no chão, na tela de Constable, encostada á parede, a condessa de Runa, erguendo o seu vestido escarlate de caçadora ingleza, parecia ir dar um passo, sahir do caixilho dourado, para partir tambem, consummar a dispersão da sua raça...
- Vamos embora, exclamou Ega. Isto está lugubre...
Mas Carlos, pallido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Ahi, que era a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente accumulados na confusão das artes e dos seculos, como n'um armazem de bric-à-brac, todos os moveis ricos da Toca. Ao fundo, tapando o fogão, dominando tudo na sua magestade architectural, erguia-se o famoso armario do tempo da Liga Hanseatica, com os seus Martes armados, as portas lavradas, os quatro Evangelistas prégando aos cantos, envoltos n'essas roupagens violentas que um vento de prophecia parece agitar. E Carlos immediatamente descobriu um desastre na cornija, nos
dois faunos que entre trophéos agricolas tocavam ao desafio. Um partira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta bucolica...
- Que brutos! exclamou elle furioso, ferido no seu amor da coisa d'arte. Um movel d'estes!...
Trepou a uma cadeira para examinar os estragos. E Ega, no emtanto, errava entre os outros moveis, cofres nupciaes, contadores hespanhoes, bufetes da Renascença italiana, recordando a alegre casa dos Olivaes que tinham ornado, as bellas noites de cavaco, os jantares, os foguetes atirados em honra de Leonidas... Como tudo passára! De repente deu com o pé n'uma caixa de chapéo sem tampa, atulhada de coisas velhas - um véo, luvas desirmanadas, uma meia de sêda, fitas, flôres artificiaes. Eram objectos de Maria, achados n'algum canto da Toca, para alli atirados, no momento de se esvaziar a casa! E, coisa lamentavel, entre estes restos d'ella, misturados como na promiscuidade d'um lixo, apparecia uma chinela de velludo bordada a matiz, uma velha chinela de Affonso da Maia! Ega escondeu a caixa rapidamente debaixo d'um pedaço solto de tapeçaria. Depois, como Carlos saltava da cadeira, sacudindo as mãos, ainda indignado, Ega apressou aquella peregrinação, que lhe estragava a alegria do dia.
- Vamos ao terraço! Dá-se um olhar ao jardim, e abalamos!
Mas deviam atravessar ainda a memoria mais triste, o escriptorio de Affonso da Maia.
A fechadura estava pêrra. No esforço de abrir a mão de Carlos tremia. E Ega, commovido tambem, revia toda a sala tal como outr'ora, com os seus candieiros Carcel dando um tom côr de rosa, o lume crepitando, o reverendo Bonifacio sobre a pelle d'urso, e Affonso na sua velha poltrona, de casaco de velludo, sacudindo a cinza do cachimbo contra a palma da mão. A porta cedeu: e toda a emoção de repente findou, na grutesca, absurda surpreza de romperem ambos a espirrar, desesperadamente, suffocados pelo cheiro acre d'um pó vago que lhes picava os olhos, os estonteava. Fôra o Villaça, que, seguindo uma receita d'almanach, fizera espalhar ás mãos cheias, sobre os moveis, sobre os lençoes que os resguardavam, camadas espessas de pimenta branca! E estrangulados, sem vêr, sob uma nevoa de lagrimas, os dois continuavam, um defronte do outro, em espirros afflictivos que os desengonçavam.
Carlos por fim conseguiu abrir largamente as duas portadas d'uma janella. No terraço morria um resto de sol. E, revivendo um pouco ao ar puro, alli ficaram de pé, calados, limpando os olhos, sacudidos ainda por um ou outro espirro retardado.
- Que infernal invenção! exclamou Carlos, indignado.
Ega, ao fugir com o lenço na face, tropeçara, batera contra um sofá, coçava a canella:
- Estupida coisa! E que bordoada que eu dei!... Voltou a olhar para a sala, onde todos os moveis desappareciam sob os largos sudarios brancos. E reconheceu que tropeçara na antiga almofada de velludo do velho Bonifacio. Pobre Bonifacio! Que fôra feito d'elle?
Carlos, que se sentára no parapeito baixo do terraço, entre os vasos sem flôr, contou o fim do reverendo Bonifacio. Morrera em Santa Olavia, resignado, e tão obeso que se não movia. E o Villaça, com uma idéa poetica, a unica da sua vida de procurador, mandára-lhe fazer um mausoléo, uma simples pedra de marmore branco, sob uma roseira, debaixo das janellas do quarto do avô.
Ega sentára-se tambem no parapeito, ambos se esqueceram n'um silencio. Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez d'inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido que já ninguem ama: uma ferrugem verde de humidade cobria os grossos membros da Venus Citherea; o cypreste e o cedro envelheciam juntos como dois amigos n'um ermo; e mais lento corria o prantosinho da cascata, esfiado saudosamente gotta a gotta
na bacia de marmore. Depois ao fundo, encaixilhada como uma tela marinha nas cantarias dos dois altos predios, a curta paizagem do Ramalhete, um pedaço de Tejo e monte, tomava n'aquelle fim de tarde um tom mais pensativo e triste: na tira de rio um paquete fechado, preparado para a vaga, ia descendo, desapparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; no alto da collina o moinho parára, transido na larga friagem do ar; e nas janellas das casas á beira d'agua um raio de sol morria, lentamente sumido, esvaído na primeira cinza do crepusculo, como um resto d'esperança n'uma face que se anuvia.
Então, n'aquella mudez de soledade e d'abandono, Ega, com os olhos para o longe, murmurou devagar:
- Mas tu d'esse casamento não tinhas a menor indicação, a menor suspeita?
- Nenhuma... Soube-o de repente pela carta d'ella em Sevilha.
E era esta a formidavel nova annunciada por Carlos, a nova que elle logo contára de madrugada ao Ega, depois dos primeiros abraços, em Santa Apolonia. Maria Eduarda ia casar.
Assim o annunciára ella a Carlos n'uma carta muito simples, que elle recebera na quinta dos Villa-Medina. Ia casar. E não parecia ser uma resolução tomada arrebatadamente sob um impulso do coração; mas antes um proposito lento, longamente amadurecido. Ella alludia n'essa carta a ter «pensado muito, reflectido muito...» De resto o noivo devia ir perto dos cincoenta annos. E Carlos portanto via alli a união de dois sêres desilludidos da vida, maltratados por ella, cansados ou assustados do seu isolamento, que, sentindo um no outro qualidades sérias de coração e de espirito, punham em commum o seu resto de calor, d'alegria e de coragem para affrontar juntos a velhice...
- Que idade tem ella?
Carlos pensava que ella devia ter quarenta e um ou quarenta e dois annos. Ella dizia na carta «sou apenas mais nova que o meu noivo seis annos e tres mezes». Elle chamava-se Mr. de Trelain. E era evidentemente um homem d'espirito largo, desembaraçado de prejuizos, d'uma benevolencia quasi misericordiosa, porque quizera Maria, conhecendo bem os seus erros.
- Sabe tudo? exclamou Ega, que saltára do parapeito.
- Tudo não. Ella diz que Mr. de Trelain conhecia do seu passado «todos aquelles erros em que ella cahira inconscientemente». Isto dá a entender que não sabe tudo... Vamos andando, que se faz tarde, e quero ainda vêr os meus quartos.
Desceram ao jardim. Um momento seguiram calados pela alea onde cresciam outr'ora as roseiras de Affonso. Sob as duas olaias
ainda existia o banco de cortiça; Maria sentára-se alli, na sua visita ao Ramalhete, a atar n'um ramo flôres que ia levar como reliquia. Ao passar Ega cortou uma pequenina margarida que ainda floria solitariamente.
- Ella continúa a viver em Orléans, não é verdade?
Sim, disse Carlos, vivia ao pé d'Orléans, n'uma quinta que lá comprára, chamada Les Rosières. O noivo devia habitar nos arredores algum pequeno château. Ella chamava-lhe
«visinho». E era naturalmente um gentilhomme campagnard, de familia séria, com fortuna...
Ella só tem o que tu lhe dás, está claro.
- Creio que te mandei contar tudo isso, murmurou Carlos. Emfim ella recusou-se a receber parte alguma da sua herança... E o Villaça arranjou as coisas por meio d'uma doação que lhe fiz, correspondente a doze contos de reis de renda...
- É bonito. Ella fallava de Rosa na carta?
- Sim, de passagem, que ia bem... Deve estar uma mulher.
- E bem linda!
Iam subindo a escadinha de ferro torneada que levava do jardim aos quartos de Carlos.