"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » Portuguese Books » 🌘 🌘 ,,Os Maias'' - de Eça de Queirós🌘 🌘

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- D'amor?

- Não... É o Barradas que me anda atirar o retrato a oleo.

- Com a lyra na mão?

- Não, respondeu o maestro, muito sério. Com a batuta... E estou de casaca.

E desabotoou o paletot, mostrou-se em todo o seu esplendor, com dois coraes no peitilho da camisa, e a batuta de marfim mettida na abertura do collete.

- Estás magnifico! affirmou Carlos. Então outra coisa, vem cá jantar logo. Alencar, tu tambem, hein? Quero ouvir esses bellos versos com socego... Ás seis, em ponto, sem falhar.

Tenho um jantarinho á portugueza que encommendei de manhã com cozido, arroz de forno, grão de bico, etc., para matar saudades...

Alencar lançou um gesto immenso de desdem. Nunca o cozinheiro do Braganza, francelhote miseravel, estaria á altura d'esses nobres petiscos do velho Portugal. Emfim acabou-se. Seria pontual ás seis para uma grande saude ao seu Carlos!

- Vocês vão sahir, rapazes?

Carlos e Ega iam ao Ramalhete visitar o casarão.

O poeta declarou logo que isso era romagem sagrada. Então elle partia com o maestro.

O seu caminho ficava tambem para o lado do Barradas... Moço de talento, esse Barradas!...

Um pouco pardo de côr, tudo por acabar, esborratado, mas uma bella ponta de faisca.

- E teve uma tia, filhos, a Leonor Barradas! Que olhos, que corpo! E não era só o corpo! Era a alma, a poesia, o sacrificio!... Já não ha d'isso, já lá vai tudo. Emfim, acabou-se, ás seis!

- Ás seis, em ponto, sem falhar!

Alencar e o maestro partiram, depois de se munirem de charutos. E d'ahi a pouco Carlos e Ega seguiam tambem pela rua do Thesouro Velho, de braço dado, muito lentamente.

Iam conversando de Paris, de rapazes e de mulheres que o Ega conhecêra, havia quatro annos, quando lá passára um tão alegre inverno nos appartamentos de Carlos. E a surpreza do Ega, a cada nome evocado, era o curto brilho, o fim brusco de toda essa mocidade estouvada. A Lucy Gray, morta. A Conrad, morta... E a Maria Blond? Gorda, emburguezada, casada com um fabricante de velas de estearina. O polaco, o louro? Fugido, desapparecido. Mr. de Menant, esse D. Juan? Sub-prefeito no departamento do Doubs.

E o rapaz que morava ao lado, o belga? Arruinado na Bolsa... E outros ainda, mortos, sumidos, afundados no lodo de Paris!

Pois tudo sommado, menino, observou Ega, esta nossa vidinha de Lisboa, simples, pacata, corredia, é infinitamente preferivel.

Estavam no Loreto; e Carlos parára, olhando, reentrando na intimidade d'aquelle velho coração da capital. Nada mudára. A mesma sentinella somnolenta rondava em torno á estatua triste de Camões. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brazões ecclesiasticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O Hotel Alliance conservava o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo sol dourava o lagedo; batedores de chapéo á faia fustigavam as pilecas; tres varinas, de canastra á cabeça, meneavam os quadris, fortes e ageis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina defronte, na Havaneza, fumavam tambem outros vadios, de sobrecasaca, politicando.

- Isto é horrivel quando se vem de fóra! exclamou Carlos. Não é a cidade, é a gente.

Uma gente feiissima, encardida, mollenga, reles, amarellada, acabrunhada!...

- Todavia Lisboa faz differença, affirmou Ega, muito sério. Oh, faz muita differença!

Has de vêr a Avenida... Antes do Ramalhete vamos dar uma volta á Avenida.

Foram descendo o Chiado. Do outro tado os toldos das lojas estendiam no chão uma sombra forte e dentada. E Carlos reconhecia, encostados ás mesmas portas, sujeitos que lá deixára havia dez annos, já assim encostados, já assim melancolicos. Tinham rugas, tinham brancas. Mas lá estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas humbreiras, com collarinhos á moda. Depois, diante da livraria Bertrand, Ega, rindo, tocou no braço de Carlos:

- Olha quem alli está, á porta do Baltresqui!

Era o Damaso. O Damaso, barrigudo, nedio, mais pesado, de flôr ao peito, mamando um grande charuto, e pasmaceando, com o ar regaladamente embrutecido d'um ruminante farto e feliz. Ao avistar tambem os seus dois velhos amigos que desciam, teve um movimento para se esquivar, refugiar-se na confeitaria. Mas, insensivelmente, irresistivelmente, achou-se em frente de Carlos, com a mão aberta e um sorriso na bochecha, que se lhe esbrazeára.

- Olá, por cá!... Que grande surpreza!

Carlos abandonou-lhe dois dedos, sorrindo tambem,

indifferente e esquecido.

- É verdade, Damaso... Como vai isso?

- Por aqui, n'esta semsaboria... E então com demora?

- Umas semanas.

- Estás no Ramalhete?

- No Braganza. Mas não te incommodes, eu ando sempre por fóra.

- Pois sim senhor!... Eu tambem estive em Paris, ha tres mezes, no Continental...

- Ah!... Bem, estimei vêr-te, até sempre! Adeus, rapazes. Tu estás bom, Carlos, estás com boa cara!

- É dos teus olhos, Damaso.

E nos olhos do Damaso, com effeito, parecia reviver a antiga admiração, arregalados, acompanhando Carlos, estudando-lhe por traz a sobrecasaca, o chapéo, o andar, como no tempo em que o Maia era para elle o typo supremo do seu querido chic «uma d'essas coisas que só se vêem lá fóra...»

- Sabes que o nosso Damaso casou? disse o Ega um pouco adiante, travando outra vez do braço de Carlos.

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