O poeta, no emtanto, abysmado na contemplação de Carlos, agarrára-o pelas mãos, com um sorriso largo, que lhe descobria os dentes mais estragados. Achava-o magnifico, varão soberbo, honra da raça... Ah! Paris, com o seu espirito, a sua vida ardente, conserva...
- E Lisboa arraza! acudiu Ega. Já cá tive essa phrase. Vá, abanca, ahi tens o cafésinho e a bebida!
Mas Carlos agora tambem contemplava o Alencar. E parecia-lhe mais bonito, mais poetico, com a sua grenha inspirada e toda branca, e aquellas rugas fundas na face morena, cavadas como sulcos de carros pela tumultuosa passagem das emoções...
- Estás typico, Alencar! Estás a preceito para a gravura e para a estatua!...
O poeta sorria, passando os dedos com complacencia pelos longos bigodes romanticos, que a idade embranquecera e o cigarro amarellára. Que diabo, algumas compensações havia de ter a velhice!... Em todo o caso o estomago não era mau, e conservava-se, caramba, filhos, um bocado de coração.
- O que não impede, meu Carlos, que isto por cá esteja cada vez peor! Mas acabou-se...
A gente queixa-se sempre do seu paiz, é habito humano. Já Horacio se queixava. E vocês, intelligencias superiores, sabeis bem, filhos, que no tempo de Augusto... Sem fallar, é claro, na quéda da republica, n'aquelle desabamento das velhas instituições... Emfim deixemos lá os Romanos! Que está alli n'aquella garrafa? Chablis... Não desgosto, no outono, com as ostras. Pois vá lá o Chablis. E á tua chegada, meu Carlos! e á tua, meu João, e que Deus vos dê as glorias que mereceis, meus rapazes!...
Bebeu. Rosnou: «bom Chablis, bouquet fino». E acabou por abancar, ruidosamente, sacudindo para traz a juba branca.»
- Este Thomaz! exclamava Ega, pousando-lhe a mão no hombro com carinho. Não ha outro, é unico! O bom Deus fel-o n'um dia de grande verve, e depois quebrou a fôrma.
Ora, historias! murmurava o poeta radiante. Havia-os tão bons como elle. A humanidade viera toda do mesmo barro como pretendia a Biblia - ou do mesmo macaco como affirmava o Darwin...
- Que, lá essas coisas d'evolução, origem das especies, desenvolvimento da cellula, cá para mim... Está claro, o Darwin, o Lamarck, o Spencer, o Claudio Bernard, o Littré, tudo isso, é gente de primeira ordem. Mas acabou-se, irra! Ha uns poucos de mil annos que o homem prova sublimemente que tem alma!
- Toma o cafésinho, Thomaz! aconselhou o Ega, empurrando-lhe a chavena. Toma o cafésinho!
- Obrigado!... E é verdade, João, lá dei a tua boneca á pequena. Começou logo a beijal-a, a embalal-a, com aquelle profundo instincto de mãi, aquelle quid divino... É uma sobrinhita minha, meu Carlos. Ficou sem mãi, coitadinha, lá a tenho, lá vou tratando de fazer d'ella uma mulher... Has de vêl-a. Quero que vocês lá vão jantar um dia, para vos dar umas perdizes á hespanhola... Tu demoras-te, Carlos?
- Sim, uma ou duas semanas, para tomar um bom sorvo de ar da patria.
- Tens razão, meu rapaz! exclamou o poeta, puxando a garrafa do cognac. Isto ainda não é tão mau como se diz... Olha tu para isso, para esse céo, para esse rio, homem!
- Com effeito é encantador!
Todos tres, durante um momento, pasmaram para a incomparavel belleza do rio, vasto, lustroso, sereno, tão azul como o céo, esplendidamente coberto de sol.
- E versos? exclamou de repente Carlos, voltando-se para o poeta. Abandonaste a lingua divina?
Alencar fez um gesto de desalento. Quem entendia já a lingua divina? O novo Portugal só comprehendia a lingua da libra, da «massa». Agora, filho, tudo eram syndicatos!
- Mas ainda ás vezes me passa uma coisa cá por dentro, o velho homem estremece... Tu não viste nos jornaes?... Está claro, não lês cá esses trapos que por ahi chamam gazetas...
Pois veio ahi uma coisita, dedicada aqui ao João. Ora eu t'a digo se me lembrar...
Correu a mão aberta pela face escaveirada, lançou à estrophe n'um tom de lamento: Luz d'esperança, luz d'amor,
Que vento vos desfolhou?
Que a alma que vos seguia
Nunca mais vos encontrou!
Carlos murmurou: «Lindo!» Ega murmurou: «Muito fino!» E o poeta, aquecendo, já commovido, esboçou um movimento d'aza que foge:
Minh'alma em tempos d'outr'ora,
Quando nascia o luar,
Como um rouxinol que acorda
Punha-se logo a cantar.
Pensamentos era flôres,
Que a aragem lenta de Maio...
- O snr. Cruges! annunciou o criado, entreabrindo a porta.
Carlos ergueu os braços. E o maestro, todo abotoado n'um paletot claro, abandonou-se á effusão de Carlos, balbuciando:
- Eu só hontem é que soube. Queria-te ir esperar, mas não me acordaram...
- Então continúa o mesmo desleixo? exclamava Carlos, alegremente. Nunca te acordam?
Cruges encolhia os hombros, muito vermelho, acanhado, depois d'aquella longa separação. E foi Carlos que o obrigou a sentar-se ao lado, enternecido com o seu velho maestro, sempre esguio, com o nariz mais agudo, a grenha cahindo mais crespa sobre a gola do paletot.
- E deixa-me dar-te os parabens! Lá soube pelos jornaes, o triumpho, a linda opera-comica, a Flôr de Sevilha...
- De Granada! acudiu o maestro. Sim, uma coisita para ahi, não desgostaram. - Uma belleza! gritou Alencar, enchendo outro copo de cognac. Uma musica toda do sul, cheia de luz, cheirando a laranjeira... Mas já lhe tenho dito: «Deixa lá a opereta, rapaz, vôa mais alto, faze uma grande symphonia historica!» Ainda ha dias lhe dei uma idéa. A partida de D. Sebastião para a Africa. Cantos de marinheiros, atabales, o chôro do povo, as ondas batendo... Sublime! Qual, põe-se-me lá com castanholas... Emfim, acabou-se, tem muito talento, e é como se fosse meu filho porque me sujou muita calça!...
Mas o maestro, inquieto, passava os dedos pela grenha. Por fim confessou a Carlos que não se podia demorar, tinha um rendez-vous...