O enterro foi ao outro dia, á uma hora. O Ega, o marquez, o Craft, o Sequeira levaram o caixão até á porta, seguidos pelo grupo d'amigos, onde destacava o conde de Gouvarinho, solemnissimo, de gran-cruz. O conde de Steinbroken, com o seu secretario, trazia na mão uma corôa de violetas. Na calçada estreita os trens apertavam-se, n'uma longa fila que subia, se perdia pelas outras ruas, pelas travessas: em todas as janellas do bairro se apinhava gente: os polícias berravam com os cocheiros. Por fim o carro, muito simples, rodou, seguido por duas carruagens da casa, vazias, com as lanternas recobertas de longos véos de crepe que pendiam. Atraz, um a um, desfilaram os trens da Companhia com os convidados, que abotoavam os casacos, corriam os vidros contra a friagem do dia ennevoado. O Darque e o Vargas iam no mesmo coupé. O correio do Gouvarinho passou choutando na sua pileca branca. E, sobre a rua deserta, cerrou-se finalmente para um grande luto o portão do Ramalhete.
Quando Ega voltou do cemiterio encontrou Carlos no quarto, rasgando papeis, emquanto o Baptista, atarefado, de joelhos no tapete, fechava uma mala de couro. E como Ega, pallido e arrepiado de frio, esfregava as mãos, Carlos fechou a gaveta cheia de cartas, lembrou que fossem para o fumoir onde havia lume.
Apenas lá entraram, Carlos correu o reposteiro, olhou para o Ega:
- Tens duvida em lhe ir fallar, a ella?
- Não. Para que?... Para lhe dizer o que?
- Tudo.
Ega rolou uma poltrona para junto da chaminé, despertou as brazas. E Carlos, ao lado, proseguiu devagar, olhando o lume:
- Além d'isso, desejo que ella parta, que parta já para Paris... Seria absurdo ficar em Lisboa... Emquanto se não liquidar o que lhe pertence, hade-se-lhe estabelecer uma mezada, uma larga mezada... Villaça vem d'aqui a bocado para fallar d'esses detalhes... Em todo o caso, ámanhã, para ella partir, levas-lhe quinhentas libras.
Ega murmurou:
- Talvez para essas questões de dinheiro fosse melhor ir lá o Villaça...
- Não, pelo amor de Deus! Para que se ha de fazer córar a pobre creatura diante do Villaça?...
Houve um silencio. Ambos olhavam a chamma clara que bailava.
- Custa-te muito, não é verdade, meu pobre Ega?...
- Não... Começo a estar embotado. É fechar os olhos, tragar mais essa má hora, e depois descansar. Quando voltas tu de Santa Olavia?
Carlos não sabia. Contava que Ega, terminada essa missão á rua de S. Francisco, fosse aborrecer-se uns dias com elle a Santa Olavia. Mais tarde era necessario trasladar para lá o corpo do avô...
- E passado isso, vou viajar... Vou á America, vou ao Japão, vou fazer esta coisa estupida e sempre efficaz que se chama distrahir...
Encolheu os hombros, foi devagar até á janella, onde morria pallidamente um raio de sol na tarde que clareára. Depois voltando para o Ega, que de novo remexia os carvões: Eu, está claro, não me atrevo a dizer-te que venhas, Ega... Desejava bem, mas não me atrevo!
Ega pousou devagar as tenazes, ergueu-se, abriu os braços para Carlos, commovido:
- Atreve, que diabo... Porque não?
- Então vem!
Carlos puzera n'isto toda a sua alma. E ao abraçar o Ega corriam-lhe na face duas grandes lagrimas.
Então Ega reflectiu. Antes de ir a Santa Olavia precisava fazer uma romagem á quinta de Celorico. O Oriente era caro. Urgia pois arrancar á mãi algumas letras de credito... E
como Carlos pretendia ter «bastante para o luxo d'ambos», Ega atalhou muito sério:
- Não, não! Minha mãi tambem é rica. Uma viagem á America e ao Japão são fórmas de educação. E a mamã tem o dever de completar a minha educação. O que acceito, sim, é uma das tuas malas de couro...
Quando n'essa noite, acompanhados pelo Villaça, Carlos e Ega chegaram á estação de Santa Apolonia, o comboio ia partir. Carlos mal teve tempo de saltar para o seu compartimento reservado - emquanto o Baptista, abraçado ás mantas de viagem, empurrado pelo guarda, se içava desesperadamente para outra carruagem, entre os protestos dos sujeitos que a atulhavam. O trem immediatamente rolou. Carlos debruçou-se á portinhola, gritando ao Ega: - «Manda um telegramma ámanhã a dizer o que houve!»
Recolhendo ao Ramalhete com o Villaça, que ia n'essa noite colligir e sellar os papeis de Affonso da Maia, Ega fallou logo nas quinhentas libras que elle devia entregar na manhã seguinte a Maria Eduarda. Villaça recebera com effeito essa ordem de Carlos. Mas francamente, entre amigos, não lhe parecia excessiva a somma, para uma jornada? Além d'isso Carlos fallára em estabelecer a essa senhora uma mezada de quatro mil francos, cento e sessenta libras! Não achava tambem exagerado? Para uma mulher, uma simples mulher...
Ega lembrou que essa simples mulher tinha direito legal a muito mais...
- Sim, sim, resmungou o procurador. Mas tudo isso de legalidade tem ainda de ser muito estudado. Não fallemos n'isso. Eu nem gósto de fallar d'isso!...
Depois como Ega alludia á fortuna que deixava Affonso da Maia - Villaça deu detalhes. Era decerto uma das boas casas de Portugal. Só o que viera da herança de Sebastião da Maia, representava bem quinze contos de renda. As propriedades do Alemtejo, com os trabalhos que lá fizera o pai d'elle Villaça, tinham triplicado de valor. Santa Olavia era uma despeza. Mas as quintas ao pé de Lamego, um condado.
- Ha muito dinheiro! exclamou elle com satisfação, batendo no joelho do Ega. E isto, amigo, digam lá o que disserem, sempre consola de tudo.
- Consola de muito, com effeito.
Ao entrar no Ramalhete, Ega sentia uma longa saudade pensando no lar feliz e amavel que alli houvera e que para sempre se apagára. Na ante-camara, os seus passos já lhe pareceram soar tristemente como os que se dão n'uma casa abandonada. Ainda errava um vago cheiro de incenso e de phenol. No lustre do corredor havia uma luz só e dormente.
- Já anda aqui um ar de ruina, Villaça.
- Ruinasinha bem confortavel, todavia murmurou o procurador dando um olhar ás tapeçarias e aos divans, e esfregando as mãos, arrepiado da friagem da noite.
Entraram no escriptorio de Affonso, onde durante um momento se ficaram aquecendo ao lume.O relogio Luiz XV bateu finalmente as nove horas - depois a toada argentina do seu minuete vibrou um instante e morreu. Villaça preparou-se para começar a sua tarefa.
Ega declarou que ia para o quarto arranjar tambem a sua papelada, fazer a limpeza final de dois annos de mocidade...
Subiu. E pousára apenas a luz sobre a commoda, quando sentiu ao fundo, no silencio do corredor, um gemido longo, desolado, d'uma tristeza infinita. Um terror arrepiou-lhe os cabellos. Aquillo arrastava-se, gemia no escuro, para o lado dos aposentos d'Affonso da Maia. Por fim, reflectindo que toda a casa estava acordada, cheia de criados e de luzes, Ega ousou dar alguns passos no corredor, com o castiçal na mão tremula.
Era o gato! Era o reverendo Bonifacio, que, diante do quarto d'Affonso, arranhando a porta fechada, miava doloridamente. Ega escorraçou-o, furioso. O pobre Bonifacio fugiu, obeso e lento, com a cauda fôfa a roçar o chão: mas voltou logo e esgatanhando a porta, roçando-se pelas pernas do Ega, recomeçou a miar, n'um lamento agudo, saudoso como o d'uma dôr humana, chorando o dono perdido que o acariciava no collo e que não tornára a apparecer.
Ega correu ao escriptorio a pedir ao Villaça que dormisse essa noite no Ramalhete. O
procurador accedeu, impressionado com aquelle horror do gato a chorar. Deixára o montão de papeis sobre a mesa, voltára a aquecer os pés ao lume dormente. E voltando-se para o Ega, que se sentára, ainda todo pallido, no sofá bordado a matiz, antigo logar de D. Diogo, murmurou devagar, gravemente: