Ao meio dia, em cima, Ega acabava de vestir-se quando Villaça lhe rompeu pelo quarto de braços abertos.
- Então como foi isto, como foi isto?
Baptista mandára-o chamar pelo trintanario, mas o rapazola pouco lhe soubera contar.
Agora em baixo o pobre Carlos abraçára-o, coitadinho, lavado em lagrimas, sem poder dizer nada, pedindo-lhe só para se entender em tudo com o Ega... E alli estava.
- Mas como foi, como foi, assim de repente?...
Ega contou, brevemente, como tinham encontrado Affonso de manhã no jardim, tombado para cima da mesa de pedra. Viera o dr. Azevedo, mas tudo acabára!
Villaça levou as mãos á cabeça:
- Uma coisa assim! Creia o amigo! Foi essa mulher, essa mulher que ahi appareceu, que o matou! Nunca foi o mesmo depois d'aquelle abalo! Não foi mais nada! Foi isso!
Ega murmurava, deitando machinalmente agua de Colonia no lenço:
- Sim, talvez, esse abalo, e oitenta annos, e poucas cautelas, e uma doença de coração.
Fallaram então do enterro, que devia ser simples como convinha áquelle homem simples. Para depositar o corpo, emquanto não fosse trasladado para Santa Olavia, Ega lembrára-se do jazigo do marquez.
Villaça coçava o queixo, hesitando:
- Eu tambem tenho um jazigo. Foi o proprio snr. Affonso da Maia que o mandou erguer para meu pai, que Deus haja... Ora parece-me que por uns dias ficava lá perfeitamente. Assim não se pedia a ninguem, e eu tinha n'isso muita honra...
Ega concordou. Depois fixaram outros detalhes de convite, de hora, de chave do caixão. Por fim Villarça, olhando o relogio, ergueu-se com um grande suspiro:
- Bem, vou dar esses tristes passos! E cá appareço logo, que o quero vêr pela ultima vez, quando o tiverem vestido. Quem me havia de dizer! Ainda antes de hontem a jogar com elle... Até lhe ganhei tres mil reis, coitadinho!
Uma onda de saudade suffocou-o, fugiu com o lenço nos olhos.
Quando Ega desceu, Carlos, todo de luto, estava sentado á escrivaninha, diante d'uma folha de papel. Immediatamente ergueu-se, arrojou a penna.
- Não posso!... Escreve-lhe tu ahi, a ella, duas palavras.
Em silencio, Ega tomou a penna, redigiu um bilhete muito curto. Dizia: «Minha senhora. O snr. Affonso da Maia morreu esta madrugada, de repente, com uma apoplexia.
V. exc.ª comprehende que, n'este momento, Carlos nada mais póde do que pedir-me para
eu transmittir a v. exc.ª esta desgraçada noticia. Creia-me, etc.» Não o leu a Carlos. E como Baptista entrava n'esse momento, todo de preto, com o almoço n'uma bandeja, Ega pediu-lhe para mandar o trintanario com aquelle bilhete á rua de S. Francisco. Baptista segredou sobre o hombro do Ega:
- É bom não esquecer as fardas de luto para os criados...
- O snr. Villaça já sabe.
Tomaram chá á pressa em cima do taboleiro. Depois Ega escreveu bilhetes a D. Diogo e ao Sequeira, os mais velhos amigos d'Affonso: e davam duas horas quando chegaram os homens com o caixão para amortalhar o corpo. Mas Carlos não permittiu que mãos mercenarias tocassem no avô. Foi elle e o Ega, ajudados pelo Baptista, que, corajosamente, recalcando a emoção sob o dever, o lavaram, o vestiram, o depuzeram dentro do grande cofre de carvalho, forrado de setim claro, onde Carlos collocou uma miniatura de sua avó Runa. Á tarde, com auxilio de Villaça, que voltára «para dar o ultimo olhar ao patrão», desceram-no ao escriptorio, que Ega não quizera alterar nem ornar, e que, com os damascos escarlates, as estantes lavradas, os livros juncando a carteira de pau preto, conservava a sua feição austera de paz estudiosa. Sómente, para depôr o caixão, tinham juntado duas largas mesas, recobertas por um panno de velludo negro que havia na casa, com as armas bordadas a ouro. Por cima o Christo de Rubens abria os braços sobre a vermelhidão do poente. Aos lados ardiam doze castiçaes de prata. Largas palmas d'estufa cruzavam-se á cabeceira do esquife, entre ramos de camelias. E Ega accendeu um pouco de incenso em dois perfumadores de bronze.
Á noite o primeiro dos velhos amigos a apparecer foi D. Diogo, solemne, de casaca.
Encostado ao Ega, aterrado diante do caixão, só pôde murmurar: - «E tinha menos sete mezes que eu!» O marquez veio já tarde, abafado em mantas, trazendo um grande cesto de flôres. Craft e o Cruges nada sabiam, tinham-se encontrado na rampa de Santos; - e receberam a primeira surpreza ao vêr fechado o portão do Ramalhete. O ultimo a chegar foi o Sequeira, que passára o dia na quinta, e se abraçou em Carlos, depois no Craft ao acaso, entontecido, com uma lagrima nos olhos injectados, balbuciando: - «Foi-se o companheiro de muitos annos. Tambem não tardo!...»
E a noite de vigilia e pezames começou, lenta e silenciosa. As doze chammas das velas ardiam, muito altas, n'uma solemnidade funeraria. Os amigos trocaram algum murmurio abafado, com as cadeiras chegadas. Pouco a pouco, o calor, o aroma do incenso, a exhalação das flôres forçaram o Baptista a abrir uma das janellas do terraço. O céo estava cheio d'estrellas. Um vento fino susurrara nas ramagens do jardim.
Já tarde Sequeira, que não se movera d'uma poltrona, com os braços cruzados, teve uma tontura. Ega levou-o á sala de jantar, a reconfortal-o com um calice de cognac. Havia lá uma ceia fria, com vinhos e dôces. E Craft veio tambem - com o Taveira, que soubera a desgraça na redacção da Tarde, e correra quasi sem jantar. Tomando um pouco de Bordeus, uma sandwich, Sequeira reanimava-se, lembrava o passado, os tempos brilhantes, quando Affonso e elle eram novos. Mas emmudeceu vendo apparecer Carlos, pallido e vagaroso como um somnambulo, que balbuciou: «Tomem alguma coisa, sim, tomem alguma coisa...»
Mexeu n'um prato, deu uma volta á mesa, sahiu. Assim vagamente foi até á antecamara, onde todos os candelabros ardiam. Uma figura esguia e negra surgiu da escada.
Dois braços enlaçaram-no. Era o Alencar.
- Nunca vim cá nos dias felizes, aqui estou na hora triste!
E o poeta seguiu pelo corredor, em pontas de pés, como pela nave d'um templo.
Carlos no emtanto deu ainda alguns passos pela ante-camara. Ao canto d'um divan ficára um grande cesto com uma corôa de flôres, sobre que pousava uma carta. Reconheceu a letra de Maria. Não lhe tocou, recolheu ao escriptorio. Alencar, diante do caixão, com a mão pousada no hombro do Ega, murmurava: «Foi-se uma alma de heroe!»
As velas iam-se consumindo. Um cansaço pesava. Baptista fez servir café no bilhar. E
ahi, apenas recebeu a sua chavena, Alencar, cercado do Cruges, do Taveira, do Villaça, rompeu a fallar tambem do passado, dos tempos brilhantes d'Arroios, dos rapazes ardentes d'então:
- Vejam vocês, filhos, se se encontra ainda uma gente como estes Maias, almas de leões, generosos, valentes!... Tudo parece ir morrendo n'este desgraçado paiz!... Foi-se a faisca, foi-se a paixão... Affonso da Maia! Parece que o estou a vêr, á janella do palacio em Bemfica, com a sua grande gravata de setim, aquella cara nobre de portuguez d'outr'ora... E lá vai! E o meu pobre Pedro tambem... Caramba, até se me faz a alma negra!
Os olhos ennevoavam-se-lhe, deu um immenso sorvo ao cognac.
Ega, depois de beber um gole de café, voltára ao escriptorio, onde o cheiro d'incenso espalhava uma melancolia de capella. D. Diogo, estirado no sofá, resonava; Sequeira defronte dormitaVa tambem, descahido sobre os braços cruzados, com todo o sangue na face. Ega despertou-os de leve. Os dois velhos amigos, depois d'um abraço a Carlos, partiram na mesma carruagem, com os charutos accêsos. Os outros, pouco a pouco, iam tambem abraçar Carlos, enfiavam os paletots. O ultimo a sahir foi Alencar, que, no pateo, beijou o Ega, n'um impulso d'emoção, lamentando ainda o passado, os companheiros desapparecidos:
- O que me vale agora são vocês, rapazes, a gente nova. Não me deitem á margem!
Senão, caramba, quando quizer fazer uma visita tenho d'ir ao cemiterio. Adeus, não apanhes frio!