Com a mão na porta da vidraça, Ega parou ainda, n'uma derradeira curiosidade:
- E que effeito te fez isso?
Carlos accendia o charuto. Depois atirando o phosphoro por cima da varandinha de ferro onde uma trepadeira se enlaçava:
- Um effeito de conclusão, de absoluto remate. É como se ella morresse, morrendo com ella todo o passado, e agora renascesse sob outra fórma. Já não é Maria Eduarda. É
Madame de Trelain, uma senhora franceza. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braças, findo para sempre, sem mesmo deixar memoria... Foi o effeito que me fez.
- Tu nunca encontraste em Paris o snr. Guimarães?
- Nunca. Naturalmente morreu.
Entraram no quarto. Villaça, na supposição de Carlos vir para o Ramalhete, mandára-o preparar; e todo elle regelava - com o marmore das commodas espanejado e vazio, uma vela intacta n'um castiçal solitario, a colcha de fustão vincada de dobras sobre o leito sem cortinados. Carlos pousou o chapéo e a bengaIa em cima da sua antiga mesa de trabalho.
Depois, como dando um resumo:
- E aqui tens tu a vida, meu Ega! N'este quarto, durante noites, soffri a certeza de que tudo no mundo acabára para mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trappa. E tudo isto friamente, com uma conclusão logica. Por fim dez annos passaram, e aqui estou outra vez...
Parou diante do alto espelho suspenso entre as uas columnas de carvalho lavrado, deu um geito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente:
- E mais gordo!
Ega espalhava tambem pelo quarto um olhar pensativo:
- Lembras-te quando appareci aqui uma noite, n'uma agonia, vestido de Mephistopheles?
Então Carlos teve um grito. E a Rachel, é verdade! A Rachel? Que era feito da Rachel, esse lirio d'Israel?
Ega encolheu os hombros:
- Para ahi anda, estuporada...
Carlos murmurou - «coitada! E foi tudo o que disseram sobre a grande paixão romantica do Ega.
Carlos no emtanto fôra examinar, junto da janella, um quadro que pousava no chão, para alli esquecido e voltado para a parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de camurça na mão, os grandes olhos arabes na face triste e pallida que o tempo amarellára mais. Collocou-o em cima d'uma commoda. E atirando-lhe uma leve sacudidella com o lenço:
- Não ha nada que me faça mais pena do que não ter um retrato do avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris.
Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se enterrára, se, n'esses ultimos annos, elle não tivera a idéa, o vago desejo de voltar para Portugal...
Carlos considerou Ega com espanto. Para que? Para arrastar os passos tristes desde o Gremio até á Casa Havaneza? Não! Paris era o unico logar da terra congenere com o typo definitivo em que elle se fixára: - «o homem rico que vive bem». Passeio a cavallo no Bois;
almóço no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no club com os jornaes; um bocado de florete na sala d'armas; á noite a Comédie Française ou uma soirée; Trouville no verão, alguns tiros ás lebres no inverno; e através do anno as mulheres, as corridas, certo interesse pela sciencia, o bric-à-brac, e uma pouca de blague. Nada mais inoffensivo, mais nullo, e mais agradavel.
- E aqui tens tu uma existencia d'homem! Em dez annos não me tem succedido nada, a não ser quando se me quebrou o phaeton na estrada de Saint-Cloud..: Vim no Figaro.
Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
- Falhámos a vida, menino!
- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é falha-se sempre na realidade aquella vida que se planeou com a imaginacão. Diz-se: «vou ser assim, porque a belleza está em ser assim». E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquez. Ás vezes melhor, mas sempre differente.
Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.
O quarto escurecia no crepusculo frio e melancolico d'inverno. Carlos pôz tambem o chapéo: e desceram pelas escadas forradas de velludo côr de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panoplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que n'aquella primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residencia ecclesiastica, com as suas paredes severas, a sua fila de janellinhas fechadas, as grades dos postigos terreos cheias de treva, mudo, para sempre deshabitado, cobrindo-se já de tons de ruina.
Uma commoção passou-lhe n'alma, murmurou, travando do braço do Ega:
- É curioso! Só vivi dois annos n'esta casa, e é n'ella que me parece estar mettida a minha vida inteira!
Ega não se admirava. Só alli no Ramalhete elle vivera realmente d'aquillo que dá sabôr e relevo á vida - a paixão.
- Muitas outras coisas dão valor á vida... Isso é uma velha idéa de romantico, meu Ega!
- E que somos nós? exclamou Ega. Que temos nós sido desde o collegio, desde o exame de latim? Romanticos: isto é, individuos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...
Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca d'ella, torturando-se para se manter na sua linha inflexivel, sêccos, hirtos, logicos, sem emoção até ao fim...
- Creio que não, disse o Ega. Por fóra, á vista, são desconsoladores. E por dentro, para elles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que n'este lindo mundo ou tem de se ser insensato ou semsabor...
- Resumo: não vale a pena viver...
- Depende inteiramente do estomago! atalhou Ega.
Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua theoria da vida, a theoria definitiva que elle deduzira da experiencia e que agora o governava. Era o fatalismo musulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquillidade com que se acolhem as naturaes mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, n'esta placidez, deixar esse pedaço de materia organisada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter appetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera, n'esses estreitos annos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinára o sabio do Ecclesiastes, em desillusão e poeira.