'Alencar,etc. etc. O nosso amigo e collaborador João da Ega fez-nos, no ultimo shakehands, a promessa de nos mandar algumas cartas com as suas impressões do Japão, esse delicioso paiz d'onde nos vem o sol e a moda! É uma boa nova para todos os que prezam a observação e o espirito. Au revoir!»
Depois d'estas linhas affectuosas (em que o Alencar collaborára) as primeiras noticias dos «viajantes» vieram, n'uma carta do Ega para o Villaça, de New-York. Era curta, toda de negocios. Mas elle ajuntava um post-scriptum com o titulo de Informações geraes para os
amigos. Contava ahi a medonha travessia desde Liverpool, a persistente tristeza de Carlos, e New-York coberta de neve sob um sol rutilante. E acrescentava ainda: «Está-se apossando de nós a embriaguez das viagens, decididos a trilhar este estreito Universo até que cancem as nossas tristezas. Planeamos ir a Pekin, passar a Grande Muralha, atravessar a Asia Central, o oasis de Merv, Khiva, e penetrar na Russia; d'ahi, pela Armenia e pela Syria, descer ao Egypto a retemperar-nos no sagrado Nilo; subir depois a Athenas, lançar sobre a Acropole uma saudação a Minerva; passar a Napoles; dar um olhar a Argelia e a Marrocos; e cahir emfim ao comprido em Santa Olavia lá para os meados de 79 a descançar os membros fatigados. Não escrevinho mais porque é tarde,e vamos á Opera vêr a Patti no Barbeiro. Larga distribuição d'abraços a todos os amigos queridos.»
Villaça copiou este paragrapho, e trazia-o na carteira para mostrar aos fieis amigos do Ramalhete. Todos approvaram, com admiração, tão bellas, aventurosas jornadas. Só Cruges, aterrado com aquella vastidão do Universo, murmurou tristemente: «Não voltam cá!»
Mas, passado anno e meio, n'um lindo dia de março, Ega reappareceu no Chiado. E foi uma sensação! Vinha esplendido, mais forte, mais trigueiro, soberbo de verve, n'um alto apuro de toilette, cheio de historias e de aventuras do Oriente, não tolerando nada em arte ou poesia que não fosse do Japão ou da China, e annunciando um grande livro,o «seu livro», sob este titulo grave de chronica heroica - Jornadas da Asia.
- E Carlos?...
Magnifico! Installado em Paris, n'um delicioso appartamento dos Campos-Elyseos, fazendo a vida larga d'um principe artista da Renascença...
Ao Villaça porém, que sabia os segredos, Ega confessou que Carlos ficára ainda abalado. Vivia, ria, governava o seu phaeton no Bois - mas lá no fundo do seu coração permanecia, pesada e negra, a memoria da «semana terrivel».
Todavia os annos vão passando, Villaça, acrescentou elle. E com os annos, a não ser a China, tudo na terra passa...
E esse anno passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam. Outros annos passaram.
Nos fins de 1886, Carlos veio fazer o Natal perto de Sevilha, a casa d'um amigo seu de Paris, o marquez de Villa-Medina. E d'essa propriedade dos Villa-Medina, chamada La Soledad, escreveu para Lisboa ao Ega annunciando que - depois d'um exilio de quasi dez annos, resolvera vir ao velho Portugal vêr as arvores de Santa Olavia e as maravilhas da Avenida. De resto tinha uma formidavel nova, que assombraria o bom Ega: e se elle já ardia em curiosidade, que viesse ao seu encontro com o Villaça, comer o porco a Santa Olavia.
- Vae casar! pensou Ega.
Havia tres annos (desde a sua ultima estada em Paris) que elle não via Carlos.
Infelizmente não pôde correr a Santa Olavia, retido n'um quarto do Braganza com uma angina, desde uma ceia prodigiosamente divertida com que celebrára no Silva a noite de Reis. Villaça, porém, levou a Carlos para Santa Olavia uma carta em que o Ega, contando a sua angina, lhe supplicava que se não retardasse com o porco n'esses penhascos do Douro, e que voasse á grande Capital a trazer a grande nova.
Com effeito, Carlos pouco se demorou em Rezende. E n'uma luminosa e macia manhã de janeiro de 1887, os dois amigos emfim juntos almoçavam n'um salão do Hotel Braganza, com as duas janellas abertas para o rio.
Ega, já curado, radiante, n'uma excitação que não se calmava, alagando-se de café, entalava a cada instante o monoculo para admirar Carlos e a sua «immutabilidade».
- Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra de fadiga!... Tudo isso é Paris, menino!... Lisboa arraza. Olha para mim, olha para isto!
Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado do nariz, na face chupada.
E o que o aterrava sobretudo era a calva, uma calva que começára havia dois annos, alastrára, já reluzia no alto.
- Olha este horror! A sciencia para tudo acha um remedio, menos para a calva!
Transformam-se as civilisações, a calva fica!... Já tem tons de bola de bilhar, não é verdade?... De que será?
- É a ociosidade, lembrou Carlos rindo.
- A ociosidade... E tu, então?
De resto, que podia elle fazer n'este paiz?... Quando voltára de França, ultimamente, pensára em entrar na diplomacia. Para isso sempre tivera a blague: e agora que a mamã, coitada, lá estava no seu grande jazigo em Celorico, tinha a massa. Mas depois reflectira.
Por fim, em que consistia a diplomacia portugueza? N'uma outra fórma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o sentimento constante da propria insignificancia. Antes o Chiado!
E como Carlos lembrava a Politica, occupação dos inuteis, Ega trovejou. A politica!
Isso tornára-se moralmente e physicamente nojento, desde que o negocio atacára o constitucionalismo como uma phylloxera! Os politicos hoje eram bonecos de engonços,que faziam gestos e tomavam attitudes porque dois ou tres financeiros por traz lhes puxavam pelos cordeis... Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual! Ahi é que estava o horror. Não tinham feitio, não tinham maneiras, não se lavavam, não limpavam as unhas... Coisa extraordinaria, que em paiz algum succedia, nem na Romelia, nem na Bulgaria! Os tres ou quatro salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem fôr, largamente, excluem a maioria dos politicos. E porque? Porque as senhoras têm nôjo!
- Olha o Gouvarinho! Vê lá se elle recebe ás terças-feiras os seus correligionarios...
Carlos que sorria, encantado com aquella veia acerba do Ega, saltou na cadeira:
- É verdade, e a Gouvarinho, a nossa boa Gouvarinho?
Ega, passeando pela sala, deu as novas dos Gouvarinhos. A condessa herdára uns sessenta contos de uma tia excentrica que vivia a Santa Isabel, tinha agora melhores carruagens, recebia sempre ás terças-feiras. Mas soffria uma doença qualquer, grave, no figado ou no pulmão. Ainda elegante todavia, muito séria, uma terrivel flôr de pruderie...
Elle, o Gouvarinho, ahi continuava, palrador, escrevinhador, politicote, impertigadote, já grisalho, duas vezes ministro, e coberto de gran-cruzes...
- Tu não os viste em Paris, ultimamente?
- Não. Quando soube fui-lhes deixar bilhetes, mas tinham partido na vespera para Vichy...
A porta abriu-se, um brado cavo resoou:
- Até que emfim, meu rapaz!
- Oh Alencar! gritou Carlos, atirando o charuto.
E foi um infinito abraço, com palmadas arrebatadas pelos hombros, e um beijo ruidoso
- o beijo paternal do Alencar, que tremia, commovido. Ega arrastára uma cadeira, berrava pelo escudeiro:
- Que tomas tu, Thomaz? Cognac? Curaçáo? Em todo o caso café! Mais café! Muito forte, para o snr. Alencar!