- Tudo é uma fatalidade! V. exc.ª é nova, ainda lhe resta muita coisa na vida, tem a sua filha a consolal-a de tudo... Nem lhe sei dizer mais nada!
Suffocado, beijou-lhe a mão que ella lhe abandonou, sem consciencia e sem voz, de pé, direita no seu negro luto, com a lividez parada d'um marmore. E fugiu.
- Ao telegrapho! gritou em baixo ao cocheiro.
Foi só na rua do Ouro que começou a serenar, tirando o chapéo, respirando largamente.
E ia então repetindo a si mesmo rodas as consolações que se poderiam dar a Maria Eduarda: era nova e formosa; o seu peccado fôra inconsciente; o tempo acalma toda a dôr; e em breve, já resignada, encontrar-se-hia com uma familia séria, uma larga fortuna, n'esse amavel Paris, onde uns lindos olhos, com algumas notas de mil francos, têm sempre um reinado seguro...
- É uma situação de viuva bonita e rica, terminou elle por dizer alto no coupé. Ha peor na vida.
Ao sahir do telegrapho despediu a tipoia. Por aquella luz consoladora do dia de inverno, recolheu a pé para o Ramalhete, a escrever a longa carta que promettera a Carlos.
Villaça já lá estava installado, com um boné de velludilho na cabeça, emmassando ainda os papeis de Affonso, liquidando as contas dos criados. Jantaram tarde. E fumaram junto do lume, na sala Luiz XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora, em baixo, n'uma carruagem, procurava o snr. Ega. Foi um terror. Imaginaram logo Maria, alguma resolução
desesperada. Villaça ainda teve a esperança d'ella trazer alguma nova revelação, que tudo mudasse, salvasse da «bolada»... Ega desceu a tremer. Era Melanie n'uma tipoia de praça, abafada n'uma grande ulster com uma carta de Madame.
Á luz da lanterna Ega abriu o enveloppe, que trazia apenas um cartão branco, com estas palavras a lapis: «Decidi partir ámanhã para Paris.»
Ega recalcou a curiosidade de saber como estava a senhora. Galgou logo as escadas: e seguido de Villaça, que ficára na ante-camara á espreita, correu ao escriptorio d'Affonso, a escrever a Maria. N'um papel tarjado de luto dizia-lhe (além de detalhes sobre bagagens)-
que o wagon-salão estava tomado até Paris, e que elle teria a honra de a vêr em Santa Apolonia. Depois, ao fazer o sobrescripto, ficou com a penna no ar, n'um embaraço. Devia pôr «Madame Mac-Gren» ou «D. Maria Eduarda da Maia?» Villaça achava preferivel o antigo nome, porque ella legalmente ainda não era Maia. Mas, dizia o Ega atrapalhado, tambem já não era Mac-Gren...
-Acabou-se! Vae sem nome. Imagina-se que foi esquecimento...
Levou assim a carta, dentro do sobrescripto em branco. Melanie guardou-a no regalo.
E, debruçada portinhola, entristecendo a voz, desejou saber, da parte de Madame, onde estava enterrado o avô do senhor...
Ega ficou com o monoculo sobre ella, sem sentir bem se aquella curiosidade de Maria era indiscreta ou tocante. Por fim deu uma indicação. Era nos Prazeres, á direita, ao fundo, onde havia um anjo com uma tocha. O melhor seria perguntar ao guarda pelo jazigo dos snrs. Villaças.
- Merci, monsieur, bien le bonsoir.
- Bonsoir, Melanie!
No dia seguinte, na estação de Santa Apolonia, Ega, que viera cedo com o Villaça, acabava de despachar a sua bagagem para o Douro, quando avistou Maria que entrava trazendo Rosa pela mão. Vinha toda envolta n'uma grande pelliça escura, com um véo dobrado, espesso como uma mascara: e a mesma gaze de luto escondia o rostosinho da pequena, fazendo-lhe um laço sobre a touca. Miss Sarah, n'uma ulster clara de quadrados, sobraçava um masso de livros. Atraz o Domingos, com olhos muito vermelhos, segurava um rôlo de mantas, ao lado de Melanie carregada de preto que levava Niniche ao collo. Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a pelo braço, em silencio, ao wagon-salão que tinha todas as cortinas cerradas. Junto do estribo ella tirou devagar a luva. E muda, estendeu-lhe a mão.
- Ainda nos vemos no Entroncamento, murmurou Ega. Eu sigo tambem para o Norte.
Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao vêr sumir-se n'aquella carruagem de luxo, fechada, mysteriosa, uma senhora que parecia tão bella, d'ar tão triste, coberta de negro. E apenas Ega fechou a portinhola, o Neves, o da Tarde e do Tribunal de Contas, rompeu d'entre um rancho, arrebatou-lhe o braço com sofreguidão:
- Quem é?
Ega arrastou-o pela plataforma, para lhe deixar cahir no ouvido, já muito adiante, tragicamente:
- Cleopatra!
O politico, furioso, ficou rosnando: «Que asno!...» Ega abalára. Junto do seu compartimento Villaça esperava, ainda deslumbrado com aquella figura de Maria Eduarda, tão melancolica e nobre. Nunca a vira antes. E parecia-lhe uma rainha de romance.
- Acredite o amigo, fez-me impressão! Caramba, bella mulher! Dá-nos uma bolada, mas é uma soberba praça!
O comboio partiu. O Domingos ficava choramingando com um lenço de côres sobre a face. E o Neves, o conselheiro do Tribunal de Contas, ainda furioso, vendo o Ega á portinhola, atirou-lhe de lado, disfarçadamente, um gesto obsceno.
No Entroncamento Ega veio bater nos vidrosdo salão que se conservava fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia. Miss Sarah lia a um canto, com a cabeça n'uma almofada. E Niniche assustada ladrou.
- Quer tomar alguma coisa, minha senhora ?
- Não, obrigada...
Ficaram calados, emquanto Ega com o pé no estribo tirava lentamente a charuteira. Na estação mal alumiada passavam saloios, devagar, abafados em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a machina resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavam em frente do salão, com olhares curiosos e já languidos para aquella magnifica mulher, tão grave e sombria, envolta na sua pelliça negra.
- Vai para o Porto? murmurou ella.
- Para Santa Olavia...
- Ah!
Então Ega balbuciou com os beiços a tremer:
- Adeus!
Ella apertou-lhe a mão com muita força, em silencio, suffocada.
Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a tiracollo que corriam a beber á cantina. Á porta do buffete voltou-se ainda, ergueu o chapéo. Ella, de pé, moveu de leve o braço n'um lento adeus. E foi assim que elle pela derradeira vez na vida viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, á portinhola d'aquelle wagon que para sempre a levava.
VIII
Semanas depois, nos primeiros dias d'anno novo, a Gazeta Illustrada trazia na sua columna do High-life esta noticia: «O distincto e brilhante sportman, o snr. Carlos da Maia, e o nosso amigo e collaborador João da Ega, partiram hontem para Londres, d'onde seguirão em breve para a America do Norte, devendo d'ahi prolongar a sua interessante viagem até ao Japão. Numerosos amigos foram a bordo do Tamar despedir-se dos sympathicos touristes. Vimos entre outros os snrs. ministro da Filandia e seu secretario, o marquez de Souzella, conde de Gouvarinho, visconde de Darque, Guilherme Craft, Telles da Gama, Cruges, Taveira, Villaça, general Sequeira, o glorioso poeta Thomaz