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Já assim pensára na vespera. Já assim pensára... Mas antevira então um outro horror, um supremo castigo, a esperal-o na solidão onde se sepultasse. Jfi lhe percebera mesmo a aproximação; já n'outra noite recebera d'elle um arrepio; já n'essa noite, deitado junto de Maria, que adormecera cansada, o presentira, apoderando-se d'elle, com um primeiro frio d'agonia.

Era, surgindo do fundo do seu sêr, ainda tenue mas já perceptivel, uma saciedade, uma repugnancia por ella desde que a sabia do seu sangue!... Uma repugnancia material, carnal, á flôr da pelle, que passava como um arrepio. Fôra primeiramente aquelle aroma que a envolvia, fluctuava entre os cortinados, lhe ficava a elle na pelle e no fato, o excitava tanto

outr'ora, o impacientava tanto agora – que ainda na vespera se encharcára em agua de Colonia para o dissipar. Fôra depois aquelle corpo d'ella, adorado sempre como um marmore ideal, que de repente lhe apparecera, como era na sua realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de Amazona barbara, com todas as bellezas copiosas do animal de prazer. Nos seus cabellos d'um lustre tão macio, sentia agora inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda n'essa noite, o tinham assustado como se fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os seus braços o enlaçavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos tumidos de seiva, ainda decerto lhe punham nas veias uma chamma que era toda bestial. Mas, apenas o ultimo suspiro lhe morria nos labios, ahi começava insensivelmente a recuar para a borda do colchão, com um susto estranho: e immovel, encolhido na roupa, perdido no fundo d'uma infinita tristeza, esquecia-se pensando n'uma outra vida que podia ter, longe d'alli, n'uma casa simples, toda aberta ao sol, com sua mulher, legitimamente sua, flôr de graça domestica, pequenina, tímida, pudica, que não soltasse aquelles gritos lascivos, e não usasse esse aroma tão quente! E desgraçadamente agora já não duvidava... Se partisse com ella, seria para bem cedo se debater no indizível horror de um nojo physico. E que lhe restaria então, morta a paixão que fôra a desculpa do crime, ligado para sempre a uma mulher que o enojava - e que era... Só lhe restava matar-se!

Mas, tendo por um só dia dormido com ella, na plena consciencia da consanguinidade que os separava, poderia recomeçar a vida tranquillamente? Ainda que possuisse frieza e força para apagar dentro em si essa memoria - ella não morreria no coração do avô, e do seu amigo. Aquelle ascoroso segredo ficaria entre elles, estragando, maculando tudo. A existencia d'ora ávante só lhe offerecia intoleravel amargôr... Que fazer, santo Deus, que fazer! Ah, se alguem o podesse aconselhar, o podesse consolar! Quando chegou á porta de casa o seu desejo unico era atirar-se aos pés d'um padre, aos pés d'um santo, abrir-lhe as miserias do seu coração, implorar-lhe a doçura da sua misericordia! Mas ali onde havia um santo?

Defronte do Ramalhete os candieiros ainda ardiam. Abriu de leve a porta. Pé ante pé, subiu as escadas ensurdecidas pelo velludo côr de cereja. No patamar tacteava, procurava a vela - quando, através do reposteiro entreaberto, avistou uma claridade que se movia no fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou no recanto. O clarão chegava, crescendo: passos lentos, pesados, pisavam surdamente o tapete: a luz surgiu - e com ella o avô em mangas de camisa, livido, mudo, grande, espectral. Carlos não se moveu, suffocado; e os dois olhos do velho, vermelhos, esgazeados, cheios de horror, cahiram sobre elle, ficaram sobre elle, varando-o até ás profundidades d'alma, lendo lá o seu segredo. Depois, sem uma palavra, com a cabeça branca a tremer, Affonso atravessou o patamar, onde a luz sobre o velludo espalhava um tom de sangue: - e os seus passos perderam-se no interior da casa, lentos, abafados, cada vez mais sumidos, como se fossem os derradeiros que devesse dar na vida!

Carlos entrou no quarto ás escuras, tropeçou n'um sofá e alli se deixou cahir, com a cabeça enterrada nos braços, sem pensar, sem sentir, vendo o velho livido passar, repassar diante d'elle como um longo phantasma, com a luz avermelhada na mão. Pouco a pouco foi-o tomando um cansaço, uma inercia, uma infinita lassidão da vontade, onde um desejo apenas transparecia, se alongava - o desejo de interminavelmente repousar algures n'uma grande mudez e n'uma grande treva... Assim escorregou ao pensamento da morte. Ella seria a perfeita cura, o asylo seguro. Porque não iria ao seu encontro? Alguns grãos de laudano n'essa noite e penetrava na absoluta paz...

Ficou muito tempo, embebendo-se n'esta idéa que lhe dava allivio e consolo, como se, escorraçado por uma tormenta ruidosa, visse diante dos seus passos abrir-se uma porta d'onde sahisse calor e silencio. Um rumor, o chilrear d'um passaro na janella, fez-lhe sentir o sol e o dia. Ergueu-se, despiu-se muito devagar, n'uma immensa molleza. E mergulhou na cama, enterrou a cabeça no travesseiro para recahir na doçura d'aquella inercia, que era um antegosto da morte, e não sentir mais nas horas que lhe restavam nenhuma luz, nenhuma coisa da terra.

O sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto:

- Ó snr. D. Carlos, ó meu menino! O avô achou-se mal no jardim, não dá accordo!...

Carlos pulou do leito, enfiando um paletot que agarrára. Na ante-camara a governante, debruçada no corrimão, gritava, afflicta: - «Adiante, homem de Deus, ao pé da padaria, o snr. dr. Azevedo!» E um moço que corria, com que esbarrou no corredor, atirou, sem parar:

- Ao fundo, ao pé da cascata, snr. D. Carlos, na mesa de pedra!...

Affonso da Maia lá estava, n'esse recanto do quintal, sob os ramos do cedro, sentado no banco de cortiça, tombado por sobre a tosca mesa, com a face cahida entre os braços. O

chapéo desabado rolára para o chão; nas costas, com a gola erguida, conservava o seu velho capote azul... Em volta, nas folhas das camelias, nas aleas arcadas, refulgiu, côr d'ouro, o sol fino d'inverno. Por entre as conchas da cascata o fio d'agua punha o seu choro lento.

Arrebatadamente, Carlos levatára-lhe a face, já rigida, côr de cera, com os olhos cerrados, e um fio de sangue aos cantos da longa barba de neve. Depois cahiu de joelhos no chão humido, sacudia-lhe as mãos, murmurando: - «Ó avò! Ó avô!» - Correu ao tanque, borrifou-o d'agua:

- Chamem alguem! chamem alguem!

Outra vez lhe palpava o coração... Mas estava morto. Estava morto, já frio, aquelle corpo que, mais velho que o seculo, resistira tão formidavelmente, como um grande roble, aos annos e aos vendavaes. Alli morrera solitariamente, já o sol ia alto, n'aquella tosca mesa de pedra onde deixára pender a cabeça cansada.

Quando Carlos se ergueu, Ega apparecia, esguedelhado, embrulhado no robe-de-chambre. Carlos abraçou-se n'elle, tremendo todo, n'um chôro despedaçado. Os criados em redor olharam, aterrados. E a governante, como tonta, entre as ruas de roseiras, gemia com as mãos na cabeça: - «Ai o meu rico senhor, ai o meu rico senhor!»

Mas o porteiro, esbaforido, chegava com o medico, o dr. Azevedo, que felizmente encontrára na rua. Era um rapaz, apenas sahido da Escóla, magrinho e nervoso, com as pontas do bigode muito frisadas. Deu em redor, atarantadamente, um comprimento aos criados, ao Ega, e a Carlos, que procurava serenar com a face lavada de lagrimas. Depois, tendo descalçado a luva, estudou todo o corpo de Affonso com uma lentidão, uma minuciosidade que exagerava, á medida que sentia em volta, mais anciosos e attentos n'elle, todos aquelles olhos humedecidos. Por fim, diante de Carlos, passando nervosamente os dedos no bigode, murmurou termos technicos... De resto, dizia, já o collega se teria compenetrado de que tudo infelizmente findára. Elle sentia das véras da alma o desgosto...

Se para alguma coisa fosse necessario, com o maximo prazer...

- Muito agradecido a v. exc.ª, balbuciou Carlos.

Ega, em chinelas, deu alguns passos com o snr. dr. Azevedo, para lhe indicar a porta do jardim.

Carlos no emtanto ficára defronte do velho, sem chorar, perdido apenas no espanto d'aquelle brusco fim! Imagens do avô, do avô vivo e forte, cachimbando ao canto do fogão,

regando de manhã as roseiras, passaram-lhe n'alma, em tropel, deixando-lh'a cada vez mais dorida e negra... E era então um desejo de findar tambem, encostar-se como elle áquella mesa de pedra, e sem outro esforço, nenhuma outra dôr da vida, cahir como elle na sempiterna paz. Uma restea de sol, entre os ramos grossos do cedro, batia a face morta de Affonso. No silencio os passaros, um momento espantados, tinham recomeçado a chalrar.

Ega veio a Carlos, tocou-lhe no braço:

- É necessario leval-o para cima.

Carlos beijou a mão fria que pendia. E, devagar, com os beiços a tremer, levantou o avô pelos hombros carinhosamente. Baptista correra a ajudar; Ega, embaraçado no seu largo roupão, segurava os pés do velho. Através do jardim, do terraço cheio de sol, do escriptorio onde a sua poltrona esperava diante do lume accêso, foram-o transportando n'um silencio só quebrado pelos passos dos criados, que corriam a abrir as portas, acudiam quando Carlos, na sua perturbação, ou o Ega fraquejavam sob o peso do grande corpo.

A governante já estava no quarto d'Affonso com uma colcha de sêda para estender na singela cama de ferro, sem cortinado. E alli o depuzeram emfim sobre as ramagens claras bordadas na sêda azul.

Ega accendera dois castiçaes de prata: a governante, de joelhos á beira do leito, esfiava o rosario: e Mr. Antoine, com o seu barrete branco de cozinheiro na mão, ficára á porta, junto d'um cesto que trouxera, cheio de camelias e palmas de estufa. Carlos, no emtanto, movendo-se pelo quarto, com longos soluços que o sacudiam, voltava a cada instante, n'uma derradeira e absurda esperança, palpar as mãos ou o coração do velho. Com o jaquetão de velludilho, os seus grossos sapatos brancos, Affonso parecia mais forte e maior, na sua rigidez, sobre o leito estreito: entre o cabello de neve cortado á escovinha e a longa barba desleixada, a pelle ganhára um tom de marfim velho, onde as rugas tomaram a dureza d'entalhaduras a cinzel: as palpebras engelhadas, de pestanas brancas, pousavam com a consolada serenidade de quem emfim descança; e ao deitarem-no uma das mãos ficára-lhe aberta e posta sobre o coração, na simples e natural attitude de quem tanto pelo coração vivêra!

Carlos perdia-se n'esta contemplação dolorosa. E o seu desespero era que o avô assim tivesse partido para sempre, sem que entre elles houvesse um adeus, uma dôce palavra trocada. Nada! Apenas aquelle olhar angustiado, quando passára com a vela accêsa na mão.

Já então elle ia andando para a morte. O avô sabia tudo, d'isso morrera! E esta certeza sem cessar lhe batia n'alma, com uma longa pancada repetida e lugubre. O avô sabia tudo, d'isso morrera!

Ega veio com um gesto indicar-lhe o estado em que estavam - elle de robe-de-chambre, Carlos com o paletot sobre a camisa de dormir:

- É necessario descer, é necessario vestir-nos.

Carlos balbuciou:

- Sim, vamo-nos vestir...

Mas não se arredava. Ega levou-o brandamente pelo braço. Elle caminhava como um somnambulo, passando o lenço devagar pela testa e pela barba. E de repente no corredor, apertando desesperadamente as mãos, outra vez coberto de lagrimas, n'um agoniado desabafo de toda a sua culpa:

Ega, meu querido Ega! O avô viu-me esta manhã quando entrei! E passou, não me disse nada... Sabia tudo, foi isso que o matou!...

Ega arrastou-o, consolou-o, repellindo tal idéa. Que tolice! O avô tinha quasi oitenta annos, e uma doença de coração... Desde a volta de Santa Olavia, quantas vezes elles tinham fallado n'isso, aterrados! Era absurdo ir agora fazer-se mais desgraçado com semelhante imaginação!

Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhos postos no chão:

- Não! É estranho, não me faço mais desgraçado! Aceito isto como um castigo... Quero que seja um castigo... E sinto-me só muito pequeno, muito humilde diante de quem assim me castiga. Esta manhã pensava em matar-me. E agora não! É o meu castigo viver, esmagado para sempre... O que me custa é que elle não me tivesse dito adeus!!

De novo as lagrimas lhe correram, mas lentas, mansamente, sem desespero. Ega levou-o para o quarto, como uma criança. E assim o deixou a um canto do sofá, com o lenço sobre a face, n'um chôro continuo e quieto, que lhe ia lavando, alliviando o coração de todas as angustias confusas e sem nome que n'esses dias derradeiros o traziam suffocado.

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