Alencar abalára. E os dois deixaram o botequim, trocando impressões do sarau. O snr.
Guimarães estava enojado com a carolice, a sabujice d'esse Rufino. Quando o ouvira palrar das azas da princeza e da cruz do adro, quasi lhe gritára cá do fundo: «Quanto te pagam para isso, miseravel?»
Mas de repente Ega estacou na escada, tirando o chapéo:
- Oh snr.ª baroneza, então já nos abandona?
Era a Alvim que descia devagar, com a Joanninha
Villar, atando as largas fitas d'uma capa de pellucia verde. Queixou-se d'uma dôr de cabeça que a torturava, apesar de ter gostado loucamente do Rufino... Mas uma noite toda de litteratura, que estafa! E agora, para mais, ficára lá um homemzinho a fazer musica classica...
- É o meu amigo Cruges!
- Ah! é seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse antes o Pirolito.
- V. exc.ª afllige-me com esse desdem pelos grandes mestres... Não quer que a vá acompanhar á carruagem? Paciencia... Muito boa noite, snr.ª D. Joanna!... Um servo seu, snr.ª baroneza! E Deus lhe tire a sua dôr de cabeça!
Ella voltou-se ainda no degrau, para o ameaçar risonhamente com o leque:
- Não seja impostor! O snr. Ega não acredita em Deus.
- Perdão... Que o Diabo lhe tire a sua dôr de cabeça, snr.ª baroneza!
O velho democrata desapparecera discretamente. E da ante-sala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um môcho muito baixo que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca - o Cruges, com o nariz bicudo contra o caderno da Sonata, martellando sabiamente o teclado. Foi então subindo em pontas de pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada, quasi vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cançadas, bocejavam por traz dos leques.
Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um rancho intimo, a marquesa de Soutal, as duas Pedrosos, a Thereza Darque. E a boa D. Maria tocou-lhe logo no braço para saber quem era aquelle musico de cabelleira.
- Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges.
O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o não conheciam. E era composiçao d'elle, aquella coisa triste?
- É de Beethoven, snr.ª D. Maria da Cunha, a Sonata pathetica.
Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da Sonata. E a marqueza de Soutal, muito séria, muito bella, cheirando devagar um frasquinho de saes, disse que era a Sonata pateta. Por toda a bancada foi um rastilho de risos suffocados. A Sonata pateta! Aquillo parecia divino! Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face enorme, imberbe e côr de papoula:
- Muito bem, snr.ª marqueza, muito catita!
E passou o gracejo a outras senhoras, que se voltavam, sorriam á marqueza, entre o frou-frou dos leques. Ella triumphava, bella e séria, com um velho vestido de velludo preto, respirando os saes - emquanto adiante um amador de barba grisalha cravava n'aquelle rancho ruidoso dois grandes oculos d'ouro que faiscavam de cólera.
No emtanto, por toda a sala, o susurro crescia. Os encatarrhoados tossiam livremente.
Dois cavalheiros tinham aberto a Tarde. E cahido sobre o teclado, oom a gola da casaca fugida para a nuca, o pobre Cruges, suando, estonteado por aquella desattenção rumorosa, atabalhoava as notas, n'uma debandada.
- Fiasco completo, declarou Carlos que se aproximára do Ega e do rancho.
Foi para D. Maria da Cunha uma alegria, uma surpreza! Até que emfim se via o snr.
Carlos da Maia, o Principe Tenebroso! Que fizera elle durante esse verão? Todo o mundo a esperal-o em Cintra, alguem mesmo com anciedade... Um chut furioso do amador de barbas grisalhas emmudeceu-a. E justamente Cruges, depois de bater dois accordes bruscos, arredára o môcho, esgueirava-se do estrado, enxugando as mãos ao lenço. Aqui e além algumas palmas resoaram, molles e de cortezia, entre um grande murmurio d'allivio.
E o Ega e Carlos correram á porta, onde já esperavam o marquez, o Craft, o Taveira - para abraçar, consolar o pobre Cruges que tremia todo, com os olhos esgazeados.
E immediatamente, no silencio atento que redominava, um sujeito muito magro, muito alto, surgiu no tablado, com um manuscripto na mão. Alguem ao lado do Ega disse que era o Prata, que ia fallar sobre o Estado agricola da provincia do Minho. Atraz, um criado veio collocar sobre a mesa um candelabro de duas velas: o Prata, d'ilharga para a luz, mergulhou no caderno: e d'entre o perfil triste e as folhas largas um rumor lento foi escorrendo, rumor de reza n'uma somnolencia de novena, onde por vezes destacavam como gemidos - «riqueza dos gados..., esphacelamento da propriedade..., fertil e desprotegida região...»
Começou então uma debandada sorrateira e formigueira, que nem os chuts do commissario do sarau, vigilante e de pé sobre um degrau do estrado, podiam conter. Só as senhoras ficavam; e um ou outro burocrata idoso, que se inclinava zelosamente para o murmurio de reza, com a mão em concha sobre a orelha.
Ega, que fugia tambem «ao vecejante paraiso do Minho», achou-se em frente do snr.
Guimarães.
- Que massada, hein?
O democrata concordou que aquelle preopinante não lhe parecia divertido... Depois, mais sério, com outra idéa, segurando um botão da casaca do Ega:
- Eu espero que v. exc.ª ha pouco não ficasse com a impressão de que eu sou solidario ou me importo com meu sobrinho...
Oh! decerto que não! Ega vira bem que o snr. Guimarães não tinha pelo Damaso nenhum enthusiasmo de familia.
- Asco, senhor, só asco! Quando elle foi a primeira vez a Paris, e soube que eu morava n'uma trapeira, nunca me procurou! Porque aquelle imbecil dá-se ares d'aristocrata... E
como v. exc.ª sabe, é filho d'um agiota!
Puxou a charuteira, ajuntou gravemente:
- A mãi, sim! Minha irmã era d'uma boa familia. Fez aquelle desgraçado casamento, mas era d'uma boa familia! Que, com os meus principios, já v. exc.ª vê que tudo isso de fidalguia, pergaminhos, brazões, são para mim blague e mais blague! Mas emfim os factos são os factos, a historia de Portugal ahi está... Os Guimarães da Bairrada eram de sangue azul.
Ega sorriu, n'um assentimento cortez:
- E v. exc.ª então parte brevemente para Paris?