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Ega pareceu surprendido... Coisa séria!?

- Bem, vamos nós lá abaixo tomar tambem um grog! E que recitas tu logo, Alencar?

- A Democracia, foi dizendo o poeta pela escada, com certa reserva. Uma coisita nova, tu verás... São algumas verdades duras a toda essa burguezia...

Estavam á porta do botequim - e precisamente o snr. Guimaráes sahia, com o chapéo sobre o olho, de charuto accêso, abotoando a sobrecasaca. Alencar lançou a apresentação, com immensa gravidade:

- O meu amigo João da Ega... O meu velho amigo Guimarães, um bravo cá dos nossos, um veterano da Democracia.

Ega acercou-se d'uma mesa, puxou cortezmente um banco para o veterano da Democracia, quiz saber se elle preferia cognac ou cerveja.

- Tomei agora o meu grog de guerra, disse o snr. Guimarães com seccura, tenho para toda a noite.

Um criado dava uma limpadella lenta sobre o marmore da mesa. Ega ordenou cerveja.

E directamente, largando o charuto, passando a mão pelas barbas a retocar a magestade da face, o snr. Guimarães começou com lentidão e solemnidade:

- Eu sou tio do Damaso Salcede, e pedi aqui ao meu velho amigo Alencar para me apresentar a v. exc.ª, com o fim de o intimar a que olhe bem para mim e que diga se me acha cara de bebedo...

Ega comprehendeu, atalhou logo, cheio de franqueza e bonhomia:

- V. exc.ª refere-se a uma carta que seu sobrinho me escreveu...

- Carta que v. exc.ª dictou! Carta que v. exc.ª o forçou a assignar!

- Eu?...

- Affirmou-m'o elle, senhor!

Alencar interveio:

- Fallem vocês baixo, que diabo!... Isto é terra de curiosos...

O snr. Guimarães tossiu, chegou a cadeira mais para a mesa. Tinha estado, contou elle, havia semanas fóra de Lisboa por negocios da herança de seu irmão. Não vira o sobrinho, porque só por necessidade se encontrava com esse imbecil. Na vespera, em casa d'um antigo amigo, o Vaz Forte, deitára por acaso os olhos ao Futuro, um jornal republicano, bem escripto, mas frouxo de idéas. E avistára logo na primeira pagina, em typo enorme, sob esta rubrica aliás justa Coisas do highlife, a carta do sobrinho... Imagine o snr. Ega o seu furor! Alli mesmo, em casa do Forte, escrevera ao Damaso pouco mais ou menos n'estes termos: «Li a tua infame declaração. Se ámanhã não fazes outra, em todos os jornaes, dizendo que não tinhas intenção de me incluir entre os bebedos da tua familia, vou ahi e quebro-te os ossos um por um. Treme!» Assim lhe escrevera. E sabia o snr. João da Ega qual fôra a resposta do snr. Damaso?

- Tenho-a aqui, é um documento humano, como diz o amigo Zola! Aqui está... Grande papel, monogramma d'ouro, corôa de conde. Aquelle asno! Quer v. exc.ª que eu leia?

A um gesto risonho do Ega, elle mesmo leu, lentamente, e sublinhando:

- «Meu caro tio! A carta de que falla foi escripta pelo snr. João da Ega. Eu era incapaz de tal desacato á nossa querida família. Foi elle que me agarrou na mão, á força, para eu assignar: e eu, n'aquella atrapalhação, sem saber o que fazia, assignei para evitar fallatorios.

Foi um laço que me armaram os meus inimigos. O meu querido tio, que sabe como eu gósto de si, que até estava o anno passado com tenção, se soubesse a sua morada em Paris, de lhe mandar meia pipa de vinho de Collares, não fique pois zangado commigo. Bem

infeliz já eu sou! E se quizer procure esse João da Ega que me perdeu! Mas acredite que hei de tirar uma vingança que ha de ser fallada!

Ainda não decidi qual, n'esta atarantação; mas em todo o caso a nossa familia ha de ficar desenxovalhada, porque eu nunca admitti que ninguem brincasse com a minha dignidade...

E se o não fiz já antes de partir para Italia, se ainda não pugnei pela minha honra, é porque ha dias, com todos estes abalos, veio-me uma tremenda dysenteria, que estou que me não tenho nas pernas. Isto por cima dos meus males moraes!...» V. exc.ª ri-se, snr. Ega?

- Pois que quer v. exc.ª que eu faça? balbuciou o Ega por fim, suffocado, com os olhos em lagrimas. Rio-me eu, ri-se o Alencar, ri-se v. exc.ª. Isso é extraordinario! Essa dignidade, essa dysenteria...

O snr. Guimarães, embaçado, olhou o Ega, olhou o poeta que fungava sob os longos bigodes, e terminou por dizer:

- Com effeito, a carta é d'uma cavalgadura... Mas o facto permanece...

Então Ega appellou para o bom senso do snr. Guimarães, para a sua experiencia das coisas d'honra. Comprehendia elle que dois cavalheiros, indo desafiar um homem a sua casa, lhe agarrem no pulso, o forcem violentamente a assignar uma carta em que elle se declara bebedo?...

O snr. Guimarães, agradado com aquella deferencia pelo seu tacto e pela sua experiencia, confessou que o caso, pelo menos em Paris, seria pouco natural.

- E em Lisboa, senhor! Que diabo, isto não é a Cafraria! E diga-me o snr. Guimarães outra coisa, de gentleman para gentleman:

como considera seu sobrinho? um homem irreprehensivelmente veridico?

O snr. Guimarães cofiou as barbas, declarou lealmente:

- Um refinado mentiroso.

- Então! gritou Ega em triumpho, atirando os braços ao ar.

De novo Alencar interveio. A questão parecia-lhe satisfactoriamente finda. E não restava senão os dois apertarem-se a mão fraternalmente, como bons democratas...

Já de pé, atirou a genebra ás guelas. Ega sorria, estendia a mão ao snr. Guimarães. Mas o velho demagogo, ainda com uma sombra na face enrugada, desejou que o snr. João da Ega (se n'isso não tinha duvida) declarasse, alli diante do amigo Alencar, que não lhe achava a elle, Guimarães, cara de bebedo...

- Oh meu caro senhor! exclamou Ega, batendo com o dinheiro na mesa para chamar o criado. Pelo contrario! O maior prazer em proclamar diante do Alencar, e aos quatro ventos, que lhe acho a cara d'um perfeito cavalheiro e d'um patriota!

Então trocaram um rasgado aperto de mãos - emquanto o snr. Guimarães affirmava a sua satisfação por conhecer o snr. João da Ega, moço de tantos dotes e tão liberal. E quando s. exc.ª quizesse qualquer coisa, politica ou litteraria, era escrever este endereço bem conhecido no mundo:

- Redaction du RAPPEL, Paris!

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