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Então Ega, cedendo tambem a todo aquelle conchego tepido e amavel, enterrou-se no sofá com o charuto, para escutar a canção d'Ophelia, de que Maria já murmurava baixo as palavras scismadoras e tristes:

Pâle et blonde,

Dort sous l'eau profonde...

Ega adorava esta velha ballada escandinavia. Mais porém o encantava Maria que nunca lhe parecera tão bella: o vestido claro que tinha n'essa noite modelava-a com a perfeição d'um marmore: e entre as velas do piano, que lhe punham um traço de luz no perfil puro e tons d'ouro esfiado no cabello - o incomparavel eburneo da sua pelle ganhava em esplendor e mimo... Tudo n'ella era harmonioso, são, perfeito... E quanto aquella serenidade da sua fórma devia tornar delicioso o ardor da sua paixão! Carlos era positivamente o homem mais feliz d'estes reinos! Em torno d'elle só havia facilidades, doçuras. Era rico, intelligente, d'uma saude de pinheiro novo; passava a vida adorando e adorado; só tinha o numero d'inimigos que é necessario para confirmar uma superioridade; nunca soffrera de dyspepsia; jogava as armas bastante para ser temido; e na sua complacencia de forte nem a tolice publica o irritava. Sêr verdadeiramente ditoso!.

- Quem é por fim esse Rufino? perguntou Carlos, alongando mais os pés pelo tapete, quando Maria findou a canção d'Ophelia.

Ega não sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um inspirado...

Maria, que procurava os nocturnos de Chopin, voltou-se:

- É esse grande orador de que fallavam na Toca?

Não, não! Esse era outro, a sério, um amigo de Coimbra, o José Clemente, homem d'eloquencia e de pensamento... Este Rufino era um ratão de pera grande, deputado por Monção, e sublime n'essa arte, antigamente nacional e hoje mais particularmente provinciana, de arranjar, n'um voz de theatro e de papo, combinações sonoras de palavras...

- Detesto isso! rosnou Carlos.

Maria tambem achava intoleravel um sujeito a chilrear, sem idéas, como um passaro n'um galho d'arvore...

- É conforme a occasião, observou Ega, olhando o relogio. Uma valsa de Strauss tambem não tem idéas, e á noite, com mulheres n'uma sala, é deliciosa...

Não, não! Maria entendia que essa rhetorica amesquinhava sempre a palavra humana, que, pela sua natureza mesma, só póde servir para dar forma, ás idéas. A musica, essa, falla aos nervos. Se se cantar uma marcha a uma criança, ella ri-se e salta no collo...

- E se lhe lêres uma pagina de Michelet, concluiu Carlos, o anjinho secca-se e berra!

- Sim, talvez, considerou o Ega. Tudo isso depende da latitude e dos costumes que ella cria. Não ha inglez, por mais culto e espiritualista, que não tenha um fraco pela força, pelos athletas, pelo sport, pelos musculos de ferro. E nós, os meridionaes, por mais criticos, gostamos do palavriadinho mavioso. Eu cá pelo menos, á noite, com mulheres, luzes, um piano e gente de casaca, pello-me por um bocado de rhetorica.

E, com o appetite assim desperto, ergueu-se logo para enfiar o paletot, voar á Trindade, n'um receio de perder o Rufino.

Carlos deteve-o ainda, com uma grande idéa:

- Espera. Descobri melhor, fazemos o sarau aqui! Maria toca Beethoven; nós declamamos Mussuet, Hugo, os parnasianos; temos padre Lacordaire se te appetece a eloquencia; e passa-se a noite n'uma medonha orgia d'ideal!...

- E ha melhores cadeiras, acudiu Maria.

- Melhores poetas, affirmou Carlos.

- Bons charutos!

- Bom cognac!

Ega alçou os braços ao ar, desolado. Ahi está como se pervertia um cidadão, impedindo-o de proteger as letras patrias – com promessas perfidas de tabaco e de bebidas!... Mas de resto elle não tinha só uma razão litteraria para ir ao sarau. O Cruges tocava uma das suas Meditações d'Outono, e era necessario dar palmas ao Cruges.

- Não digas mais! gritou Carlos, dando um pulo da poltrona. Esquecia-me o Cruges!...

É um dever d'honra! Abalemos.

E d'ahi a pouco, tendo beijado a mão de Maria que ficava ao piano, os dois, surprehendidos com a belleza d'essa noite d'inverno, tão clara e dôce, seguiam devagar pela rua - onde Carlos ainda duas vezes se voltou para olhar as janellas alumiadas.

- Estou bem contente, exclamou elle travando do braço do Ega, em ter deixado os Olivaes!... Aqui ao menos podemos reunir-nos para um bocado de cavaco e de litteratura...

Tencionava arranjar a sala com mais gosto e conforto, converter o quarto ao lado n'um fumoir forrado com as suas colchas da India, depois ter um dia certo em que viessem os amigos cear... Assim se realisava o velho sonho, o cenaculo de dilettantismo e d'arte...

Além d'isso havia a lançar a Revista, que era a suprema pandega intellectual. Tudo isto annunciava um inverno chic a valer, como dizia o defunto Damaso.

- E tudo isto, resumiu o Ega, é dar civilisação ao paiz. Positivamente, menino, vamo-nos tornar grandes cidadãos!...

- Se me quizerem erguer uma estatua, disse Carlos alegremente, que seja aqui na rua de S. Francisco... Que belleza de noite!

Pararam á porta do theatro da Trindade no momento em que, d'uma tipoia de praça, se apeava um sujeito de barbas de apostolo, todo de luto, com um chapéo de largas abas recurvas á moda de 1830. Passou junto dos dois amigos sem os vêr, recolhendo um troco á bolsa. Mas Ega reconheceu-o.

- É o tio do Damaso, o demagogo! Bello typo!

- E segundo o Damaso, um dos bebedos da familia, lembrou Carlos rindo.

Por cima, de repente, no salão, estalaram grandes palmas. Carlos, que dava o paletot ao porteiro, receou que já fosse o Cruges...

- Qual! disse o Ega. Aquillo é applaudir de rhetorica!

E com effeito, quando pela escada ornada de plantas chegaram ao ante-salão, onde dois sujeitos de casaca passeavam em bicos de pés, segredando - sentiram logo um vozeirão tumido, garganteado, provinciano, de vogaes arrastadas em canto, invocando lá do fundo, do estrado, «a alma religiosa de Lamartine!...»

- É o Rufino, tem estado soberbo! murmurou o Telles da Gama que não passára da porta, com o charuto escondido atraz das costas.

Carlos, sem curiosidade, ficou junto do Telles. Mas Ega, esguio e magro, foi rompendo pela coxia tapetada de vermelho. D'ambos os lados se cerravam filas de cabeças, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha até junto ao tablado, onde dominavam os chapéos de senhoras picados por manchas claras de plumas ou flôres. Em volta, de pé, encostados aos pilares ligeiros que sustêm a galeria, reflectidos pelos espelhos, estavam os homens, a gente do Gremio, da Casa Havaneza, das Secretarias, uns de gravata branca, outros de jaquetões. Ega avistou o snr. Sousa Netto, pensativo, sustentando entre dois dedos a face escaveirada, de barba rala; adiante o Gonçalo, com a sua gaforinha ao vento; depois o marquez atabafado n'um cache-nez de sêda branca; e, n'um grupo, mais longe, rapazes do Jockey Club, os dois Vargas, o Mendonça, o Pinheiro, assistindo áquelle sport da eloquencia com uma mistura d'assombro e tedio. Por cima, no parapeito de velludo da galeria, corria outra linha de senhoras com vestidos claros, abanando-se mollemente; por traz alçava-se ainda uma fila de cavalheiros onde destacava o Neves, o novo Conselheiro, grave, de braços cruzados, com um botão de camelia na casaca mal feita.

O gaz suffocava, vibrando cruamente n'aquella sala clara, d'um tom desmaiado de canario, raiada de reflexos de espelhos. Aqui e além uma tosse timida de catarrho desmanchava o silencio, logo abafada no lenço. E na extremidade da galeria, n'um camarote feito de tabiques, com sanefas de velludo côr de cereja, duas cadeiras de espaldar dourado permaneciam vazias, na solemnidade real do seu damasco escarlate.

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