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- Resta aquillo, que é genuino...

E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e da Penha, com o seu casario escorregando pelas encostas resequidas e tisnadas do sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as atarracadas vivendas ecclesiasticas, lembrando o frade pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de procissão, irmandades d'opa atulhando os adros, herva dôce juncando as ruas, tremoço e fava-rica apregoada ás esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda, recortando no radiante azul a miseria da sua muralha, era o castello, sordido e tarimbeiro, d'onde outr'ora, ao som do hymno tocado em fagotes, descia a tropa de calça branca a fazer a bernarda! E abrigados por elle, no escuro bairro de S. Vicente e da Sé, os palacetes decrepitos, com vistas saudosas para a barra, enormes brazões nas paredes rachadas, onde entre a maledicencia, a devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias, cachetica e caturra, a velha Lisboa fidalga!

Ega olhou um momento, pensativo:

- Sim, com effeito, é talvez mais genuino. Mas tão estupido, tão sebento! Não sabe a gente para onde se ha de voltar... E se nos voltamos para nós mesmos, ainda peor!

E de repente bateu no joelho de Carlos, com um brilho na face:

- Espera... Olha quem ahi vem!

Era uma vittoria, bem posta e correcta, avançando com lentidão e estylo, ao trote esteppado de duas egoas inglezas. Mas foi um

desapontamento. Vinha lá sómente um rapaz muito louro, d'uma brancura de camelia, com uma pennugem no beiço, languidamente recostado. Fez um aceno ao Ega, com um lindo sorriso de virgem. A vittoria passou.

- Não conheces?

Carlos procurava, com uma recordação.

- O teu antigo doente! O Charlie!

O outro bateu as mãos. O Charlie! O seu Charlie! Como aquillo o fazia velho!... E era bonitinho!

- Sim, muito bonitinho. Tem ahi uma amizade com um velho, anda sempre com um velho... Mas elle vinha decerto com a mãi, estou convencido que ella ficou por ahi a passear a pé. Vamos nós vêr?

Subiram ao comprido da Avenida, procurando. E quem avistaram logo foi o Eusebiosinho. Parecia mais funebre, mais tisico, dando o braço a uma senhora muito forte, muito córada, que estalava n'um vestido de sêda côr de pinhão. Iam devagar, tomando o sol.

E o Eusebio nem os viu, descahido e mollengo, seguindo com as grossas lunetas pretas o marchar lento da sua sombra.

- Aquella aventesma é a mulher, contou Ega. Depois de varias paixões em lupanares, o nosso Eusebio teve este namoro. O pai da creatura, que é dono d'um prego, apanhou-o uma noite na escada com ella a surripiar-lhe uns prazeres... Foi o diabo, obrigaram-no a casar. E

desappareceu, não o tornei a vêr... Diz que a mulher que o derreia á pancada.

- Deus a conserve!

- Amen!

E então Carlos, que recordava a coça no Eusebio, o caso da Corneta, quiz saber do Palma Cavallão. Ainda deshonrava o Universo com a sua presença, esse benemerito? Ainda o deshonrava, disse o Ega. Sómente deixára a litteratura, e tornára-se factotum do Carneiro, o que fôra ministro; levava-lhe a hespanhola ao theatro pelo braço; e era um bom empenho em politica.

- Ainda ha de ser deputado, acrescentou Ega! E, da fórma que as coisas vão, ainda ha de ser ministro... E isto está-se fazendo tarde, Carlinhos. Vamos nós tomar esta tipoia e abalar para o Ramalhete?

Eram quatro horas, o sol curto de inverno tinha já um tom pallido.

Tomaram a tipoia. No Rocio, Alencar que passava, que os viu - parou, sacudiu ardentemente a mão no ar. E então Carlos exclamou, com uma surpreza que já o assaltara essa manhã no Braganza:

- Ouve cá, Ega! Tu agora pareces intimo do Alencar! Que transformação foi essa?

Ega confessou que realmente agora apreciava immensamente o Alencar. Em primeiro logar no meio d'esta Lisboa toda postiça, Alencar permanecia o unico portuguez genuino.

Depois, através da contagiosa intrujice, conservava uma honestidade resistente. Além d'isso havia n'elle lealdade,bondade, generosidade. O seu comportamento com a sobrinhita era tocante. Tinha mais cortezia, melhores maneiras que os novos. Um bocado de piteirice não lhe ia mal ao seu feitio lyrico. E por fim, no estado a que descambára a litteratura, a

versalhada do Alencar tomara relevo pela correcção, pela simplicidade, por um resto de sincera emoção. Em resumo, um bardo infinitamente estimavel.

- E aqui tens tu, Carlinhos, a que nós chegamos! Não ha nada com effeito que caracterise melhor a pavorosa decadencia de Portugal, nos ultimos trinta annos, do que este simples facto: tão profundamente tem baixado o caracter e o talento, que de repente o nosso velho Thomaz, o homem da Flôr de Martyrio, o Alencar d'Alemquer, apparece com as proporções d'um Genio e d'um Justo!

Ainda fallavam de Portugal e dos seus males quando a tipoia parou. Com que commoção Carlos avistou a fachada severa do Ramalhete, as janellinhas abrigadas á beira do telhado, o grande ramo de girasoes fazendo painel no logar do estudo d'armas! Ao ruido da carruagem, Villaça appareceu á porta, calçando luvas amarellas. Estava mais gordo o Villaça - e tudo na sua pessoa, desde o chapéo novo até ao castão de prata da bengala, revelava a sua importancia como administrador, quasi directo senhor durante o longo desterro de Carlos, d'aquella vasta casa dos Maias. Apresentou logo o jardineiro, um velho, que alli vivia com a mulher e o filho, guardando o casarão deserto. Depois felicitou-se de vêr emfim os dois amigos juntos. E ajuntou, batendo com carinho familiar no hombro de Carlos:

- Pois eu, depois de nos separarmos em Santa Apolonia, fui tomar um banho ao Central e não me deitei. Olhe que é uma grande commodidade o tal sleeping-car! Ah lá isso, em progresso, o nosso Portugal já não está atraz de ninguem!... E v. exc.ª agora precisa de mim?

- Não, obrigado, Villaça. Vamos dar uma volta pelas salas... Vá jantar comnosco. Ás seis! Mas ás seis em ponto, que ha petiscos especiaes.

E os dois amigos atravessaram o perystillo. Ainda lá se conservavam os bancos feudaes de carvalho lavrado, solemnes como coros de cathedral. Em cima porém a ante-camara entristecia, toda despida, sem um movel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos muros. Tapeçarias orientaes que pendiam como n'uma tenda, pratos mouriscos de reflexos de cobre, a estatua da Friorenta rindo e arrepiando-se, na sua nudez de marmore, ao metter o pésinho na agua - tudo ornava agora os aposentos de Carlos em Paris: e outros caixões apilhavam-se a um canto, promptos a embarcar, levando as melhores faianças da Toca.

Depois no amplo corredor, sem tapete, os seus passos soaram como n'um claustro abandonado. Nos quadros devotos, n'um tom mais negro, destacava aqui e além, sob a luz escassa, um hombro descarnado de eremita, a mancha livida d'uma caveira. Uma friagem regelava. Ega levantára a gola do paletot.

No salão nobre os moveis de brocado côr de musgo estavam embrulhados em lençoes d'algodão, como amortalhados, exhalando um cheiro de mumia a terebinthina e camphora.

E no chão, na tela de Constable, encostada á parede, a condessa de Runa, erguendo o seu vestido escarlate de caçadora ingleza, parecia ir dar um passo, sahir do caixilho dourado, para partir tambem, consummar a dispersão da sua raça...

- Vamos embora, exclamou Ega. Isto está lugubre...

Mas Carlos, pallido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Ahi, que era a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente accumulados na confusão das artes e dos seculos, como n'um armazem de bric-à-brac, todos os moveis ricos da Toca. Ao fundo, tapando o fogão, dominando tudo na sua magestade architectural, erguia-se o famoso armario do tempo da Liga Hanseatica, com os seus Martes armados, as portas lavradas, os quatro Evangelistas prégando aos cantos, envoltos n'essas roupagens violentas que um vento de prophecia parece agitar. E Carlos immediatamente descobriu um desastre na cornija, nos

dois faunos que entre trophéos agricolas tocavam ao desafio. Um partira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta bucolica...

- Que brutos! exclamou elle furioso, ferido no seu amor da coisa d'arte. Um movel d'estes!...

Trepou a uma cadeira para examinar os estragos. E Ega, no emtanto, errava entre os outros moveis, cofres nupciaes, contadores hespanhoes, bufetes da Renascença italiana, recordando a alegre casa dos Olivaes que tinham ornado, as bellas noites de cavaco, os jantares, os foguetes atirados em honra de Leonidas... Como tudo passára! De repente deu com o pé n'uma caixa de chapéo sem tampa, atulhada de coisas velhas - um véo, luvas desirmanadas, uma meia de sêda, fitas, flôres artificiaes. Eram objectos de Maria, achados n'algum canto da Toca, para alli atirados, no momento de se esvaziar a casa! E, coisa lamentavel, entre estes restos d'ella, misturados como na promiscuidade d'um lixo, apparecia uma chinela de velludo bordada a matiz, uma velha chinela de Affonso da Maia! Ega escondeu a caixa rapidamente debaixo d'um pedaço solto de tapeçaria. Depois, como Carlos saltava da cadeira, sacudindo as mãos, ainda indignado, Ega apressou aquella peregrinação, que lhe estragava a alegria do dia.

- Vamos ao terraço! Dá-se um olhar ao jardim, e abalamos!

Mas deviam atravessar ainda a memoria mais triste, o escriptorio de Affonso da Maia.

A fechadura estava pêrra. No esforço de abrir a mão de Carlos tremia. E Ega, commovido tambem, revia toda a sala tal como outr'ora, com os seus candieiros Carcel dando um tom côr de rosa, o lume crepitando, o reverendo Bonifacio sobre a pelle d'urso, e Affonso na sua velha poltrona, de casaco de velludo, sacudindo a cinza do cachimbo contra a palma da mão. A porta cedeu: e toda a emoção de repente findou, na grutesca, absurda surpreza de romperem ambos a espirrar, desesperadamente, suffocados pelo cheiro acre d'um pó vago que lhes picava os olhos, os estonteava. Fôra o Villaça, que, seguindo uma receita d'almanach, fizera espalhar ás mãos cheias, sobre os moveis, sobre os lençoes que os resguardavam, camadas espessas de pimenta branca! E estrangulados, sem vêr, sob uma nevoa de lagrimas, os dois continuavam, um defronte do outro, em espirros afflictivos que os desengonçavam.

Carlos por fim conseguiu abrir largamente as duas portadas d'uma janella. No terraço morria um resto de sol. E, revivendo um pouco ao ar puro, alli ficaram de pé, calados, limpando os olhos, sacudidos ainda por um ou outro espirro retardado.

- Que infernal invenção! exclamou Carlos, indignado.

Ega, ao fugir com o lenço na face, tropeçara, batera contra um sofá, coçava a canella:

- Estupida coisa! E que bordoada que eu dei!... Voltou a olhar para a sala, onde todos os moveis desappareciam sob os largos sudarios brancos. E reconheceu que tropeçara na antiga almofada de velludo do velho Bonifacio. Pobre Bonifacio! Que fôra feito d'elle?

Carlos, que se sentára no parapeito baixo do terraço, entre os vasos sem flôr, contou o fim do reverendo Bonifacio. Morrera em Santa Olavia, resignado, e tão obeso que se não movia. E o Villaça, com uma idéa poetica, a unica da sua vida de procurador, mandára-lhe fazer um mausoléo, uma simples pedra de marmore branco, sob uma roseira, debaixo das janellas do quarto do avô.

Ega sentára-se tambem no parapeito, ambos se esqueceram n'um silencio. Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez d'inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido que já ninguem ama: uma ferrugem verde de humidade cobria os grossos membros da Venus Citherea; o cypreste e o cedro envelheciam juntos como dois amigos n'um ermo; e mais lento corria o prantosinho da cascata, esfiado saudosamente gotta a gotta

na bacia de marmore. Depois ao fundo, encaixilhada como uma tela marinha nas cantarias dos dois altos predios, a curta paizagem do Ramalhete, um pedaço de Tejo e monte, tomava n'aquelle fim de tarde um tom mais pensativo e triste: na tira de rio um paquete fechado, preparado para a vaga, ia descendo, desapparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; no alto da collina o moinho parára, transido na larga friagem do ar; e nas janellas das casas á beira d'agua um raio de sol morria, lentamente sumido, esvaído na primeira cinza do crepusculo, como um resto d'esperança n'uma face que se anuvia.

Are sens