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Transformam-se as civilisações, a calva fica!... Já tem tons de bola de bilhar, não é verdade?... De que será?

- É a ociosidade, lembrou Carlos rindo.

- A ociosidade... E tu, então?

De resto, que podia elle fazer n'este paiz?... Quando voltára de França, ultimamente, pensára em entrar na diplomacia. Para isso sempre tivera a blague: e agora que a mamã, coitada, lá estava no seu grande jazigo em Celorico, tinha a massa. Mas depois reflectira.

Por fim, em que consistia a diplomacia portugueza? N'uma outra fórma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o sentimento constante da propria insignificancia. Antes o Chiado!

E como Carlos lembrava a Politica, occupação dos inuteis, Ega trovejou. A politica!

Isso tornára-se moralmente e physicamente nojento, desde que o negocio atacára o constitucionalismo como uma phylloxera! Os politicos hoje eram bonecos de engonços,que faziam gestos e tomavam attitudes porque dois ou tres financeiros por traz lhes puxavam pelos cordeis... Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual! Ahi é que estava o horror. Não tinham feitio, não tinham maneiras, não se lavavam, não limpavam as unhas... Coisa extraordinaria, que em paiz algum succedia, nem na Romelia, nem na Bulgaria! Os tres ou quatro salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem fôr, largamente, excluem a maioria dos politicos. E porque? Porque as senhoras têm nôjo!

- Olha o Gouvarinho! Vê lá se elle recebe ás terças-feiras os seus correligionarios...

Carlos que sorria, encantado com aquella veia acerba do Ega, saltou na cadeira:

- É verdade, e a Gouvarinho, a nossa boa Gouvarinho?

Ega, passeando pela sala, deu as novas dos Gouvarinhos. A condessa herdára uns sessenta contos de uma tia excentrica que vivia a Santa Isabel, tinha agora melhores carruagens, recebia sempre ás terças-feiras. Mas soffria uma doença qualquer, grave, no figado ou no pulmão. Ainda elegante todavia, muito séria, uma terrivel flôr de pruderie...

Elle, o Gouvarinho, ahi continuava, palrador, escrevinhador, politicote, impertigadote, já grisalho, duas vezes ministro, e coberto de gran-cruzes...

- Tu não os viste em Paris, ultimamente?

- Não. Quando soube fui-lhes deixar bilhetes, mas tinham partido na vespera para Vichy...

A porta abriu-se, um brado cavo resoou:

- Até que emfim, meu rapaz!

- Oh Alencar! gritou Carlos, atirando o charuto.

E foi um infinito abraço, com palmadas arrebatadas pelos hombros, e um beijo ruidoso

- o beijo paternal do Alencar, que tremia, commovido. Ega arrastára uma cadeira, berrava pelo escudeiro:

- Que tomas tu, Thomaz? Cognac? Curaçáo? Em todo o caso café! Mais café! Muito forte, para o snr. Alencar!

O poeta, no emtanto, abysmado na contemplação de Carlos, agarrára-o pelas mãos, com um sorriso largo, que lhe descobria os dentes mais estragados. Achava-o magnifico, varão soberbo, honra da raça... Ah! Paris, com o seu espirito, a sua vida ardente, conserva...

- E Lisboa arraza! acudiu Ega. Já cá tive essa phrase. Vá, abanca, ahi tens o cafésinho e a bebida!

Mas Carlos agora tambem contemplava o Alencar. E parecia-lhe mais bonito, mais poetico, com a sua grenha inspirada e toda branca, e aquellas rugas fundas na face morena, cavadas como sulcos de carros pela tumultuosa passagem das emoções...

- Estás typico, Alencar! Estás a preceito para a gravura e para a estatua!...

O poeta sorria, passando os dedos com complacencia pelos longos bigodes romanticos, que a idade embranquecera e o cigarro amarellára. Que diabo, algumas compensações havia de ter a velhice!... Em todo o caso o estomago não era mau, e conservava-se, caramba, filhos, um bocado de coração.

- O que não impede, meu Carlos, que isto por cá esteja cada vez peor! Mas acabou-se...

A gente queixa-se sempre do seu paiz, é habito humano. Já Horacio se queixava. E vocês, intelligencias superiores, sabeis bem, filhos, que no tempo de Augusto... Sem fallar, é claro, na quéda da republica, n'aquelle desabamento das velhas instituições... Emfim deixemos lá os Romanos! Que está alli n'aquella garrafa? Chablis... Não desgosto, no outono, com as ostras. Pois vá lá o Chablis. E á tua chegada, meu Carlos! e á tua, meu João, e que Deus vos dê as glorias que mereceis, meus rapazes!...

Bebeu. Rosnou: «bom Chablis, bouquet fino». E acabou por abancar, ruidosamente, sacudindo para traz a juba branca.»

- Este Thomaz! exclamava Ega, pousando-lhe a mão no hombro com carinho. Não ha outro, é unico! O bom Deus fel-o n'um dia de grande verve, e depois quebrou a fôrma.

Ora, historias! murmurava o poeta radiante. Havia-os tão bons como elle. A humanidade viera toda do mesmo barro como pretendia a Biblia - ou do mesmo macaco como affirmava o Darwin...

- Que, lá essas coisas d'evolução, origem das especies, desenvolvimento da cellula, cá para mim... Está claro, o Darwin, o Lamarck, o Spencer, o Claudio Bernard, o Littré, tudo isso, é gente de primeira ordem. Mas acabou-se, irra! Ha uns poucos de mil annos que o homem prova sublimemente que tem alma!

- Toma o cafésinho, Thomaz! aconselhou o Ega, empurrando-lhe a chavena. Toma o cafésinho!

- Obrigado!... E é verdade, João, lá dei a tua boneca á pequena. Começou logo a beijal-a, a embalal-a, com aquelle profundo instincto de mãi, aquelle quid divino... É uma sobrinhita minha, meu Carlos. Ficou sem mãi, coitadinha, lá a tenho, lá vou tratando de fazer d'ella uma mulher... Has de vêl-a. Quero que vocês lá vão jantar um dia, para vos dar umas perdizes á hespanhola... Tu demoras-te, Carlos?

- Sim, uma ou duas semanas, para tomar um bom sorvo de ar da patria.

- Tens razão, meu rapaz! exclamou o poeta, puxando a garrafa do cognac. Isto ainda não é tão mau como se diz... Olha tu para isso, para esse céo, para esse rio, homem!

- Com effeito é encantador!

Todos tres, durante um momento, pasmaram para a incomparavel belleza do rio, vasto, lustroso, sereno, tão azul como o céo, esplendidamente coberto de sol.

- E versos? exclamou de repente Carlos, voltando-se para o poeta. Abandonaste a lingua divina?

Alencar fez um gesto de desalento. Quem entendia já a lingua divina? O novo Portugal só comprehendia a lingua da libra, da «massa». Agora, filho, tudo eram syndicatos!

- Mas ainda ás vezes me passa uma coisa cá por dentro, o velho homem estremece... Tu não viste nos jornaes?... Está claro, não lês cá esses trapos que por ahi chamam gazetas...

Pois veio ahi uma coisita, dedicada aqui ao João. Ora eu t'a digo se me lembrar...

Correu a mão aberta pela face escaveirada, lançou à estrophe n'um tom de lamento: Luz d'esperança, luz d'amor,

Que vento vos desfolhou?

Que a alma que vos seguia

Nunca mais vos encontrou!

Carlos murmurou: «Lindo!» Ega murmurou: «Muito fino!» E o poeta, aquecendo, já commovido, esboçou um movimento d'aza que foge:

Minh'alma em tempos d'outr'ora,

Quando nascia o luar,

Como um rouxinol que acorda

Punha-se logo a cantar.

Are sens