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E foi um espanto para Carlos. O quê! O nosso Damaso! Casado!?... Sim, casado com uma filha dos condes d'Agueda, uma gente arruinada, com um rancho de raparigas.

Tinham-lhe impingido a mais nova. E o optimo Damaso, verdadeira sorte grande para aquella distincta familia, pagava agora os vestidos das mais velhas.

- É bonita?

- Sim, bonitinha... Faz ahi a felicidade d'um rapazote sympathico, chamado Barroso.

- O quê, o Damaso, coitado...

- Sim, coitado, coitadinho, coitadissimo... Mas como vês, immensamente ditoso, até tem engordado com a perfidia!

Carlos parára. Olhava, pasmado para as varandas extraordinarias d'um primeiro andar, recobertas como em dia de procissão, de sanefas de pano vermelho onde se entrelaçavam monogrammas. E ia indagar - quando, d'entre um grupo que estacionava ao portal d'esse predio festivo, um rapaz d'ar estouvado, com a face imberbe cheia d'espinhas carnaes, atravessou rapidamente a rua para gritar ao Ega, suffocado de riso:

- Se você fôr depressa ainda a encontra ahi abaixo! Corra!

- Quem?

- A Adosinda!... De vestido azul, com plumas brancas no chapéo... Vá depressa... O

João Elyseu metteu-lhe a bengala entre as pernas, ia-a fazendo estatelar no chão, foi uma scena... Vá depressa, homem!

Com duas pernadas esguias o rapaz recolheu ao seu rancho - onde todos, já calados, com uma curiosidade de provincia, examinavam aquelle homem de tão alta elegancia que acompanhava o Ega e que nenhum conhecia. E Ega, no emtanto, explicava a Carlos as varandas e o grupo:

- São rapazes do Turf. É um club novo, antigo Jockey da travessa da Palha. Faz-se lá uma batotinha barata, tudo gente muito sympathica... E como vês estão sempre assim preparados, com sanefas e tudo, para se acaso passar por ahi o senhor dos Passos.

Depois, descendo para a rua Nova do Almada, contou o caso da Adosinda. Fôra no Silva, havia duas semanas, estando elle a cear com rapazes depois de S. Carlos, que lhes apparecera essa mulher inverosimil, vestida de vermelho, carregando sensatamente nos rr, mettendo rr em todas as palavras, e perguntando pelo snr. virrsconde... Qual virrsconde?

Ella não sabia bem. Erra um virrsconde que encontrrárra no Crrolyseu. Senta-se, offerecem-lhe champagne, e D. Adosinda começa a revelar-se um sêr prodigioso. Fallavam de politica, do ministerio e do deficit. D. Adosinda declara logo que conhece muito bem o deficit, e que é um bello rapaz... O deficit bello rapaz - immensa gargalhada! D. Adosinda zanga-se, exclama que já fôra com elle a Cintra, que é um perfeito cavalheiro, e empregado no Banco Inglez... O deficit empregado no Banco Inglez - gritos, uivos, urros! E não cessou esta gargalhada continua, estrondosa, phrenetica, até ás cinco da manhã em que D.

Adosinda fôra rifada e sahira ao Telles!... Noite soberba!

- Com effeito, disse Carlos rindo, é uma orgia grandiosa, lembra Heliogabalo e o Conde d'Orsay...

Então Ega defendeu calorosamente a sua orgia. Onde havia melhor, na Europa, em qualquer civilisação? Sempre queria vêr que se passasse uma noite mais alegre em Paris, na desoladora banalidade do Grand-Treize, ou em Londres, n'aquella correcta e massuda semsaboria do Bristol! O que ainda tornava a vida toleravel era de vez em quando uma boa risada. Ora na Europa o homem requintado já não ri, - sorri regeladamente, lividamente. Só nós aqui, n'este canto do mundo barbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bemdita e consoladora - a barrigada de riso!

- Que diabo estás tu a olhar?

Era o consultorio, o antigo consultorio de Carlos - onde agora, pela taboleta, parecia existir um pequeno atelier de modista. Então bruscamente os dois amigos recahiram nas recordações do passado. Que estupidas horas Carlos alli arrastára, com a Revista dos Dois Mundos, na espera vã dos doentes, cheio ainda de fé nas alegrias do trabalho!... E a manhã em que o Ega lá apparecera com a sua esplendida pelliça, preparando-se para transformar, n'um só inverno, todo o velho e rotineiro Portugal!

- Em que tudo ficou!

- Em que tudo ficou! Mas rimos bastante!

Lembras-te d'aquella noite em que o pobre marquez queria levar ao consultorio a Paca, para utilisar emfim o divan, movel de serralho?...

Carlos teve uma exclamação de saudade. Pobre marquez! Fôra uma das suas fortes impressões, n'esses ultimos annos – aquella morte do marquez, sabida de repente ao almoço, n'uma banal noticia de jornal!... E através do Rocio, andando mais devagar,

recordavam outros desapparecimentos: a D. Maria da Cunha, coitada, que acabára hydropica; o D. Diogo, casado por fim com a cozinheira; o bom Sequeira, morto uma noite n'uma tipoia ao sahir dos cavallinhos...

- E outra coisa, perguntou Ega. Tens visto o Craft em Londres ?

- Tenho, disse Carlos. Arranjou uma casa muito bonita ao pé de Richmond... Mas está muito avelhado, queixa-se muito do figado. E, desgraçadamente, carrega de mais nos alcools. É uma pena!

Depois perguntou pelo Taveira. Esse lindo moço, contou o Ega, tinha agora por cima mais dez annos de Secretaria e de Chiado.Mas sempre apurado, já um bocado grisalho, mettido continuamente com alguma hespanhola, dando bastante a lei em S. Carlos, e murmurando todas as tardes na Havaneza, com um ar dôce e contente - «isto é um paiz perdido»! Emfim um bom typosinho de lisboeta fino.

- E a besta do Steinbroken?

- Ministro em Athenas, exclamou Carlos, entre as ruinas classicas!

E esta idéa do Steinbroken, na velha Grecia, divertiu-os infinitamente. Ega imaginava já o bom Steinbroken, têso nos seus altos collarinhos, affirmando a respeito de Socrates, com prudencia: «Oh,il est très fort, il est excessivement fort!» Ou ainda, a proposito da batalha das Thermopylas, rosnando, com medo de se comprometter: «C'est très grave, c'est excessivement grave!» Valia a pena ir á Grecia para vêr!

Subitamente Ega parou:

- Ora ahi tens tu essa Avenida! Hein?... Já não é mau!

N'um claro espaço rasgado, onde Carlos deixára o Passeio Publico pacato e frondoso -

um obelisco, com borrões de bronze no pedestal, erguia um traço côr d'assucar na vibração fina da luz de inverno: e os largos globos dos candieiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão suspensas no ar.

Dos dois lados seguiam, em alturas desiguaes, os pesados predios, lisos e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde negrejavam piteiras de zinco, e pateos de pedra, quadrilhados a branco e preto, onde guarda-portões chupavam o cigarro: e aquelles dois hirtos renques de casas ajanotadas lembravam a Carlos as familias que outr'ora se immobilisavam em filas, dos dois lados do Passeio, depois da missa «da uma», ouvindo a Banda, com casimiras e sêdas, no catitismo domingueiro. Todo o lagedo reluzia como cal nova. Aqui e além um arbusto encolhia na aragem a sua folhagem pallida e rara. E ao fundo a collina verde, salpicada d'arvores, os terrenos de Valle de Pereiro, punham um brusco remate campestre áquelle curto rompante de luxo barato - que partira para transformar a velha cidade, e estacára logo, com o fôlego curto, entre montões de cascalho.

Mas um ar lavado e largo circulava; o sol dourava a caliça; a divina serenidade do azul sem igual tudo cobria e adoçava. E os dois

amigos sentaram-se n'um banco, junto de uma verdura que orlava a agua d'um tanque esverdinhada e molle.

Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flôres na lapella, a calça apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro. Era toda uma geração nova e miuda que Carlos não conhecia. Por vezes Ega murmurava um ólá!, acenava com a bengala. E

elles iam, repassavam, com um arzinho timido e contrafeito, como mal acostumados áquelle vasto espaço, a tanta luz, ao seu proprio chic. Carlos pasmava. Que faziam ,alli, ás horas de trabalho, aquelles moços tristes, de calça esguia? Não havia mulheres. Apenas n'um banco adiante uma creatura adoentada, de lenço e chale, tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no mantelete, donas de casa de hospedes, arejavam um cãosinho

felpudo. O que attrahia pois alli aquella mocidade pallida? E o que sobretudo o espantava eram as botas d'esses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fóra da calça collante com pontas aguçadas e reviradas como prôas de barcos varinos...

- Isto é phantastico, Ega!

Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples fórma de botas explicava todo o Portugal contemporaneo. Via-se

por alli como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, á D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se á moderna: mas sem originalidade, sem força, sem caracter para crear um feitio seu, um feitio proprio, manda vir modelos do estrangeiro - modelos d'idéas, de calças, de costumes, de leis, d'arte, de cozinha... Sómente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciencia de parecer muito moderno e muito civilisado - exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até á caricatura. O figurino da bota que veio de fóra era levemente estreito na ponta; -

immediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico d'alfinete. Por seu lado o escriptor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estylo precioso e cinzelado; -

immediatamente retorce, emmaranha, desengonça a sua pobre phrase até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer que lá fóra se levanta o nivel da instrucção; - immediatamente põe no programma dos exames de primeiras letras a metaphysica, a astronomia, a philologia, a egyptologia, a chresmatica, a critica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por ahi adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o orador até ao photographo, desde o jurisconsulto até ao sportman... é o que sucede com os pretos já corrompidos de S. Thomé, que vêem os europeus de lunetas - e imaginam que n'isso consiste ser civilisado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura acavallam no nariz tres ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de côr. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros - para serem immensamente civilisados e immensamente brancos...

Carlos ria:

- De modo que isto está cada vez peor...

- Medonho! É d'um reles, d'um postiço! Sobretudo postiço! Já não ha nada genuino n'este miseravel paiz, nem mesmo o pão que comemos!

Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, n'um gesto lento:

Are sens