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- Que é isto?

- Festa de beneficencia, não sei, disse o Craft. Uma coisa promovida por senhoras, a baroneza d'Alvim mandou-me um bilhete...

Venha você d'ahi ajudar-me a levar esta caridade ao Calvario.

E na esperança de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma senha. No perystilo do Gymnasio encontraram Taveira passeando e fumando solitariamente, á espera que findasse a primeira comedia, o Fructo prohibido. Então Craft propôz «botequim e genebra».

- E que ha do ministerio? perguntou elle, apenas abancaram a um canto.

O Taveira não subiu. Todos esses dois longos dias se intrigára desesperadamente. O

Gouvarinho queria as Obras Publicas: o Videira tambem. E fallava-se d'uma scena terrível por causa de syndicatos, em casa do presidente do conselho, o Sá Nunes, que terminára por dar um murro na mesa, gritar: «Irra! que isto não é o pinhal d'Azambuja!»

- Canalha! rosnou Ega com odio.

Depois fallaram do Ramalhete, da volta d'Affonso, da reapparição do Carlos. Craft louvou Deus por haver outra vez n'esse inverno uma casa com fogões, onde se passasse uma hora civilisada e intelligente.

Taveira acudiu com o olho brilhante:

- Diz que vamos ter um centrosinho muito mais interessante ainda, na rua de S.

Francisco! Foi o marquez que me disse. Madame Mac-Gren vai receber.

Craft não sabia mesmo que ella já tivesse recolhido da Toca.

- Voltou hoje, disse o Ega. Você ainda não a conhece?... Encantadora.

- Creio que sim.

O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma belleza. E um ar tão sympathico!

- Encantadora! repetiu Ega.

Mas o Fructo proibido findára, os homens enchiam o peristylo, n'um rumor lento, accendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e Taveira com a genebra, correu á plateia para descobrir o camarote da Alvim.

Mal erguera porém a cortina e assestára o monoculo - avistou defronte, na primeira ordem, a Cohen, toda de preto, com um grande leque de rendas brancas; por traz negrejavam as suissas fortes do marido; e em face d'ella, recostado no velludo da grade, de casaca, com a bochecha risonha, uma grossa perola no peitilho da camisa, o Damaso, o bebedo!

Ega cahiu mollemente, ao acaso, na borda d'uma cadeira: e perturbado, já esquecido da Alvim, alli ficou a olhar o panno coberto d'annuncios, correndo os dedos tremulos pelo bigode.

No emtanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na plateia. Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeçou no joelho do Ega: outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permissão a s. exc.ª Elle não escutava, não percebia: os seus

olhos, um momento errantes, tinham-se emfim cravado no camarote da Cohen e não se desviaram de lá, n'uma emoção que o empallidecia.

Não a tornára a encontrar desde Cintra, onde só a via de longe, com vestidos claros sob o verde das arvores; e agora alli, toda de preto, em cabello, com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura do seu collo, ella era outra vez a sua Rachel, dos tempos divinos da villa Balzac. Era assim que elle, todas as noites em S. Carlos, a contemplava do fundo da frisa de Carlos, com a cabeça encostada ao tabique, saturado de felicidade. Lá tinha a sua luneta d'ouro, presa por um fio d'ouro. Parecia mais pallida, mais delicada, com o longo quebranto dos olhos pisados, o seu ar de romance e de lirio meio murcho: e como então os seus cabellos magnificos e pesados cahiam habilmente n'uma massa meia solta sobre as costas, n'um desalinho de nudez. Pouco a pouco, entre o afinar de rebecas e o rumor das cadeiras Ega revia, n'uma onda de recordações que o suffocava, o grande leito da villa Balzac, certos beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa á borda do sofá, e a melancolia deliciosa das tardes, quando ella sahia furtivamente, coberta de véos, e elle ficava, cansado, no crepusculo poetico do quarto, cantarolando a Traviata...

- V. exc.ª dá licença, snr. Ega?

Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira. Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o snr. Sonsa Netto. O panno subira. Á borda da rampa um lacaio, piscando o olho á Plateia, fazia confidencias sobre a patrôa, de espanejador debaixo do braço. E Cohen, agora de pé, enchia o meio do camarote, cofiando a suissas com um correr lento da mão bem tratada, onde reluzia um diamante.

Ega então, n'um soberbo alarde d'indifferença, cravou o monoculo no palco. O lacaio abalára espavorido, a um repique furioso de sineta; e uma megera azeda, de roupão verde e touca á banda, rompera de dentro, meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida que batia o tacão, se esganiçava: «Pois hei de amal-o sempre! hei de amal-o sempre!»

Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e o Damaso, com as cabeças chegadas como em Cintra, cochichavam n'um sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu n'um immenso odio ao Damaso! Collado á umbreira da porta, rilhava os dentes, n'um desejo de subir, escarrar-lhe na bochecha gorda.

E não desviava d'elle os olhos, que dardejavam. Na scena, um velho general, gottoso e resmungão, sacudia um jornal, gritava pela sua tapioca. A Plateia ria, o Cohen ria. E n'esse momento Damaso, que se debruçára no camarote com as mãos de fóra, calçadas de gris-perle, descobriu o Ega, sorriu, atirou-lhe como em Cintra um acenosinho petulante, muito d'alto, na ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um insulto. E ainda na vespera aquelle covarde se lhe agarrára ás mãos, tremendo todo, a gritar «que o salvasse!...»

Subitamente, com uma idéa, palpou por sobre o bolso a carteira onde na vespera guardára a carta do Damaso... «Eu t'arranjo!» murmurou elle. E abalou, desceu a rua da Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da praça de Camões, n'um grande portão que uma lanterna alumiava. Era a redacção da Tarde.

Dentro do pateo d'esse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz, cruzou um sujeito encatarrhoado que lhe disse que o Neves estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, politico, director da Tarde, fôra, havia annos, n'umas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e desde esse verão alegre em que o Neves lhe ficára sempre devendo tres moedas, os dois tratavam-se por tu.

Foi encontral-o n'uma vasta sala alumiada por bicos de gaz sem globo, sentado na borda n'uma mesa atulhada de jornaes, com o chapéo para a nuca, discursando a alguns cavalheiros de provincia que o escutavam de pé, n'um respeito de crentes. N'um vão de janella, com dois homens d'idade, um rapaz esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e uma cabelleira crespa que parecia erguida n'uma rajada de vento, bracejava como um moinho na crista d'um monte. E, abancado, outro sujeito já calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel.

Ao vêr o Ega (um intimo do Gouvarinho) alli na redacção, n'aquella noite de intriga e de crise, Neves cravou n'elle os olhos tão curiosos, tão inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:

- Nada de politica, negocio particular... Não te interrompas. Depois fallaremos.

O outro findou a injuria que estava lançando ao José Bento, «essa grande besta que fôra metter tudo no bico da amiga do Sousa e Sá, o par do reino» - e na sua impaciencia saltou da mesa, travou do braço do Ega arrastando-o para um canto:

- Então que é?

- É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi offendido ahi por um sujeito muito conhecido. Nada d'interessante. Um paragrapho immundo na Corneta do Diabo, por uma questão de cavallos... O Maia pediu-lhe explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas, n'uma carta que quero que vocês publiquem.

A curiosidade do Neves flammejou:

- Quem é?

- O Damaso.

O Neves recuou d'assombro:

Are sens

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