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Ega acercou-se logo d'aquelle sympathico homem, tão engraçado, tão querido de todos:

- Então, na grande faina, Melchior?

- Estou aqui a vêr se faço uma coisa sobre o livro do Craveiro, os Cantos da Serra, e não me sae nada em termos... Não sei o que hei de dizer!

Ega gracejou, de mãos nos bolsos, muito risonho, muito camarada com o Melchior:

- Nada! Vocês aqui são simples localistas, noticiaristas, annunciadores. D'um livro como o do Craveiro têm só respeitosamente a dizer onde se vende e quanto custa.

O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por traz da nuca:

- Então onde queria você que se fallasse dos livros?... Nos reportorios?

Não, nas Revistas Criticas: ou então nos jornaes - que fossem jornaes, não papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasma de politica em estylo mazorro ou em estylo fadista, um romance mal traduzido do francez por baixo e o resto cheio com «annos», despachos, parte de policia e loteria da Misericordia. E como em Portugal não havia nem jornaes sérios nem Revistas Criticas - que se não fallasse em parte nenhuma.

- Com effeito, murmurou Melchior, ninguem falla de nada, ninguem parece pensar em nada...

E com toda a razão, affirmou Ega. Certamente muito d'esse silencio provinha do natural desejo que têm os que são mediocres de que se não alluda muito aos que são grandes. É a invejasinha reles e rastejante! Mas em geral o silencio dos jornaes para com os livros provém sobretudo d'elles terem abdicado todas as funcções elevadas d'estudo e de critica, de se terem tornado folhas rasteiras d'informação caseira, e de sentirem por isso a sua incompetencia...

- Está claro, não fallo por você, Melchior, que é dos nossos e de primeira ordem! Mas os seus collegas, menino, calam-se por se saberem incompetentes...

O Melchior ergueu os hombros com um ar cançado e descrente:

- Calam-se tambem porque o publico não se importa, ninguem se importa...

Ega protestou, já excitado. O Publico não se importava!? Essa era curiosa! O Publico então não se importa que lhe fallem de livros que elle compra aos tres mil, aos seis mil exemplares? E isto, dada a população de Portugal, caramba, é igual aos grandes successos de Paris e de Londres... Não, Melchiorzinho amigo, não! Esse silencio diz ainda mais claramente e retumbantemente que as palavras: «Nós somos incompetentes. Nós estamos bestialisados pela noticia do snr. conselheiro que chegou ou do snr. conselheiro que partiu, pelos High-lifes, pela amabilidade dos donos da casa, pelo artigo de fundo em descompostura e calão, por toda esta prosa chula em que nos atolamos... Nós não sabemos, não podemos já fallar d'uma obra d'arte ou d'uma obra de historia, d'este bello livro de versos ou d'este bello livro de viagens. Não temos nem phrases nem idéas. Não somos

talvez cretinos - mas estamos cretinisados. A obra de litteratura passa muito alto - nós chafurdamos aqui muito em baixo...»

- E aqui tem você, Melchior, o que diz, através do silencio dos jornaes, o côro dos jornalistas!

Melchior sorria, enlevado, com a cabeça deitada para traz, como quem goza uma bella ária. Depois com uma palmada na mesa:

- Caramba, ó Ega, muito bem falla você!... Você nunca pensou em ser deputado? Eu ainda outro dia dizia ao Neves: «O Ega! O Ega é que era, para atirar alli na camara a piadinha á Rochefort. Ardia Troia!»

E immediatamente, emquanto Ega ria, contente, tornando a accender o charuto -

Melchior arrebatou a penna:

- Você está em veia! Diga lá, dicte lá... Que hei de eu aqui pôr sobre o livro do Craveiro?

Ega quiz saber o que escrevera já, o amigo Melchior. Apenas tres linhas: «Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta Simão Craveiro. O precioso volume, onde scintillam em caprichosos relevos todas as joias d'este prestigioso escriptor, é publicado pelos activos editores...» E aqui o Melchior emperrára. Melchior não gostava d'aquelle frouxo termo -

activos. Ega então suggeriu - emprehendedores. Melchior emendou, leu:

- «...publicado pelos emprehendedores editores...» Ora sêbo, rima!

Arrojou a penna, descorçoado. Acabou-se! Não estava em verve. E além d'isso era tarde, tinha a rapariga á espera...

- Fica para ámanhã... O peor é que já ando n'isto ha cinco dias! Irra! Você tem razão, a gente bestialisa-se. E faz-me raiva! Não é lá pelo livro, não me importa o livro... É pelo Craveiro, que é bom rapaz, e demais a mais pertence cá ao partido!

Abriu um gavetão, sacou uma escova, rompeu a escovar-se com desespero. E Ega ia ajudal-o, limpar-lhe as costas cheias de cal - quando entre elles surgiu a face chupada e nervosa do Gonçalo, com a sua gaforinha perpetuamente erguida como por uma rajada de vento.

- Que está o Egasinho a fazer n'este covil da noticia?

- Aqui a escovar o Sampaio... Estive tambem a ouvir o Neves, a grande phrase do Gouvarinho...

O Gonçalo pulou, com uma faisca de malícia no olhos negros de algarvio esperto.

- A da cruz? Espantosa! Mas ha melhor, ha melhor!

Travou do braço do Ega, puxou-o para um canto da janella:

- É necessario fallar baixo por causa da rapaziada de provincia... Ha outra deliciosa. Eu não me lembro bem, o Neves é que sabe!

É uma coisa da Liberdade conduzindo á mão o corcel do Progresso... O quer que seja assim, uma imagem equestre! A Liberdade com calções de jockey, o Progresso com um grande freio... Espantoso! Que besta, aquelle Gouvarinho! E os outros, menino, os outros!

Você não foi á camara quando se discutiu a questão de Tondella? Extraordinario! O que se disse! Foi de morrer! E eu morro! Esta politica, este S. Bento, esta eloquencia, estes bachareis matam-me. Querem dizer agora ahi que isto por fim não é peor que a Bulgaria.

Historias! Nunca houve uma choldra assim no universo!

- Choldra em que você chafurda! observou o Ega rindo.

O outro recuou com um grande gesto:

- Distingamos! Chafurdo por necessidade, como politico: e tróço por gosto, como artista!

Mas Ega justamente achava uma desgraça incomparavel para o paiz - esse immoral desaccordo entre a intelligencia e o caracter.

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