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Então, n'aquella mudez de soledade e d'abandono, Ega, com os olhos para o longe, murmurou devagar:

- Mas tu d'esse casamento não tinhas a menor indicação, a menor suspeita?

- Nenhuma... Soube-o de repente pela carta d'ella em Sevilha.

E era esta a formidavel nova annunciada por Carlos, a nova que elle logo contára de madrugada ao Ega, depois dos primeiros abraços, em Santa Apolonia. Maria Eduarda ia casar.

Assim o annunciára ella a Carlos n'uma carta muito simples, que elle recebera na quinta dos Villa-Medina. Ia casar. E não parecia ser uma resolução tomada arrebatadamente sob um impulso do coração; mas antes um proposito lento, longamente amadurecido. Ella alludia n'essa carta a ter «pensado muito, reflectido muito...» De resto o noivo devia ir perto dos cincoenta annos. E Carlos portanto via alli a união de dois sêres desilludidos da vida, maltratados por ella, cansados ou assustados do seu isolamento, que, sentindo um no outro qualidades sérias de coração e de espirito, punham em commum o seu resto de calor, d'alegria e de coragem para affrontar juntos a velhice...

- Que idade tem ella?

Carlos pensava que ella devia ter quarenta e um ou quarenta e dois annos. Ella dizia na carta «sou apenas mais nova que o meu noivo seis annos e tres mezes». Elle chamava-se Mr. de Trelain. E era evidentemente um homem d'espirito largo, desembaraçado de prejuizos, d'uma benevolencia quasi misericordiosa, porque quizera Maria, conhecendo bem os seus erros.

- Sabe tudo? exclamou Ega, que saltára do parapeito.

- Tudo não. Ella diz que Mr. de Trelain conhecia do seu passado «todos aquelles erros em que ella cahira inconscientemente». Isto dá a entender que não sabe tudo... Vamos andando, que se faz tarde, e quero ainda vêr os meus quartos.

Desceram ao jardim. Um momento seguiram calados pela alea onde cresciam outr'ora as roseiras de Affonso. Sob as duas olaias

ainda existia o banco de cortiça; Maria sentára-se alli, na sua visita ao Ramalhete, a atar n'um ramo flôres que ia levar como reliquia. Ao passar Ega cortou uma pequenina margarida que ainda floria solitariamente.

- Ella continúa a viver em Orléans, não é verdade?

Sim, disse Carlos, vivia ao pé d'Orléans, n'uma quinta que lá comprára, chamada Les Rosières. O noivo devia habitar nos arredores algum pequeno château. Ella chamava-lhe

«visinho». E era naturalmente um gentilhomme campagnard, de familia séria, com fortuna...

Ella só tem o que tu lhe dás, está claro.

- Creio que te mandei contar tudo isso, murmurou Carlos. Emfim ella recusou-se a receber parte alguma da sua herança... E o Villaça arranjou as coisas por meio d'uma doação que lhe fiz, correspondente a doze contos de reis de renda...

- É bonito. Ella fallava de Rosa na carta?

- Sim, de passagem, que ia bem... Deve estar uma mulher.

- E bem linda!

Iam subindo a escadinha de ferro torneada que levava do jardim aos quartos de Carlos.

Com a mão na porta da vidraça, Ega parou ainda, n'uma derradeira curiosidade:

- E que effeito te fez isso?

Carlos accendia o charuto. Depois atirando o phosphoro por cima da varandinha de ferro onde uma trepadeira se enlaçava:

- Um effeito de conclusão, de absoluto remate. É como se ella morresse, morrendo com ella todo o passado, e agora renascesse sob outra fórma. Já não é Maria Eduarda. É

Madame de Trelain, uma senhora franceza. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braças, findo para sempre, sem mesmo deixar memoria... Foi o effeito que me fez.

- Tu nunca encontraste em Paris o snr. Guimarães?

- Nunca. Naturalmente morreu.

Entraram no quarto. Villaça, na supposição de Carlos vir para o Ramalhete, mandára-o preparar; e todo elle regelava - com o marmore das commodas espanejado e vazio, uma vela intacta n'um castiçal solitario, a colcha de fustão vincada de dobras sobre o leito sem cortinados. Carlos pousou o chapéo e a bengaIa em cima da sua antiga mesa de trabalho.

Depois, como dando um resumo:

- E aqui tens tu a vida, meu Ega! N'este quarto, durante noites, soffri a certeza de que tudo no mundo acabára para mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trappa. E tudo isto friamente, com uma conclusão logica. Por fim dez annos passaram, e aqui estou outra vez...

Parou diante do alto espelho suspenso entre as uas columnas de carvalho lavrado, deu um geito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente:

- E mais gordo!

Ega espalhava tambem pelo quarto um olhar pensativo:

- Lembras-te quando appareci aqui uma noite, n'uma agonia, vestido de Mephistopheles?

Então Carlos teve um grito. E a Rachel, é verdade! A Rachel? Que era feito da Rachel, esse lirio d'Israel?

Ega encolheu os hombros:

- Para ahi anda, estuporada...

Carlos murmurou - «coitada! E foi tudo o que disseram sobre a grande paixão romantica do Ega.

Carlos no emtanto fôra examinar, junto da janella, um quadro que pousava no chão, para alli esquecido e voltado para a parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de camurça na mão, os grandes olhos arabes na face triste e pallida que o tempo amarellára mais. Collocou-o em cima d'uma commoda. E atirando-lhe uma leve sacudidella com o lenço:

- Não ha nada que me faça mais pena do que não ter um retrato do avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris.

Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se enterrára, se, n'esses ultimos annos, elle não tivera a idéa, o vago desejo de voltar para Portugal...

Carlos considerou Ega com espanto. Para que? Para arrastar os passos tristes desde o Gremio até á Casa Havaneza? Não! Paris era o unico logar da terra congenere com o typo definitivo em que elle se fixára: - «o homem rico que vive bem». Passeio a cavallo no Bois;

almóço no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no club com os jornaes; um bocado de florete na sala d'armas; á noite a Comédie Française ou uma soirée; Trouville no verão, alguns tiros ás lebres no inverno; e através do anno as mulheres, as corridas, certo interesse pela sciencia, o bric-à-brac, e uma pouca de blague. Nada mais inoffensivo, mais nullo, e mais agradavel.

- E aqui tens tu uma existencia d'homem! Em dez annos não me tem succedido nada, a não ser quando se me quebrou o phaeton na estrada de Saint-Cloud..: Vim no Figaro.

Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:

- Falhámos a vida, menino!

- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é falha-se sempre na realidade aquella vida que se planeou com a imaginacão. Diz-se: «vou ser assim, porque a belleza está em ser assim». E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquez. Ás vezes melhor, mas sempre differente.

Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.

O quarto escurecia no crepusculo frio e melancolico d'inverno. Carlos pôz tambem o chapéo: e desceram pelas escadas forradas de velludo côr de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panoplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que n'aquella primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residencia ecclesiastica, com as suas paredes severas, a sua fila de janellinhas fechadas, as grades dos postigos terreos cheias de treva, mudo, para sempre deshabitado, cobrindo-se já de tons de ruina.

Uma commoção passou-lhe n'alma, murmurou, travando do braço do Ega:

Are sens