Ega recalcou a curiosidade de saber como estava a senhora. Galgou logo as escadas: e seguido de Villaça, que ficára na ante-camara á espreita, correu ao escriptorio d'Affonso, a escrever a Maria. N'um papel tarjado de luto dizia-lhe (além de detalhes sobre bagagens)-
que o wagon-salão estava tomado até Paris, e que elle teria a honra de a vêr em Santa Apolonia. Depois, ao fazer o sobrescripto, ficou com a penna no ar, n'um embaraço. Devia pôr «Madame Mac-Gren» ou «D. Maria Eduarda da Maia?» Villaça achava preferivel o antigo nome, porque ella legalmente ainda não era Maia. Mas, dizia o Ega atrapalhado, tambem já não era Mac-Gren...
-Acabou-se! Vae sem nome. Imagina-se que foi esquecimento...
Levou assim a carta, dentro do sobrescripto em branco. Melanie guardou-a no regalo.
E, debruçada portinhola, entristecendo a voz, desejou saber, da parte de Madame, onde estava enterrado o avô do senhor...
Ega ficou com o monoculo sobre ella, sem sentir bem se aquella curiosidade de Maria era indiscreta ou tocante. Por fim deu uma indicação. Era nos Prazeres, á direita, ao fundo, onde havia um anjo com uma tocha. O melhor seria perguntar ao guarda pelo jazigo dos snrs. Villaças.
- Merci, monsieur, bien le bonsoir.
- Bonsoir, Melanie!
No dia seguinte, na estação de Santa Apolonia, Ega, que viera cedo com o Villaça, acabava de despachar a sua bagagem para o Douro, quando avistou Maria que entrava trazendo Rosa pela mão. Vinha toda envolta n'uma grande pelliça escura, com um véo dobrado, espesso como uma mascara: e a mesma gaze de luto escondia o rostosinho da pequena, fazendo-lhe um laço sobre a touca. Miss Sarah, n'uma ulster clara de quadrados, sobraçava um masso de livros. Atraz o Domingos, com olhos muito vermelhos, segurava um rôlo de mantas, ao lado de Melanie carregada de preto que levava Niniche ao collo. Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a pelo braço, em silencio, ao wagon-salão que tinha todas as cortinas cerradas. Junto do estribo ella tirou devagar a luva. E muda, estendeu-lhe a mão.
- Ainda nos vemos no Entroncamento, murmurou Ega. Eu sigo tambem para o Norte.
Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao vêr sumir-se n'aquella carruagem de luxo, fechada, mysteriosa, uma senhora que parecia tão bella, d'ar tão triste, coberta de negro. E apenas Ega fechou a portinhola, o Neves, o da Tarde e do Tribunal de Contas, rompeu d'entre um rancho, arrebatou-lhe o braço com sofreguidão:
- Quem é?
Ega arrastou-o pela plataforma, para lhe deixar cahir no ouvido, já muito adiante, tragicamente:
- Cleopatra!
O politico, furioso, ficou rosnando: «Que asno!...» Ega abalára. Junto do seu compartimento Villaça esperava, ainda deslumbrado com aquella figura de Maria Eduarda, tão melancolica e nobre. Nunca a vira antes. E parecia-lhe uma rainha de romance.
- Acredite o amigo, fez-me impressão! Caramba, bella mulher! Dá-nos uma bolada, mas é uma soberba praça!
O comboio partiu. O Domingos ficava choramingando com um lenço de côres sobre a face. E o Neves, o conselheiro do Tribunal de Contas, ainda furioso, vendo o Ega á portinhola, atirou-lhe de lado, disfarçadamente, um gesto obsceno.
No Entroncamento Ega veio bater nos vidrosdo salão que se conservava fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia. Miss Sarah lia a um canto, com a cabeça n'uma almofada. E Niniche assustada ladrou.
- Quer tomar alguma coisa, minha senhora ?
- Não, obrigada...
Ficaram calados, emquanto Ega com o pé no estribo tirava lentamente a charuteira. Na estação mal alumiada passavam saloios, devagar, abafados em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a machina resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavam em frente do salão, com olhares curiosos e já languidos para aquella magnifica mulher, tão grave e sombria, envolta na sua pelliça negra.
- Vai para o Porto? murmurou ella.
- Para Santa Olavia...
- Ah!
Então Ega balbuciou com os beiços a tremer:
- Adeus!
Ella apertou-lhe a mão com muita força, em silencio, suffocada.
Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a tiracollo que corriam a beber á cantina. Á porta do buffete voltou-se ainda, ergueu o chapéo. Ella, de pé, moveu de leve o braço n'um lento adeus. E foi assim que elle pela derradeira vez na vida viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, á portinhola d'aquelle wagon que para sempre a levava.
VIII
Semanas depois, nos primeiros dias d'anno novo, a Gazeta Illustrada trazia na sua columna do High-life esta noticia: «O distincto e brilhante sportman, o snr. Carlos da Maia, e o nosso amigo e collaborador João da Ega, partiram hontem para Londres, d'onde seguirão em breve para a America do Norte, devendo d'ahi prolongar a sua interessante viagem até ao Japão. Numerosos amigos foram a bordo do Tamar despedir-se dos sympathicos touristes. Vimos entre outros os snrs. ministro da Filandia e seu secretario, o marquez de Souzella, conde de Gouvarinho, visconde de Darque, Guilherme Craft, Telles da Gama, Cruges, Taveira, Villaça, general Sequeira, o glorioso poeta Thomaz
'Alencar,etc. etc. O nosso amigo e collaborador João da Ega fez-nos, no ultimo shakehands, a promessa de nos mandar algumas cartas com as suas impressões do Japão, esse delicioso paiz d'onde nos vem o sol e a moda! É uma boa nova para todos os que prezam a observação e o espirito. Au revoir!»
Depois d'estas linhas affectuosas (em que o Alencar collaborára) as primeiras noticias dos «viajantes» vieram, n'uma carta do Ega para o Villaça, de New-York. Era curta, toda de negocios. Mas elle ajuntava um post-scriptum com o titulo de Informações geraes para os
amigos. Contava ahi a medonha travessia desde Liverpool, a persistente tristeza de Carlos, e New-York coberta de neve sob um sol rutilante. E acrescentava ainda: «Está-se apossando de nós a embriaguez das viagens, decididos a trilhar este estreito Universo até que cancem as nossas tristezas. Planeamos ir a Pekin, passar a Grande Muralha, atravessar a Asia Central, o oasis de Merv, Khiva, e penetrar na Russia; d'ahi, pela Armenia e pela Syria, descer ao Egypto a retemperar-nos no sagrado Nilo; subir depois a Athenas, lançar sobre a Acropole uma saudação a Minerva; passar a Napoles; dar um olhar a Argelia e a Marrocos; e cahir emfim ao comprido em Santa Olavia lá para os meados de 79 a descançar os membros fatigados. Não escrevinho mais porque é tarde,e vamos á Opera vêr a Patti no Barbeiro. Larga distribuição d'abraços a todos os amigos queridos.»
Villaça copiou este paragrapho, e trazia-o na carteira para mostrar aos fieis amigos do Ramalhete. Todos approvaram, com admiração, tão bellas, aventurosas jornadas. Só Cruges, aterrado com aquella vastidão do Universo, murmurou tristemente: «Não voltam cá!»
Mas, passado anno e meio, n'um lindo dia de março, Ega reappareceu no Chiado. E foi uma sensação! Vinha esplendido, mais forte, mais trigueiro, soberbo de verve, n'um alto apuro de toilette, cheio de historias e de aventuras do Oriente, não tolerando nada em arte ou poesia que não fosse do Japão ou da China, e annunciando um grande livro,o «seu livro», sob este titulo grave de chronica heroica - Jornadas da Asia.
- E Carlos?...
Magnifico! Installado em Paris, n'um delicioso appartamento dos Campos-Elyseos, fazendo a vida larga d'um principe artista da Renascença...
Ao Villaça porém, que sabia os segredos, Ega confessou que Carlos ficára ainda abalado. Vivia, ria, governava o seu phaeton no Bois - mas lá no fundo do seu coração permanecia, pesada e negra, a memoria da «semana terrivel».
Todavia os annos vão passando, Villaça, acrescentou elle. E com os annos, a não ser a China, tudo na terra passa...
E esse anno passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam. Outros annos passaram.
Nos fins de 1886, Carlos veio fazer o Natal perto de Sevilha, a casa d'um amigo seu de Paris, o marquez de Villa-Medina. E d'essa propriedade dos Villa-Medina, chamada La Soledad, escreveu para Lisboa ao Ega annunciando que - depois d'um exilio de quasi dez annos, resolvera vir ao velho Portugal vêr as arvores de Santa Olavia e as maravilhas da Avenida. De resto tinha uma formidavel nova, que assombraria o bom Ega: e se elle já ardia em curiosidade, que viesse ao seu encontro com o Villaça, comer o porco a Santa Olavia.
- Vae casar! pensou Ega.
Havia tres annos (desde a sua ultima estada em Paris) que elle não via Carlos.
Infelizmente não pôde correr a Santa Olavia, retido n'um quarto do Braganza com uma angina, desde uma ceia prodigiosamente divertida com que celebrára no Silva a noite de Reis. Villaça, porém, levou a Carlos para Santa Olavia uma carta em que o Ega, contando a sua angina, lhe supplicava que se não retardasse com o porco n'esses penhascos do Douro, e que voasse á grande Capital a trazer a grande nova.
Com effeito, Carlos pouco se demorou em Rezende. E n'uma luminosa e macia manhã de janeiro de 1887, os dois amigos emfim juntos almoçavam n'um salão do Hotel Braganza, com as duas janellas abertas para o rio.
Ega, já curado, radiante, n'uma excitação que não se calmava, alagando-se de café, entalava a cada instante o monoculo para admirar Carlos e a sua «immutabilidade».
- Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra de fadiga!... Tudo isso é Paris, menino!... Lisboa arraza. Olha para mim, olha para isto!
Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado do nariz, na face chupada.
E o que o aterrava sobretudo era a calva, uma calva que começára havia dois annos, alastrára, já reluzia no alto.
- Olha este horror! A sciencia para tudo acha um remedio, menos para a calva!