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- Ha tres annos, quando o snr. Affonso me encomendou aqui as primeiras obras, lembrei-lhe eu que, segundo uma antiga lenda, eram sempre fataes aos Maias as paredes do Ramalhete. O snr. Affonso da Maia riu d'agouros e lendas... Pois fataes foram!

No dia seguinte, levando os papeis da Monforte e o dinheiro em letras e libras que Villaça lhe entregára á porta do Banco de Portugal, Ega, com o coração aos pulos, mas decidido a ser forte, a affrontar a crise serenamente, subiu ao primeiro andar da rua de S.

Francisco. O Domingos, de gravata preta, movendo-se em pontas de pés, abriu o reposteiro da sala. E Ega pousára apenas sobre o sofá a velha caixa de charutos da Monforte - quando Maria Eduarda entrou, pallida, toda coberta de negro, estendendo-lhe as mãos ambas.

- Então Carlos ?

Ega balbuciou:

- Como v. exc.ª póde imaginar, n'um momento d'estes... Foi horrivel, assim de surpreza...

Uma lagrima tremeu nos olhos pisados de Maria. Ella não conhecia o snr. Affonso da Maia, nem sequer o vira nunca. Mas soffria realmente por sentir bem o soffrimento de Carlos... O que aquelle rapaz estremecia o avô!

- Foi de repente, não?

Ega retardou-se em longos detalhes. Agradeceu a corôa que ella mandára. Contou os gemidos, a afflicção do pobre Bonifacio...

- E Carlos? repetiu ella.

- Carlos foi para Santa Olavia, minha senhora.

Ella apertou as mãos, n'uma surpreza que a acabrunhava. Para Santa Olavia! E sem um bilhete, sem uma palavra?... Um terror empallidecia-a mais, diante d'aquella partida tão arrebatada, quasi parecida com um abandono. Terminou por murmurar, com um ar de resignação e de confiança que não sentia:

- Sim, com effeito, n'este momento não se pensa nos outros...

Duas lagrimas corriam-lhe devagar pela face. E diante d'esta dôr, tão humilde e tão muda, Ega ficou desconcertado. Durante um instante, com os dedos tremulos no bigode, viu Maria chorar em silencio. Por fim ergueu-se, foi á janella, voltou, abriu os braços diante d'ella n'uma afflicção:

- Não, não é isso, minha querida senhora! Ha outra coisa, ha ainda outra coisa! Tem sido para nós dias terriveis! Tem sido dias d'angustia...

Outra coisa?... Ella esperava, com os olhos largos sobre o Ega, a alma toda suspensa.

Ega respirou fortemente:

- V. exc.ª lembra-se d'um Guimarães, que vive em Paris, um tio do Damaso?

Maria, espantada, moveu lentamente a cabeça.

- Esse Guimarães era muito conhecido da de v. exc.ª não é verdade?

Ella teve o mesmo movimento breve e mudo. Mas o pobre Ega hesitava ainda, com a face arrepanhada e branca, n'um embaraço que o dilacerava:

- Eu fallo em tudo isto, minha senhora, porque Carlos assim me pediu... Deus sabe o que me custa!... E é horrível, nem sei por onde hei de começar...

Ella juntou as mãos, n'uma supplica, n'uma angustia:

- Pelo amor de Deus!

E n'esse instante, muito socegadamente, Rosa erguia uma ponta do reposteiro, com Niniche aolado e a sua boneca nos braços. A mãi teve um grito impaciente:

- Vai lá p'ra dentro! deixa-me!

Assustada, a pequena não se moveu mais, com os lindos olhos de repente cheios de agua. O reposteiro cahiu, do fundo do corredor veio um grande chôro magoado.

Então Ega teve só um desejo, o desesperado desejo de findar.

- V. exc.ª conhece a letra de sua mãi, não é verdade?... Pois bem! Eu trago aqui uma declaração d'ella a seu respeito... Esse Guimarães é que tinha este documento, com outros papeis que ella lhe entregou em 71, nas vesperas da guerra... Elle conservou-os até agora, e queria restituir-lh'os, mas não sabia onde v. exc.ª vivia. Viu-a ha dias n'uma carruagem, commigo, e com o Carlos... Foi ao pé do Aterro, v. exc.ª deve lembrar-se, defronte do alfaiate, quando vinhamos da Toca... Pois bem! o Guimarães veio immediatamente ao

procurador dos Maias, deu-lhe esses papeis, para que os entregasse a v. exc.ª... E nas primeiras palavras que disse, imagine o assombro de todos, quando se entreviu que v. exc.ª

era parenta de Carlos, e parenta muito chegada...

Atabalhoára esta historia de pé, quasi d'um fôlego, com bruscos gestos de nervoso. Ella mal comprehendia, livida, n'um indefinido terror. Só pôde murmurar muito debilmente:

«Mas...» E de novo emmudeceu, assombrada, devorando os movimentos do Ega que, debruçado sobre o sofá, desembrulhava a tremer a caixa de charutos da Monforte. Por fim voltou para ella com um papel na mão, atropellando as palavras n'uma debandada:

- A mãi de v. exc.ª nunca lh'o disse... Havia um motivo muito grave... Ella tinha fugido de Lisboa, fugido ao marido... Digo isto assim brutalmente, perdôe-me v. exc.ª mas não é o momento de attenuar as coisas... Aqui está! v. exc.ª conhece a letra de sua mãi. É d'ella esta letra, não é verdade?

- É! exclamou Maria, indo arrebatar o papel.

- Perdão! gritou Ega, retirando-lh'o violentamente. Eu sou um estranho! E v. exc.ª não se pode inteirar de tudo isto emquanto eu não sahir d'aqui.

Fôra uma inspiração providencial, que o salvava de testemunhar o choque terrivel, o horror das coisas que ella ia saber. E insistiu. Deixava-lhe alli todos os papeis que eram de sua mãi. Ella leria, quando elle sahisse, comprehenderia a realidade atroz... Depois, tirando do bolso os dois pesados rôlos de libras, o sobrescripto que continha a letra sobre Paris, pôz tudo em cima da mesa, com a declaração da Monforte.

- Agora só mais duas palavras. Carlos pensa que o que v. exc.ª deve fazer já é partir para Paris. V. exc.ª tem direito, como sua filha ha de ter, a uma parte da fortuna d'esta familia dos Maias, que agora é a sua... N'este masso que lhe deixo está uma letra sobre Paris para as despezas immediatas... O procurador de Carlos tomou já um wagon-salão.

Quando v. exc.ª decidir partir, peço-lhe que mande um recado ao Ramalhete para eu estar na gare... Creio que é tudo. E agora devo deixal-a...

Agarrára rapidamente o chapéo, veio tomar-lhe a mão inerte e fria:

- Tudo é uma fatalidade! V. exc.ª é nova, ainda lhe resta muita coisa na vida, tem a sua filha a consolal-a de tudo... Nem lhe sei dizer mais nada!

Suffocado, beijou-lhe a mão que ella lhe abandonou, sem consciencia e sem voz, de pé, direita no seu negro luto, com a lividez parada d'um marmore. E fugiu.

- Ao telegrapho! gritou em baixo ao cocheiro.

Foi só na rua do Ouro que começou a serenar, tirando o chapéo, respirando largamente.

E ia então repetindo a si mesmo rodas as consolações que se poderiam dar a Maria Eduarda: era nova e formosa; o seu peccado fôra inconsciente; o tempo acalma toda a dôr; e em breve, já resignada, encontrar-se-hia com uma familia séria, uma larga fortuna, n'esse amavel Paris, onde uns lindos olhos, com algumas notas de mil francos, têm sempre um reinado seguro...

- É uma situação de viuva bonita e rica, terminou elle por dizer alto no coupé. Ha peor na vida.

Ao sahir do telegrapho despediu a tipoia. Por aquella luz consoladora do dia de inverno, recolheu a pé para o Ramalhete, a escrever a longa carta que promettera a Carlos.

Villaça já lá estava installado, com um boné de velludilho na cabeça, emmassando ainda os papeis de Affonso, liquidando as contas dos criados. Jantaram tarde. E fumaram junto do lume, na sala Luiz XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora, em baixo, n'uma carruagem, procurava o snr. Ega. Foi um terror. Imaginaram logo Maria, alguma resolução

desesperada. Villaça ainda teve a esperança d'ella trazer alguma nova revelação, que tudo mudasse, salvasse da «bolada»... Ega desceu a tremer. Era Melanie n'uma tipoia de praça, abafada n'uma grande ulster com uma carta de Madame.

Á luz da lanterna Ega abriu o enveloppe, que trazia apenas um cartão branco, com estas palavras a lapis: «Decidi partir ámanhã para Paris.»

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