de verniz. A um canto do pateo uma portinha abria sobre a luz d'um quintal, que parecia ser um deposito de caixotes, de garrafas vazias e de lixo.
O gallego, que reconhecera o snr. Ega, conduziu-os logo, por uma escadinha esteirada, a um corredor largo, escuro, com cheiro a môfo. Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridade d'uma porta entreaberta. Quasi immediatamente Damaso gritou de lá:
- Ó Ega, é você? Entre para aqui, homem! Que diabo!... Eu estou-me a vestir...
Embaraçado com estes brados de intimidade e tanta effusão, Ega ergueu a voz da sombra do corredor, gravemente:
- Não tem duvida, nós esperamos...
O Damaso insistia, á porta, em mangas de camisa, cruzando os suspensorios:
- Venha você, homem! Que diabo, eu não tenho vergonha, já estou de calças!
- Ha aqui uma pessoa de ceremonia, gritou o Ega para findar.
A porta ao fundo cerrou-se, o gallego veio abrir a sala. O tapete era exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor abundavam os vestigios da antiga amizade com o Maia: o retrato de Carlos a cavallo, n'um vistoso caixilho de flôres em faiança: uma das colchas da India das senhoras Medeiros, branca e verde, enroupando o piano, arranjada por Carlos com alfinetes: e sobre um contador hespanhol, debaixo de redoma, um sapatinho de setim de mulher, novo, que o Damaso comprára no Serra, por ter ouvido um dia a Carlos que «em todo o quarto de rapaz deve apparecer, discretamente disposta, alguma reliquia d'amor...»
Sob estes retoques de chic, dados á pressa sob a influencia do Maia, impertigava-se a sólida mobilia do pai Salcede, de mogno e velludo azul; a console de marmore, com um relogio de bronze dourado, onde Diana acariciava um galgo; o grande e dispendioso espelho, tendo entalado no caixilho uma fila de bilhetes de visita, de retratos de cantoras, de convites para soirées. E Cruges ia examinar estes documentos, quando os passos alegres do Damaso soaram no corredor. O maestro correu logo a perfilar-se ao lado do Ega, diante do canapé de velludo, teso, commodo, com o seu chapéo alto na mão.
Ao vêl-o, o bom Damaso, que se abotoára todo n'uma sobrecasaca azul, florida por um botão de camelia, atirou risonhamente os braços ao ar:
- Então esta é que é a pessoa de ceremonia? Sempre vocês têm coisas! E eu a pôr sobrecasaca... Por pouco que não lhe afinfo
com o habito de Christo!...
Ega atalhou, muito sério:
- O Cruges não é de ceremonia, mas o motivo que aqui nos traz é delicado e grave, Damaso.
Damaso arregalou os olhos, reparando emfim n'aquelle estranho modo dos seus amigos, ambos de negro, seccos, tão solemnes. E recuou, todo o sorriso se lhe apagou na face.
- Que diabo é isso? Sentem-se, sentem-se vocês...
A voz apagava-se-lhe tambem. Pousado á borda d'uma poltrona baixa, junto d'uma mesa coberta d'encadernações ricas, com as mãos nos joelhos, ficou esperando, n'uma anciedade.
- Nós vimos aqui, começou Ega, em nome do nosso amigo Carlos da Maia...
Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Damaso até á risca do cabello encaracolado a ferro. E não achou uma palavra, attonito, suffocado, esfregando estupidamente os joelhos.
Ega proseguiu, lento, direito no canapé:
- O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Damaso publicou, ou fez publicar, um artigo extremamente injurioso para elle e para uma senhora das relações d'elle na Corneta do Diabo...
- Na Corneta, eu? acudiu o Damaso, balbuciando. Que Corneta? Nunca escrevi em jornaes, graças a Deus! Ora essa, a Corneta!...
Ega, muito friamente, tirou do bolso um masso de papeis. E veio collocal-os um por um, ao lado do Damaso, na mesa, sobre um magnifico volume da Biblia de Doré.
- Aqui está a sua carta remettendo ao Palma Cavallão o rascunho do artigo... Aqui está, pela sua letra igualmente, a lista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta, desde o Rei até á Fancelli... Além d'isso nós temos as declarações do Palma. O Damaso é não só o inspirador, mas materialmente o auctor do artigo... O nosso amigo Carlos da Maia exige, pois, como injuriado, uma reparação pelas armas...
Damaso deu um salto da poltrona, tão arrebatado - que involuntariamente Ega recuou, no receio d'uma brutalidade. Mas já o Damaso estava no meio da sala, esgazeado, com os braços tremulos no ar:
- Então o Carlos manda-me desafiar? A mim?... Que lhe fiz eu? Elle a mim é que me pregou uma partida!... Foi elle, vocês sabem perfeitamente que foi elle!...
E desabafou, n'um prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas ao peito, com os olhos marejados de lagrimas. Fôra Carlos, Carlos, que o desfeitiára a elle, mortalmente!
Durante todo o inverno tinha-o perseguido para que elle o apresentasse a uma senhora brazileira muito chic, que vivia em Paris, e que lhe fazia olho... E elle, bondoso como era, promettia, dizia: «Deixa estar, eu te apresento!» Pois, senhores, que faz Carlos? Aproveita uma occasião sagrada, um momento de luto, quando elle Damaso fôra ao Norte por causa da morte do tio, e mette-se dentro da casa da brazileira... E tanto intriga, que leva a pobre senhora a fechar-lhe a sua porta, a elle, Damaso, que era intimo do marido, intimo de tu!
Caramba, elle que devia mandar desafiar Carlos! Mas não! fôra prudente, evitára o escandalo por causa do snr. Affonso da Maia... Queixára-se de Carlos, é verdade... Mas no Gremio, na Casa Havaneza, entre rapaziada amiga... E no fim Carlos préga-lhe uma d'estas!
- Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!...
Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou placidamente que se desviavam do ponto vivo da questão. O Damaso concebera, rascunhára, pagára o artigo da Corneta. Isso não o negava, nem o podia negar: as provas estavam alli, abertas sobre a mesa: elles tinham além d'isso a declaração do Palma...
- Esse desavergonhado! gritou o Damaso, levado n'outra rajada d'indignação que o fez redemoinhar, estonteado, tropeçando nos moveis. Esse descarado do Palma! Com esse é que eu me quero vêr!... Lá a questão com o Carlos não vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos... Com o Palma é que é! Esse traidor é que eu quero rachar! Um homem a quem eu tenho dado ás meias libras, aos sete mil reis! E ceias, e tipoias! Um ladrão que pediu o relogio ao Zeferino para figurar n'um baptisado, e pôl-o no prégo!... E faz-me uma d'estas!... Mas hei de escavacal-o! Onde é que você o viu, Ega? Diga lá, homem! Que quero ir procural-o, hoje mesmo, correl-o a chicotadas... Traições não, não admitto a ninguem!
Ega, com a tranquillidade paciente de quem sente a prêsa certa, lembrou de novo a inutilidade d'aquellas divagações:
- Assim nunca acabamos, Damaso... O nosso ponto é este: o Damaso injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamente d'essa injuria, ou dá uma reparação pelas armas...
Mas o Damaso, sem escutar, appellava desesperadamente para o Cruges, que se não movera do sofá de velludo, esfregando, um contra o outro, com um ar arripiado e de dôr, os dois sapatos novos de verniz.
- Aquelle Carlos! Um homem que se dizia meu amigo intimo! Um homem que fazia de mim tudo! Até lhe copiava coisas... Você bem viu, Cruges. Diga! Falle, homem! Não sejam vocês todos contra mim!... Até ás vezes ia á alfandega despachar-lhe caixotes...
O maestro baixava os olhos, vermelho, n'um infinito mal-estar. E Ega, por fim, já farto, lançou uma intimação derradeira:
- Em resumo, Damaso, desdiz-se ou bate-se?
- Desdizer-me? tartamudeou o outro, impertigando-se, n'um penoso esforço de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora essa! É