Ega, em chinelas, deu alguns passos com o snr. dr. Azevedo, para lhe indicar a porta do jardim.
Carlos no emtanto ficára defronte do velho, sem chorar, perdido apenas no espanto d'aquelle brusco fim! Imagens do avô, do avô vivo e forte, cachimbando ao canto do fogão,
regando de manhã as roseiras, passaram-lhe n'alma, em tropel, deixando-lh'a cada vez mais dorida e negra... E era então um desejo de findar tambem, encostar-se como elle áquella mesa de pedra, e sem outro esforço, nenhuma outra dôr da vida, cahir como elle na sempiterna paz. Uma restea de sol, entre os ramos grossos do cedro, batia a face morta de Affonso. No silencio os passaros, um momento espantados, tinham recomeçado a chalrar.
Ega veio a Carlos, tocou-lhe no braço:
- É necessario leval-o para cima.
Carlos beijou a mão fria que pendia. E, devagar, com os beiços a tremer, levantou o avô pelos hombros carinhosamente. Baptista correra a ajudar; Ega, embaraçado no seu largo roupão, segurava os pés do velho. Através do jardim, do terraço cheio de sol, do escriptorio onde a sua poltrona esperava diante do lume accêso, foram-o transportando n'um silencio só quebrado pelos passos dos criados, que corriam a abrir as portas, acudiam quando Carlos, na sua perturbação, ou o Ega fraquejavam sob o peso do grande corpo.
A governante já estava no quarto d'Affonso com uma colcha de sêda para estender na singela cama de ferro, sem cortinado. E alli o depuzeram emfim sobre as ramagens claras bordadas na sêda azul.
Ega accendera dois castiçaes de prata: a governante, de joelhos á beira do leito, esfiava o rosario: e Mr. Antoine, com o seu barrete branco de cozinheiro na mão, ficára á porta, junto d'um cesto que trouxera, cheio de camelias e palmas de estufa. Carlos, no emtanto, movendo-se pelo quarto, com longos soluços que o sacudiam, voltava a cada instante, n'uma derradeira e absurda esperança, palpar as mãos ou o coração do velho. Com o jaquetão de velludilho, os seus grossos sapatos brancos, Affonso parecia mais forte e maior, na sua rigidez, sobre o leito estreito: entre o cabello de neve cortado á escovinha e a longa barba desleixada, a pelle ganhára um tom de marfim velho, onde as rugas tomaram a dureza d'entalhaduras a cinzel: as palpebras engelhadas, de pestanas brancas, pousavam com a consolada serenidade de quem emfim descança; e ao deitarem-no uma das mãos ficára-lhe aberta e posta sobre o coração, na simples e natural attitude de quem tanto pelo coração vivêra!
Carlos perdia-se n'esta contemplação dolorosa. E o seu desespero era que o avô assim tivesse partido para sempre, sem que entre elles houvesse um adeus, uma dôce palavra trocada. Nada! Apenas aquelle olhar angustiado, quando passára com a vela accêsa na mão.
Já então elle ia andando para a morte. O avô sabia tudo, d'isso morrera! E esta certeza sem cessar lhe batia n'alma, com uma longa pancada repetida e lugubre. O avô sabia tudo, d'isso morrera!
Ega veio com um gesto indicar-lhe o estado em que estavam - elle de robe-de-chambre, Carlos com o paletot sobre a camisa de dormir:
- É necessario descer, é necessario vestir-nos.
Carlos balbuciou:
- Sim, vamo-nos vestir...
Mas não se arredava. Ega levou-o brandamente pelo braço. Elle caminhava como um somnambulo, passando o lenço devagar pela testa e pela barba. E de repente no corredor, apertando desesperadamente as mãos, outra vez coberto de lagrimas, n'um agoniado desabafo de toda a sua culpa:
Ega, meu querido Ega! O avô viu-me esta manhã quando entrei! E passou, não me disse nada... Sabia tudo, foi isso que o matou!...
Ega arrastou-o, consolou-o, repellindo tal idéa. Que tolice! O avô tinha quasi oitenta annos, e uma doença de coração... Desde a volta de Santa Olavia, quantas vezes elles tinham fallado n'isso, aterrados! Era absurdo ir agora fazer-se mais desgraçado com semelhante imaginação!
Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhos postos no chão:
- Não! É estranho, não me faço mais desgraçado! Aceito isto como um castigo... Quero que seja um castigo... E sinto-me só muito pequeno, muito humilde diante de quem assim me castiga. Esta manhã pensava em matar-me. E agora não! É o meu castigo viver, esmagado para sempre... O que me custa é que elle não me tivesse dito adeus!!
De novo as lagrimas lhe correram, mas lentas, mansamente, sem desespero. Ega levou-o para o quarto, como uma criança. E assim o deixou a um canto do sofá, com o lenço sobre a face, n'um chôro continuo e quieto, que lhe ia lavando, alliviando o coração de todas as angustias confusas e sem nome que n'esses dias derradeiros o traziam suffocado.
Ao meio dia, em cima, Ega acabava de vestir-se quando Villaça lhe rompeu pelo quarto de braços abertos.
- Então como foi isto, como foi isto?
Baptista mandára-o chamar pelo trintanario, mas o rapazola pouco lhe soubera contar.
Agora em baixo o pobre Carlos abraçára-o, coitadinho, lavado em lagrimas, sem poder dizer nada, pedindo-lhe só para se entender em tudo com o Ega... E alli estava.
- Mas como foi, como foi, assim de repente?...
Ega contou, brevemente, como tinham encontrado Affonso de manhã no jardim, tombado para cima da mesa de pedra. Viera o dr. Azevedo, mas tudo acabára!
Villaça levou as mãos á cabeça:
- Uma coisa assim! Creia o amigo! Foi essa mulher, essa mulher que ahi appareceu, que o matou! Nunca foi o mesmo depois d'aquelle abalo! Não foi mais nada! Foi isso!
Ega murmurava, deitando machinalmente agua de Colonia no lenço:
- Sim, talvez, esse abalo, e oitenta annos, e poucas cautelas, e uma doença de coração.
Fallaram então do enterro, que devia ser simples como convinha áquelle homem simples. Para depositar o corpo, emquanto não fosse trasladado para Santa Olavia, Ega lembrára-se do jazigo do marquez.
Villaça coçava o queixo, hesitando:
- Eu tambem tenho um jazigo. Foi o proprio snr. Affonso da Maia que o mandou erguer para meu pai, que Deus haja... Ora parece-me que por uns dias ficava lá perfeitamente. Assim não se pedia a ninguem, e eu tinha n'isso muita honra...
Ega concordou. Depois fixaram outros detalhes de convite, de hora, de chave do caixão. Por fim Villarça, olhando o relogio, ergueu-se com um grande suspiro:
- Bem, vou dar esses tristes passos! E cá appareço logo, que o quero vêr pela ultima vez, quando o tiverem vestido. Quem me havia de dizer! Ainda antes de hontem a jogar com elle... Até lhe ganhei tres mil reis, coitadinho!
Uma onda de saudade suffocou-o, fugiu com o lenço nos olhos.
Quando Ega desceu, Carlos, todo de luto, estava sentado á escrivaninha, diante d'uma folha de papel. Immediatamente ergueu-se, arrojou a penna.
- Não posso!... Escreve-lhe tu ahi, a ella, duas palavras.
Em silencio, Ega tomou a penna, redigiu um bilhete muito curto. Dizia: «Minha senhora. O snr. Affonso da Maia morreu esta madrugada, de repente, com uma apoplexia.
V. exc.ª comprehende que, n'este momento, Carlos nada mais póde do que pedir-me para
eu transmittir a v. exc.ª esta desgraçada noticia. Creia-me, etc.» Não o leu a Carlos. E como Baptista entrava n'esse momento, todo de preto, com o almoço n'uma bandeja, Ega pediu-lhe para mandar o trintanario com aquelle bilhete á rua de S. Francisco. Baptista segredou sobre o hombro do Ega:
- É bom não esquecer as fardas de luto para os criados...
- O snr. Villaça já sabe.
Tomaram chá á pressa em cima do taboleiro. Depois Ega escreveu bilhetes a D. Diogo e ao Sequeira, os mais velhos amigos d'Affonso: e davam duas horas quando chegaram os homens com o caixão para amortalhar o corpo. Mas Carlos não permittiu que mãos mercenarias tocassem no avô. Foi elle e o Ega, ajudados pelo Baptista, que, corajosamente, recalcando a emoção sob o dever, o lavaram, o vestiram, o depuzeram dentro do grande cofre de carvalho, forrado de setim claro, onde Carlos collocou uma miniatura de sua avó Runa. Á tarde, com auxilio de Villaça, que voltára «para dar o ultimo olhar ao patrão», desceram-no ao escriptorio, que Ega não quizera alterar nem ornar, e que, com os damascos escarlates, as estantes lavradas, os livros juncando a carteira de pau preto, conservava a sua feição austera de paz estudiosa. Sómente, para depôr o caixão, tinham juntado duas largas mesas, recobertas por um panno de velludo negro que havia na casa, com as armas bordadas a ouro. Por cima o Christo de Rubens abria os braços sobre a vermelhidão do poente. Aos lados ardiam doze castiçaes de prata. Largas palmas d'estufa cruzavam-se á cabeceira do esquife, entre ramos de camelias. E Ega accendeu um pouco de incenso em dois perfumadores de bronze.
Á noite o primeiro dos velhos amigos a apparecer foi D. Diogo, solemne, de casaca.
Encostado ao Ega, aterrado diante do caixão, só pôde murmurar: - «E tinha menos sete mezes que eu!» O marquez veio já tarde, abafado em mantas, trazendo um grande cesto de flôres. Craft e o Cruges nada sabiam, tinham-se encontrado na rampa de Santos; - e receberam a primeira surpreza ao vêr fechado o portão do Ramalhete. O ultimo a chegar foi o Sequeira, que passára o dia na quinta, e se abraçou em Carlos, depois no Craft ao acaso, entontecido, com uma lagrima nos olhos injectados, balbuciando: - «Foi-se o companheiro de muitos annos. Tambem não tardo!...»
E a noite de vigilia e pezames começou, lenta e silenciosa. As doze chammas das velas ardiam, muito altas, n'uma solemnidade funeraria. Os amigos trocaram algum murmurio abafado, com as cadeiras chegadas. Pouco a pouco, o calor, o aroma do incenso, a exhalação das flôres forçaram o Baptista a abrir uma das janellas do terraço. O céo estava cheio d'estrellas. Um vento fino susurrara nas ramagens do jardim.
Já tarde Sequeira, que não se movera d'uma poltrona, com os braços cruzados, teve uma tontura. Ega levou-o á sala de jantar, a reconfortal-o com um calice de cognac. Havia lá uma ceia fria, com vinhos e dôces. E Craft veio tambem - com o Taveira, que soubera a desgraça na redacção da Tarde, e correra quasi sem jantar. Tomando um pouco de Bordeus, uma sandwich, Sequeira reanimava-se, lembrava o passado, os tempos brilhantes, quando Affonso e elle eram novos. Mas emmudeceu vendo apparecer Carlos, pallido e vagaroso como um somnambulo, que balbuciou: «Tomem alguma coisa, sim, tomem alguma coisa...»
Mexeu n'um prato, deu uma volta á mesa, sahiu. Assim vagamente foi até á antecamara, onde todos os candelabros ardiam. Uma figura esguia e negra surgiu da escada.
Dois braços enlaçaram-no. Era o Alencar.