- O que está com a Pingada. Vossê não conhece, creio eu. Um rapazola magro, que não é feio... Semsaborão, escreve uma palhada... Mas sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa de Gabellas, que elle chama a sua cabelluda... Que o Silvestre ás vezes tem graça! E sabe, sabe coisas da sociedade, assim maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices... Vossê nunca leu nada d'elle? Chôcho. Tenho sempre de lhe arranjar o estylo... N'este numero é que havia um folhetimzito meu, catita, cá á moderna, como eu gósto, alli com a piadinha realista a bater... Emfim fica para outra vez. E outra coisa, Ega, olhe que lhe agradeço. Quando quizer, eu e a Corneta ás ordens!
Ega estendeu-lhe a mão:
- Obrigado, digno Palma! E adiós!
- Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benemerito homem com infinito salero.
Em baixo Carlos esperava, dentro do coupé.
- E agora? perguntou Ega, á portinhola.
- Agora salta para dentro e vamos liquidar com o Damaso...
Carlos já esboçára summariamente o plano d'essa liquidação. Queria mandar desafiar o Damaso como author comprovado d'um artigo de jornal que o injuriava. O duello devia ser á espada ou ao florete, um d'esses ferros cujo lampejo, na sala d'armas do Ramalhete, fazia empallidecer o Damaso. Se contra toda a verosimilhança elle se batesse, Carlos fazia-lhe algures, entre a bochecha e o ventre, um furo que o cravasse mezes na cama. Senão a unica explicação que Carlos aceitaria do snr. Salcede seria um documento em que elle escrevesse esta coisa simples: «Eu abaixo assignado declaro que sou um infame.» E para estes serviços Carlos contava com o Ega.
- Agradeço! agradeço! Vamos a isso! exclamava o Ega esfregando as mãos, faiscando de jubilo.
No emtanto, dizia elle, a etiqueta funebre reclamava outro padrinho; e lembrou o Cruges, moço passivo e malleavel. Mas era impossivel encontrar o maestro, porque invariavelmente a criada affirmava que o menino Victorino não estava em casa...
Decidiram ir ao Gremio, mandar de lá um bilhete chamando o Cruges - «para um caso urgente d'amizade e d'arte».
- Com quê, dizia o Ega continuando a esfregar as mãos emquanto a tipoia trotava para a rua de S. Francisco, com quê, demolir o nosso Damaso?
- Sim, é necessario acabar com esta perseguição. Chega a ser ridiculo... E com uma estocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado por algum tempo. Eu preferia a estocada. Senão deixo-te a ti arranjar os termos d'uma carta forte...
- Has de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade.
No Gremio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por elle na sala das Illustrações. O conde de Gouvarinho e Steinbroken conversavam de pé, no vão d'uma janella. E foi uma surpreza. O ministro da Filandia abriu os braços para o cher Maia, que elle não vira desde a partida d'Affonso para Santa Olavia. Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente, reatando uma certa camaradagem que entre elles se formára n'esse verão, em Cintra: mas o aperto de mão a Carlos foi sêcco e curto. Já dias antes, tendo-se encontrado no Loreto, o Gouvarinho murmurára de leve e de passagem «um como está, Maia?» em que se sentia arrefecimento. Ah! ja não eram essas effusões, essas palmadas enternecidas pelos hombros, dos tempos em que Carlos e a condessa fumavam cigarettes na cama da titi em Santa Isabel. Agora que Carlos abandonára a snr.ª condessa de Gouvarinho, a rua de S.
Marçal e o commodo sofá em que ella cahia com um rumor de saias amarrotadas - o marido amuava, como abandonado tambem.
- Tenho tido saudade das nossas bellas discussões em Cintra! disse elle, dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outr'ora pertencia ao Maia. Tivemol-as de primeira ordem!
Eram realmente «pégas tremendas» no pateo do Victor sobre litteratura, sobre religião, sobre moral... Uma noite mesmo tinham-se zangado por causa da divindade de Jesus.
- É verdade! acudiu o Ega. Vossê n'essa noite parecia ter ás costas uma opa de irmão do Senhor dos Passos!
O conde sorriu. Irmão do Senhor dos Passos não, graças a Deus! Ninguem melhor do que elle sabia que n'esses sublimes episodios do Evangelho reinava bastante lenda... Mas emfim eram lendas que serviam para consolar a alma humana. É o que elle objectára n'essa noite ao amigo Ega... Sentiam-se a philosophia e o racionalismo capazes de consolar a mãi que chora? Não. Então...
-Em todo o caso, tivemol-as brilhantes! concluiu elle olhando o relogio. E, eu confesso, uma discussão elevada sobre religião, sobre metaphysica, encanta-me... Se a politica me deixasse vagares dedicava-me á philosophia... Nasci para isso, para aprofundar problemas.
Steinbroken no emtanto, esticado na sua sobre-casaca azul, com um raminho d'alecrim ao peito, tomára as mãos de Carlos:
- Mais vous êtes encore devenu plus fort!... Et Affonso da Maia, toujours dans ses terres?... Est-ce qu'on ne va pas le voir un peu cet hiver?
E immediatamente lamentou não ter visitado Santa Olavia. Mas quê! a familia real installára-se em Cintra; elle fôra forçado a acompanhal-a, fazer a sua côrte... Depois necessitára ir de fugida a Inglaterra d'onde acabava de chegar, havia dias.
Sim, Carlos sabia, vira na Gazeta Illustrada...
- Vous avez lu ça? Oh oui, on a été très aimable, très aimable pour moi à la Gazette...
Tinham-lhe annunciado a partida, depois a chegada, com palavras de amizade particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada esta affeição sincera que liga Portugal e a Filandia... «Mais enfin on avait été charmant, charmant!...»
- Seulement- ajuntou elle, sorrindo com finura e voltando-se tambem para o Gouvarinho - on a fait une petite erreur... On a dit que j'étais venu de Southampton par le Royal Mail... Ce n'est pas vrai, non! Je me suis embarqué à Bordeaux dans les Messageries.
J'ai même pensé à écrire à Mr. Pinto, redacteur de la Gazette, qui est un charmant garçon...
Puis, j'ai reflechi, je me suis dit: «Mon Dieu, on va croire que je veux donner une leçon d'exactitude à la Gazette c'est très grave... » Alors, voilà, très prudemment, j'ai gardé le silence...
Mais enfin c'est une erreur: je me suis embarqué à Bordeaux.
Ega murmurou que a Historia se encarregaria um dia de rectificar esse facto. O
ministro sorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia desejar, por polidez, quc a Historia se não incommodasse. E então o Gouvarinho, que accendêra o charuto, espreitára outra vez o relogio, perguntou se os amigos tinham ouvido alguma coisa do ministerio e da crise.
Foi uma surpreza para ambos, que não tinham lido os jornaes... Mas, exclamou logo o Ega, crise porquê, assim em pleno remanso, com as camaras fechadas, tudo contente, um tão lindo tempo d'outono?
O Gouvarinho encolheu os hombros com reserva. Houvera na vespera, á noitinha, uma reunião de ministros; n'essa manhã o presidente do conselho fôra ao paço, fardado, determinado a «largar o poder»... Não sabia mais. Não conferenciára com os seus amigos, nem mesmo fôra ao seu Centro. Como n'outras occasiões de crise, conservára-se retirado, calado, esperando... Alli estivera toda a manhã, com o seu charuto, e a Revista dos Dois Mundos.
Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco patriotica...
- Porque emfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...
- Exactamente por isso, acudiu o conde com uma côr viva na face, não desejo pôr-me em evidencia... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o ter... Se a minha experiencia, a minha palavra, o meu nome são necessarios, os meus correligionarios sabem onde eu estou, venham pedir-m'os...
Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas coisas politicas, começou logo a retrahir-se para o fundo da janella, limpando os vidros da luneta, recolhido, já impenetravel, no grande recato neutral que competia á Filandia. Ega no
emtanto não sahia do seu espanto. Mas porque cahia, porque cahia assim um governo com maioria nas camaras, socego no paiz, o apoio do exercito, a benção da Igreja, a protecção do Comptoir d'Escompte?...