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Então, no silencio, D. Diogo disse pensativamente, com a sua magestade de leão saudoso que relembra um grande passado:

- Uma musica tambem muito distinguée antigamente eram os sinos do mosteiro.

Parecia mesmo que se estavam ouvindo os sinos... Já não ha d'isso!

O jantar terminava friamente. Steinbroken voltára áquella falta da familia real no sarau, que desde a vespera o inquietava. Ninguem alli se interessava pelo Paço. Depois D. Diogo surdiu com uma velhe e fastidiosa historia sobre a infanta D. Isabel. Foi um allivio quando o escudeiro trouxe em volta a larga bacia de prata e o jarro d'agua perfumada.

Ao fim do café, servido no bilhar, Steinbroken e Craft começaram uma partida «ás cincoenta» e a quinze tostões para interessar. Affonso e D. Diogo tinham recolhido ao escriptorio. Ega enterrára-se no fundo de uma poltrona, com o Figaro. Mas bem depressa deixou escorregar a folha no tapete, cerrou os olhos. Então Carlos, que passeava pensativamente fumando, olhou um momento o Ega adormecido, e sumiu-se por traz do reposteiro.

Ia á rua de S. Francisco.

Mas não se apressava, a pé pelo Aterro, abafado n'um paletot de pelles, acabando o charuto. A noite clareára, com o crescente de lua entre farrapos de nuvens brancas, que fugiam sobre um norte fino.

Fôra n'essa tarde, só no seu quarto, que Carlos decidira ir fallar a Maria Eduarda - por um motivo supremo de dignidade e de razão, que elle descobrira e que repetia a si mesmo incessantemente para se justificar. Nem ella nem elle eram duas crianças frouxas, necessitando que a crise mais temerosa da sua vida lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo Villaça: mas duas pessoas fortes, com o animo bastante resoluto, e o juizo bastante seguro, para elles mesmos acharem o caminho da dignidade e da razão n'aquella catastrophe que lhes desmantelava a existencia. Por isso elle, só elle devia ir á rua de S.

Francisco.

Decerto era terrivel tornar a vêl-a n'aquella sala, quente ainda do seu amor, agora que a sabia sua irmã... Mas porque não? Havia acaso alli dois devotos, possuidos da preoccupação do demonio, espavoridos pelo peccado em que se tinham atolado ainda que inconscientemente, anciosos por irem esconder no fundo de mosteiros distantes o horror carnal um do outro? Não! Necessitavam elles acaso pôr immediatamente entre si as compridas legoas que vão de Lisboa a Santa Olavia, com receio de cahir na antiga fragilidade, se de novo os seus olhos se encontrassem com a antiga chamma? Não! Ambos tinham em si bastante força para enterrar o coração sobre a razão, como sob uma fria e dura pedra, tão completamente que não lhe sentissem mais nem a revolta nem o chôro. E elle podia desafogadamente voltar áquella sala, toda quente ainda do seu amor...

De resto, que precisavam appellar para a razão, para a sua coragem de fortes?... Elle não ia revelar bruscamente toda a verdade a Maria Eduarda, dizer-lhe um «adeus!»

pathetico, um adeus de theatro, affrontar uma crise de paixão e dôr. Pelo contrario! Toda essa tarde, através do seu proprio tormento, procurára anciosamente um meio de adoçar e graduar áquella pobre creatura o horror da revelação que lhe devia. E achára um por fim, bem complicado, bem cobarde! Mas que! Era o unico, o unico que por uma preparação lenta, caridosa, lhe pouparia uma dôr fulminante e brutal. E esse meio justamente só era praticavel indo elle, com toda a frieza, com todo o animo, á rua de S. Francisco.

Por isso ia - e ao longo do Aterro retardando os passos, resumia, retocava esse plano, ensaiando mesmo comsigo, baixo, palavras que lhe diria. Entraria na sala, com um grande ar de pressa - e contava-lhe que um negocio de casa, uma complicação de feitores o obrigava a partir para Santa Olavia d'ahi a dias. E immediatamente sahia, com o pretexto de

correr a casa do procurador. Podia mesmo ajuntar - «é um momento, não tardo, até já.»

Uma coisa o inquietava. Se ella lhe désse um beijo?... Decidia então exagerar a sua pressa, conservando o charuto na bôca, sem mesmo pousar o chapéo... E sahia. Não voltava. Pobre d'ella, coitada, que ia esperar até tarde, escutando cada rumor de carruagem na rua!... Na noite seguinte abalava para Santa Olavia com o Ega, deixando-lhe a ella uma carta a annunciar que infelizmente, por causa d'um telegramma, se viria forçado a partir n'esse comboio. Podia mesmo ajuntar - «volto d'aqui a dois ou tres dias...» E ahi estava longe d'ella para sempre. De Santa Olavia escrevia-lhe logo, d'um modo incerto e confuso, fallando de documentos de familia, inesperadamente descobertos, provocando entre elles um parentesco chegado. Tudo isto atrapalhado, curto, «á pressa». Por fim n'outra carta deixava escapar toda a verdade, mandava-lhe a declaração da mãe; e mostrando a necessidade d'uma separação, emquanto se não esclarecessem todas as duvidas, pedia-lhe que partisse para Paris. Villaça ficava encarregado da questão de dinheiro, entregando-lhe logo para a viagem trezentas ou quatrocentas libras... Ah! Tudo isto era bem complicado, bem covarde! Mas só havia esse meio. E quem, senão elle, o podia tentar com caridade e com tacto?

E, entre o tumulto d'estes pensamentos, de repente achou-se na travessa da Parreirinha, defronte da casa de Maria. Na sala, através das cortinas, transparecia uma luz dormente.

Todo o resto estava apagado - a janella do gabinete estreito onde ella se vestia, a varanda do quarto d'ella com os vasos de chrysantemos.

E pouco a pouco aquella fachada muda d'onde apenas sahia, a um canto, uma claridade languida d'alcova adormecida, foi-o estranhamente penetrando de inquietação e desconfiança. Era uma medo d'essa penumbra molle que sentia lá dentro, toda cheia de calor e do perfume em que havia jasmim. Não entrou; seguiu devagar pelo passeio fronteiro, pensando em certos detalhes da casa – o sofá largo e profundo com almofadas de sêda, as rendas do toucador, o cortinado branco da cama d'ella... Depois parou diante da larga barra de claridade que sahia do portão do Gremio; e foi para lá, machinalmente attrahido pela simplicidade e segurança d'aquella

entrada, lageada de pedra, com grossos bicos de gaz, sem penumbras e sem perfumes.

Na sala, em baixo, ficou percorrendo sem os comprehender, os telegrammas soltos sobre a mesa. Um criado passou, elle pediu cognac. Telles da Gama, que vinha de dentro assobiando, com as mãos nos bolsos do paletot, deteve-se um momento para lhe perguntar se ia na terça-feira aos Gouvarinhos.

- Talvez, murmurou Carlos.

- Então venha!... Eu ando a arrebanhar gente... São os annos do Charlie, de mais a mais. Cae lá o peso do mundo, e ha ceia!...

O criado entrou com a bandeja - e Carlos, de pé junto da mesa, remexendo o assucar no copo, recordava, sem saber porque, aquella tarde em que a condessa, pondo-lhe uma rosa no casaco, lhe dera o primeiro beijo; revia o sofá onde ella cahira com um rumor de sêdas amarrotadas... Como tudo isto era já vago e remoto!

Apenas acabou o cognac shiu. Agora, caminhando rente das casas, não via aquella fachada que o perturbava com a sua claridade d'alcova morrendo nos vidros. O portão ficára cerrado, o gaz ardia no patamar. E subiu, sentindo mais pela escada de pedra as pancadas do coração que o pousar dos seus passos. Melanie, que veio abrir, disse-lhe que a senhora, um pouco cansada, se fôra encostar sobre a roupa; - e a sala, com effeito, parecia abandonada por essa noite, com as serpentinas apagadas, o bordado ocioso e enrolado no

seu cesto, os livros n'um frio arranjo orlando a mesa onde o candieiro espalhava uma luz tenue sob o abat-jour de renda amarella.

Carlos tirara as luvas, lentamente, retomado de novo por uma inquietação ante aquelle recolhimento adormecido. E de repente Rosa correu de dentro, rindo, pulando, com os cabellos soltos nos hombros, os braços abertos para elle. Carlos levantou-a ao ar, dizendo como costumava: «Lá vem a cabrita!... »

Mas então, quando a tinha assim suspensa, batendo os pésinhos - atravessou-o a idéa de que aquella criança era sua sobrinha e tinha o seu nome!... Largou-a, quasi a deixou cahir - assombrado para ella, como se pela vez primeira visse essa facesinha eburnea e fina onde corria o seu sangue...

- Que estás tu a olhar para mim? murmurou ella, recuando e serrindo, com as mãosinhas cruzadas atraz das saias que tufavam.

Elle não sabia, parecia-lhe outra Rosa: e á sua perturbação misturava-se uma saudade pela antiga Rosa, a outra, a que era filha de Madame MacGren, a quem elle contava historias de Joanna d'Arc, a quem balouçava na Toca sob as acacias em flôr. Ella no emtanto sorria mais, com um brilho nos dentinhos miudos, uma ternura nos bellos olhos azues, vendo-o assim tão grave e tão mudo, pensando que elle ia brincar, fazer «voz de Carlos Magno». Tinha o mesmo sorriso da mãi, com a mesma covinha no queixo. Carlos viu n'ella de repente toda a graça de Maria, todo o encanto de Maria. E arrebatou-a de novo nos braços, tão violentamente, com beijos tão bruscos no cabello e nas faces, que Rosa estrebuchou, assustada e com um grito. Soltou-a logo, n'um receio de não ter sido casto...

Depois, muito sério:

- Onde está a mamã?

Rosa coçava o braço, com a testasinha franzida:

- Apre!... Magoaste-me.

Carlos passou-lhe pelos cabellos a mão que ainda tremia.

- Vá, não sejas piegas, a mamã não gosta. Onde está ella?

A pequena, aplacada, já contente, pulava em redor, agarrando nos pulsos de Carlos para que elle saltasse tambem...

- A mamã foi deitar-se... Diz que está muito cansada, depois chama-me a mim preguiçosa... Vá, salta tambem. Não sejas mono!...

N'esse instante, do corredor, miss Sarah chamou:

- Mademoiselle!...

Rosa pôz o dedinho na bôca cheia de riso:

- Dize-lhe que não estou aqui! A vêr... Para a fazer zangar!... Dize!

Miss Sarah erguera o reposteiro; e descobriu-a logo escondida, sumida por traz de Carlos, na pontinha dos pés, fazendo-se pequenina. Teve um sorriso benevolo, murmurou

«good night, sir». Depois lembrou que eram quasi nove e meia, mademoiselle tinha estado um pouco constipada e devia recolher-se. Então Carlos puxou brandamente pelo braço de Rosa, acariciou-a ainda para que ella obedecesse a miss Sarah.

Mas Rosa sacudia-o, indignada d'aquella traição.

- Tambem nunca fazes nada!... Semsaborão! Pois olha, nem te digo adeus!

Atravessou a sala, amuada, esquivou-se com um repellão á governante que sorria e lhe estendia a mão - e pelo corredor rompeu n'um chôro despeitado e pêrro. Miss Sarah risonhamente desculpou mademoiselle. Era a constipação que a tornava impertinente. Mas se fosse diante da mamã não fazia aquillo, não!

- Good night, sir.

- Good night, miss Sarah...

Só, Carlos errou alguns momentos pela sala. Por fim ergueu o pedaço de tapeçaria que cerrava o estreito gabinete onde Maria se vestiu. Ahi, na escuridão, um brilho pallido d'espelho tremia, batido por um longo raio do candieiro da rua. Muito de leve empurrou a porta do quarto.

- Maria!... Estás a dormir?

Are sens