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Não havia luz; mas o mesmo candieiro da rua, através do transparente erguido, tirava das trevas a brancura vaga do cortinado que envolvia o leito. E foi d'ahi que ella murmurou, mal acordada:

- Entra! Vim-me deitar, estava muito cansada... Que horas são?

Carlos não se movera, ainda com a mão na porta:

- É tarde, e eu preciso sahir já a procurar o Villaça... Vinha dizer-te que tenho talvez de ir a Santa Olavia, além d'ámanhã, por dois ou tres dias...

Um movimento, entre os cortinados, fez ranger o leito.

- Para Santa Olavia?... Ora essa, porque? E assim de repente... Entra!... Vem cá!

Então Carlos deu um passo no tapete, sem rumor. Ainda sentia o ranger molle do leito.

E já todo aquelle aroma d'ella que tão bem conhecia, esparso na sombra tepida, o envolvia, lhe entrava n'alma com uma seducção inesperada de carícia nova, que o perturbava estranhamente. Mas ia balbuciando, insistindo na sua pressa de encontrar essa noite o Villaça.

- É uma massada, por causa d'uns feitores, d'umas aguas....

Tocou no leito; e sentou-se muito á beira, n'uma fadiga que de repente o enleára, lhe tirava a força para continuar essas invenções d'aguas e de feitores, como se ellas fossem montanhas de ferro a mover.

O grande e bello corpo de Maria, embrulhado n'um roupão branco de sêda, movia-se, espreguiçava-se languidamente sobre o leito brando.

- Achei-me tão cansada, depois de jantar, veio-me uma preguiça... Mas então partires assim de repente!... Que sécca! D'á cá a mão!

Elle tenteava, procurando na brancura da roupa: encontrou um joelho a que percebia a fórma e o calor suave, através da sêda leve: e alli esqueceu a mão, aberta e frouxa, como morta, n'um entorpecimento onde toda a vontade e toda a consciencia se lhe fundiam, deixando-lhe apenas a sensação d'aquella pelle quente e macia onde a sua palma pousava.

Um suspiro, um pequenino suspiro de criança, fugiu dos labios de Maria, morreu na sombra. Carlos sentiu a quentura de desejo que vinha d'ella, que o entontecia, terrivel como o bafo ardente d'um abysmo, escancarado na terra a seus pés. Ainda balbuciou: «não, não...» Mas ella estendeu os braços, envolveu-lhe o pescoço, puxando-o para si, n'um murmurio que era como a continuação do suspiro, e em que o nome de querido susurrava e tremia. Sem resistencia, como um corpo morto que um sopro impelle, elle cahiu-lhe sobre o seio. Os seus labios seccos acharam-se collados n'um beijo aberto que os humedecia. E de repente, Carlos enlaçou-a furiosamente, esmagando-a e sugando-a, n'uma paixão e n'um desespero que fez tremer todo o leito.

A essa hora Ega acordava no bilhar, ainda estirado na poltrona onde o cansaço o prostrára. Bocejando, estremunhado, arrastou os passos até ao escriptorio de Affonso.

Ahi ardia um lume alegre, a que o reverendo Bonifacio se deixava torrar, enrolado sobre a pelle d'urso. Affonso fazia a partida de whist com Steinbroken e com o Villaça: mas tão distrahido, tão confuso, que já duas vezes D. Diogo, infeliz e irritado, rosnára que se a

dôr de cabeça assim o estonteava melhor seria findarem! Quando Ega appareceu, o velho levantou os olhos inquietos:

- O Carlos? Sahiu?...

- Sim, creio que sahiu com o Craft, disse o Ega. Tinham fallado em ir vêr o marquez.

Villaça, que baralhava com a sua lentidão meticulosa, deitou tambem para o Ega um olhar curioso e vivo. Mas já D. Diogo batia com os dedos no pano da mesa, resmungando: -

«Vamos lá, vamos lá... Não se ganha nada em saber dos outros!» Então Ega ficou alli um momento, com bocejos vagos, seguindo o cahir lento das cartas. Por fim, molle e seccado, decidiu ir lêr para a cama, hesitou por diante das estantes, sahiu com um velho numero do Panorama.

Ao outro dia, á hora do almoço, entrou no quarto de Carlos. E ficou pasmado quando o Baptista - tristonho desde a vespera, farejando desgosto - lhe disse que Carlos fôra para a Tapada, muito cedo, a cavallo...

- Ora essa!... E não deixou ordens nenhumas, não fallou em ir para Santa Olavia?...

Baptista olhou Ega, espantado:

- Para Santa Olavia!... Não senhor, não fallou em semelhante coisa. Mas deixou uma carta para v. exc.ª vêr. Creio que é do snr. marquez. E diz que lá apparecia depois, ás seis...

Acho que é jantar.

N'um bilhete de visita, o marquez, com effeito, lembrava que esse dia era «o seu fausto natalício», e esperava Carlos e o Ega ás seis, para lhe ajudarem a comer a gallinha de dieta.

- Bem, lá nos encontraremos, murmurou Ega, descendo para o jardim.

Aquillo parecia-lhe extraordinario! Carlos passeando a cavallo, Carlos jantando com o marquez, como se nada houvesse perturbado a sua vida facil de rapaz feliz!... Estava agora certo de que elle na vespera fôra á rua de S. Francisco. Justos céos! Que se teria lá passado?

Subiu, ouvindo a sineta do almoço. O escudeiro annunciou-lhe que o snr. Affonso da Maia tomara uma chavena de chá no quarto e ainda estava recolhido. Todos sumidos! Pela primeira vez no Ramalhete Ega almoçou solitariamente na larga mesa, lendo a Gazeta Illustrada.

De tarde, ás seis, no quarto do marquez (que tinha o pescoço enrolado n'uma boa de senhora de pelle de marta), encontrou Carlos, o Darque, o Craft, em torno d'um rapaz gordo que tocava guitarra - emquanto ao lado o procurador do marquez, um bello homem de barba preta, se batia com o Telles n'uma partida de damas.

- Viste o avô? perguntou Carlos, quando o Ega lhe estendeu a mão.

- Não, almocei só.

O jantar, d'ahi a pouco, foi muito divertido, largamente regado com os soberbos vinhos da casa. E ninguem decerto bebeu mais, ninguem riu mais do que Carlos, resurgido quasi de repente d'uma desanimação sombria a uma alegria nervosa - que incommodava o Ega, sentindo n'ella um timbre falso e como um som de crystal rachado. O proprio Ega por fim á sobremesa se excitou consideravelmente com um esplendido Porto de 1815. Depois houve um baccarat em que Carlos, outra vez sombrio, deitando a cada instante os olhos ao relogio, teve uma sorte triumphante, uma «sorte de cabrão», como a classificou o Darque, indignado, ao trocar a sua ultima nota de vinte mil reis... Á meia noite porém, inexoravelmente, o procurador do marquez lembrou as ordens do medico que marcára esse limite «ao natalicio». Foi então um enfiar de paletots, em debandada, por entre os queixumes do Darque e do Craft, que sahiam escorridos, sem sequer um troco para o

«americano». Fez-se-lhes uma subscripção de caridade, que elles recolheram nos chapéos, rosnando bençãos aos bemfeitores.

Na tipoia que os levava ao Ramalhete, Carlos e Ega permaneceram muito tempo em silencio, cada um enterrado ao seu canto, fumando. Foi já ao meio do Aterro que Ega pareceu despertar:

- E então por fim?... Sempre vaes para Santa Olavia, ou que fazes?

Carlos mexeu-se no escuro da tipoia. Depois, lentamente, como cheio de cansaço:

- Talvez vá ámanhã... Ainda não disse nada, ainda não fiz nada... Decidi dar-me quarenta e oito horas para acalmar, para reflectir... Não se póde agora fallar com este barulho das rodas.

De novo cada um recahiu na sua mudez, ao seu canto.

Em casa, subindo a escadinha forrada de velludo, Carlos declarou-se exhausto e com uma intoleravel dôr de cabeça:

- Amanhã fallamos, Ega... Boa noite, sim?

- Até ámanhã.

Alta noite Ega acordou com uma grande sêde. Saltára da cama, esvaziára a garrafa no toucador, quando julgou sentir por baixo, no quarto de Carlos, uma porta bater. Escutou.

Depois, arrepiado, remergulhou nos lençoes. Mas espertára inteiramente, com uma idéa estranha, insensata, que o assaltára sem motivo, o agitava, lhe fazia palpitar o coração no grande silencio da noite. Ouviu assim dar tres horas. A porta de novo batera, depois uma janella: era decerto vento que se erguera. Não podia porém readormecer, ás voltas, n'um terrivel mal-estar, com aquella idéa cravada na imaginação que o torturava. Então, desesperado, pulou da cama, enfiou um paletot, e em pontas de chinelas, com a mão diante da luz, desceu surdamente ao quarto de Carlos. Na ante-sala parou, tremendo, com o ouvido contra o reposteiro, na esperança de perceber algum calmo rumor de respiração. O silencio era pesado e pleno. Ousou entrar... A cama estava feita e vazia, Carlos sahira.

Elle ficou a olhar estupidamente para aquella colcha lisa, com a dobra do lençol de renda cuidadosamente entreaberta pelo Baptista. E agora não duvidava. Carlos fôra findar a noite á rua de S. Francisco!... Estava lá, dormia lá! E só uma idéa surgia através do seu horror - fugir, safar-se para Celorico, não ser testemunha d'aquella incomparavel infamia!...

E o dia seguinte, terça-feira, foi desolador para o pobre Ega. Vexado, n'um terror de encontrar Carlos ou Affonso, levantou-se cedo, esgueirou-se pelas escadas com cautelas de ladrão, foi almoçar ao Tavares. De tarde, na rua do Ouro, viu passar Carlos, que levava no break o Cruges e o Taveira - arrebanhados certamente para elle se não encontrar só á mesa com o avô. Ega jantou melancolicamente no Universal. Só entrou no Ramalhete ás nove horas, vestir-se para a soirée da Gouvarinho, que pela manhã no Loreto parára a carruagem para lhe lembrar «que era a festa do Charlie». E foi já de paletot, de claque na mão, que appareceu emfim na salinha Luiz xv onde Cruges tocava Chopin, e Carlos se installára n'uma partida de bezigue com o Craft. Vinha saber se os amigos queriam alguma coisa para os nobres condes de Gouvarinho...

- Diverte-te!

- Sê faiscante!

- Eu lá appareço para a ceia! prometteu Taveira, estirado n'uma poltrona com o Figaro.

Are sens