- Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao almoço, minha filha... O pobre Ega deve estar a uivar de impaciencia.
Emquanto Maria correra a apressar o Domingos - Carlos, através da relva humida, foi ainda lentamente até ao renque baixo d'arbustos que d'aquelle lado fechava a Toca como uma sebe. Ahi a colina descia, com quintarolas, muros brancos, olivedos, uma grande chaminé de fabrica que fumegava: para além era o azul fino e frio do rio: depois os montes, d'um azul mais carregado, com a casaria branca da povoação aninhada á beira da agua, nitida e suave na transparencia do ar macio. Parou um momento, olhando. E aquella aldeia de que nunca soubera o nome, tão quieta e feliz na luz, deu a Carlos um desejo repentino de socego e de obscuridade, n'um canto assim do mundo, á beira d'agua, onde ninguem o conhecesse nem houvesse Cornetas do Diabo, e elle pudesse ter a paz d'um simples e d'um pobre debaixo de quatro telhas, no seio de quem amava...
Maria gritou por elle da janella da sala de jantar, onde se debruçára a apanhar uma das ultimas rosas trepadeiras que ainda floriam.
- Que lindo tempo para viajar, Maria! - disse Carlos chegando, através da relva.
- Lisboa é tambem muito linda, agora, havendo sol...
- Pois sim, mas o Chiado, a coscovilhice, os politiquetes, as gazetas, todos os horrores... A mim está-me positivamente a appetecer uma cubata na Africa!
O almoço, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a caleche do Torto começou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite. Logo adiante da villa, na descida, cruzaram um coupé que trepava n'um trote esfalfado. Maria julgou avistar n'elle de relance o chapéo branco e o monoculo do Ega... Pararam. E era com effeito o Ega, que reconhecera tambem a caleche da Toca, vinha já saltitando as lamas com longas pernadas de cegonha, chamando por Carlos.
Ao vêr Maria ficou atrapalhado:
- Que bella surpreza! Eu ia para lá... Vi o dia tão bonito disse commigo...
- Bem, paga a tua tipoia, vem comnosco! atalhou Carlos que trespassava o Ega, com os olhos inquietos, querendo adivinhar o motivo d'aquella brusca chegada aos Olivaes.
Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embaraçado, sem poder desabafar diante de Maria sobre o caso da Corneta, começou, sob os olhos de Carlos que o não deixavam, a fallar do inverno, das inundações do Riba-Tejo... Maria lêra. Uma desgraça, duas crianças afogadas nos berços, gados perdidos, uma grande miseria! Por fim Carlos não se conteve:
- Eu lá recebi a tua carta...
Ega acudiu:
- Arranja-se tudo! Está tudo combinado! E com effeito eu não vim senão por um sentimento bucolico...
Muito discretamente Maria olhára para o rio. Ega fez então um gesto rapido com os dedos significando «dinheiro, só questão de dinheiro». Carlos socegou: e Ega voltou a fallar dos inundados do Riba-Tejo e do sarau litterario e artistico que em beneficio d'elles se
«ia commetter» no salão da Trindade... Era uma vasta solenidade oficial. Tenores do parlamento, rouxinoes da litteratura, pianistas ornados com o habito de S. Thiago, todo o pessoal canoro e sentimental do constitucionalismo ia entrar em fogo. Os reis assistiam, já se teciam grinaldas de camelias para pendurar na sala. Elle, apesar de demagogo, fôra convidado para lêr um episodio das Memorias d'um Atomo: recusára-se, por modestia, por não encontrar nas Memorias nada tão suficientemente palerma que agradasse á capital.
Mas lembrára o Cruges; e o maestro ia ribombar ou arrulhar uma das suas Meditações.
Além d'isso havia uma poesia social pelo Alencar. Emfim, tudo prenunciava uma immensa orgia...
- E a snr.ª D. Maria, acrescentou elle, devia ir!... É summamente pittoresco. Tinha v.
exc.ª occasião de vêr todo o Portugal romantico e liberal, à la besogne, engravatado de branco, dando tudo que tem n'alma!
- Com effeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges toca, se o Alencar recita, é uma festa nossa...
- Pois está claro! gritou Ega, procurando o monoculo, já excitado. Ha duas coisas que é necessario vêr em Lisboa... Uma procissão do Senhor dos Passos e um sarau poetico!
Rolavam então pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que parasse no começo da rua do Alecrim: elles apeavam-se e tomavam de lá o americano para o Ramalhete.
Mas a tipoia estacou antes da calçada, rente ao passeio, em frente d'uma loja de alfaiate. E n'esse instante achava-se ahi parado, calçando as suas luvas pretas, um velho alto, de longas barbas d'apostolo, todo vestido de luto. Ao vêr Maria, que se inclinára á portinhola, o homem pareceu assombrado; depois, com uma leve côr na face larga e pallida, fitou gravemente o chapéo, um immenso chapéo de abas recurvas, á moda de 1830, carregado de crepe.
- Quem é? perguntou Carlos.
- É o tio do Damaso, o Guimarães, disse Maria, que córára tambem. É, curioso, elle aqui!
Ah, sim! o famoso Mr. Guimarães, o do Rappel, o intimo de Gambetta! Carlos recordava-se de ter já encontrado aquelle patriarcha no Price com o Alencar.
Comprimentou-o tambem; o outro ergueu de novo com uma gravidade maior o seu sombrio chapéo de carbonario. Ega entalára vivamente o monoculo para examinar esse lendario tio do Damaso, que ajudava a governar a França: e depois de se despedirem de Maria, quando a caleche já subia a rua do Alecrim e elles atravessavam para o Hotel Central, ainda se voltou seduzido por aquelles modos, aquellas barbas austeras de revolucionario...
- Bom typo! E que magnifico chapéo, hein! D'onde diabo o conhece a snr.ª D. Maria?
- De Paris... Este Mr. Guimarães era muito da mãi d'ella. A Maria já me tinha fallado n'elle. É um pobre diabo. Nem amigo de Gambetta, nem coisa nenhuma... Traduz noticias dos jornaes hespanhoes para o Rappel, e morre de fome...
- Mas então, o Damaso?
- O Damaso é um trapalhão. Vamos nós ao nosso caso... Essa immundicie que me mandaste, a Corneta Dize lá.
Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a historia da immundicie. Fôra na vespera á tarde que recebera no Ramalhete a Corneta?. Elle já conhecia o papelucho, já privára mesmo com o proprietario e redactor - o Palma, chamado Palma Cavallão para se distinguir d'outro benemerito chamado Palma Cavallinho. Comprehendeu logo que se a prosa era do Palma a inspiração era alheia. O Palma nada sabia de Carlos, nem de Maria, nem da casa da rua de S. Francisco, nem da Toca... Não era natural que escrevesse por deleite intellectual um documento que só lhe podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois, fôra-lhe simplesmente encommendado e pago. No terreno do dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro. Por este solido principio correra a procurar o Palma Cavallão no seu antro.
- Tambem lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror.
Tanto não... Fui perguntar á secretaria da Justiça a um sujeito que esteve associado com elle n'um negocio de Almanachs religiosos...
Fôra pois ao antro. E encontrára as coisas dispostas pelas mãos habeis d'uma Providencia amiga. Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis numeros, a machina, esfalfada na pratica d'aquellas maroteiras, desmanchára-se. Além d'isso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro que lhe encommendára o artigo, por divergencia na seriissima questão de pecunia. De sorte que apenas elle propôz comprar a tiragem do jornal - o jornalista estendeu logo a mão larga, d'unhas roídas, tremendo de reconhecimento e de esperança. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a promessa de mais dez...
- É caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me atarantar, não regateei bastante... E emquanto a dizer quem é o cavalheiro que encommendou o artigo, o Palma, coitado, affirma que tem uma rapariga hespanhola a sustentar, que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa, que Lisboa está carissima, que a litteratura n'este desgraçado paiz...
- Quanto quer elle?
- Cem mil reis. Mas, ameaçando-o com a policia, talvez desça a quarenta.
- Promette os cem, promette tudo, comtanto que eu tenha o nome... Quem te parece que seja?