Eu tenho uma certa pena em adiar a installação da minha vida e do meu home. Mas, acabou-se! Antes de tudo que o avô seja feliz... E para celebrar o advento d'esta idéa, Deus queira que Maria nos tenha um bom jantar!
Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria Eduarda. Incommodava-o esse enleio, esse rubor que ella não poderia occultar - certa que, como confidente de Carlos, elle conhecia a sua vida, as suas miserias, as suas relações com Castro Gomes. Por isso hesitára em vir á Toca. Mas tambem, não apparecer mais a Maria Eduarda seria marcar com um relevo quasi offensivo o desejo caridoso de não molestar o seu pudor... Por isso decidira «dar o mergulho d'uma vez». Quem, senão elle, deveria ser o mais apressado em estender a mão á noiva de Carlos?... Além d'isso tinha uma infinita curiosidade de vêr no seu interior, á sua mesa, essa creatura tão bella, com a sua graça nobre de Deusa moderna! Mas saltou da victoria muito embaraçado.
Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava, sentada nos degraus do jardim. Teve um sobresalto, córou toda, com effeito, ao avistar o Ega que procurava atarantadamente o monoculo: o aperto de mão que trocaram foi mudo e timido: mas Carlos, alegremente, desembrulhára o ananaz - e na admiração d'elle todo o constrangimento se dissipou.
- Oh! é magnifico!
- Que côr, que luxo de tons!
- E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.
Ega não voltára á Toca desde a noite fatal da soirée dos Cohens em que elle alli tanto bebera e delirára tanto. E lembrou logo a Carlos a jornada na velha traquitana, debaixo d'um temporal, o grog do Craft, a ceia de perú...
- Já aqui soffri muito, minha senhora, vestido de Mephistopheles!...
- Por causa de Margarida?
- Por quem se ha de soffrer n'este apaixonado mundo, minha senhora, senão por Margarida ou por Fausto?
Mas Carlos quiz que elle admirasse os esplendores novos da Toca. E foi já com familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que só viesse assim á Toca no fim do verão e no fim das flôres. Ega extasiou-se ruidosamente. Emfim, perdera a Toca o seu ar regelado e triste de museu! Já alli se podia palrar livremente!
- Isto é um barbaro, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror á arte! É um Ibero, é um Semita...
Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Aryano! E por isso mesmo não podia viver n'uma casa, em que cada cadeira tinha a solemnidade sorumbatica de antepassados com cabelleira...
- Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do seculo dezoito lembram antes a ligeireza, o espirito, a graça de maneiras...
- V. exc.ª acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados, esses rococós lembram-me uma vivacidade estouvada e sirigaita... Nada! nós vivemos n'uma Democracia! E não ha para exprimir a alegria simples, sólida e bonacheirona da Democracia, como largas poltronas de marroquim, e o mogno envernizado!...
Assim n'uma risonha, ligeira discussão sobre bric-à-brac, desceram ao jardim.
Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na mão. Ega, que conhecia já os seus ardores nocturnos, cravou-lhe sôfregamente o monoculo; e emquanto Maria se abaixára a cortar um geranio, exprimiu a Carlos n'um gesto mudo a sua admiração por aquelle beicinho escarlate, aquelle seiosinho redondo de rola farta... Depois, ao fundo, junto do caramanchão, encontraram Rosa que se balouçava. Ega pareceu deslumbrado com a sua belleza, a sua frescura mate de camelia branca. Pediu-lhe um beijo.
Ella exigiu primeiro, muito séria, que ella tirasse o vidro do olho.
- Mas é para te vêr melhor! é para te vêr melhor!...
- Então porque não trazes um em cada olho? Assim só me vês metade...
Encantadora! Encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena espevitada e impudente. Maria resplandecia.
E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo á sopa, fallando-se de campo e d'um chalet que elle desejava construir em Cintra, nos Capuchos, dissera -
«quando nos casarmos». E Ega alludiu a esse futuro do modo mais grato ao coração de Maria.
Agora que Carlos se installava para sempre n'uma felicidade estavel (dizia elle) era necessario trabalhar! E relembrou então a sua velha idéa do Cenaculo, representado por uma Revista que dirigisse a litteratura, educasse o gosto, elevasse a política, fizesse a civilisação, remoçasse o carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espirito, pela sua fortuna (até pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a direcção d'este movimento. E que profunda alegria para o velho Affonso da Maia!
Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida toda de intelligencia e de actividade, rehabilitaria supremamente aquella união mostrando-lhe a influencia fecunda e purificadora.
- Tem razão, tem bem razão! exclamava ella com ardor.
- Sem contar, acrescentava o Ega, que o paiz precisa de nós! Como muito bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o paiz não tem pessoal... Como ha de tel-o, se nós, que possuimos as aptidões, nos contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vida intima dos atomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa biographia d'um atomo!... No fim, este dilettantismo é absurdo. Clamamos por ahi, em botequins e livros, «que o paiz é uma choldra». Mas que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas idéas?... V. exc.ª não conhece este paiz, minha senhora. É admiravel! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas, banaes, toscas, reles, rotineiras... É necessario pôl-a em mãos d'artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou!...
Carlos ria, preparando n'uma travessa o ananaz com sumo de laranja e vinho da Madeira. Mas Maria não queria que elle risse. A idéa do Ega parecia-lhe superior, inspirada n'um alto dever. Quasi tinha remorsos, dizia ella, d'aquella preguiça de Carlos. E agora, que ia ser cerrado de affeição serena, queria-o vêr trabalhar, mostrar-se, dominar...
- Com effeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance findou. E agora...
Mas o Domingos servia o ananaz. E o Ega provou e rompeu em clamores de enthusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delicia!
- Como fazes tu isto? Com Madeira...
- E genio! exclamou Carlos. Delicioso, não é verdade? Ora digam-me se tudo o que eu pudesse fazer pela civilisação valeria este prato de ananaz! É para estas coisas que eu vivo!
Eu não nasci para fazer civilisação...
- Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flôres d'essa planta da civilisação que a multidão rega com o seu suor! No fundo tambem eu, menino!
Não, não! Maria não queria que fallassem assim!
- Esses ditos estragam tudo. E o snr. Ega, em logar de corromper Carlos, devia inspiral-o...
Ega protestou requebrando o olho, já languido. Se Carlos necessitava uma musa inspiradota e benefica não podia ser elle, bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estava toute trouvée!
- Ah, com effeito!... Quantas paginas bellas, quantas nobres idéas se náo podem produzir n'um paraiso d'estes!...
E o seu gesto molle e acariciador indicava a Toca, a quietação dos arvoredos, a belleza de Maria. Depois na sala, emquanto Maria tocava um nocturno de Chopin e Carlos e elle acabavam os charutos á porta do jardim vendo nascer a lua - Ega declarou que, desde o começo do jantar, estava com idéas de casar!... Realmente não havia nada como o casamento, o interior, o ninho...
- Quando penso, menino, murmurou elle mordendo sombriamente o charuto, que quasi todo um anno da minha vida foi dado áquella israelita devassa que gosta de levar bordoada...