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Novamente o reposteiro franziu, Baptista pediu perdão a suas excellencias:

- É o snr. Villaça que não acha o chapéo, diz que o deixou aqui...

Carlos ergueu-se furioso, agarrando a cadeira pelas costas como para despachar o Baptista.

- Vai para o diabo tu e o snr. Villaça!... Que sáia sem chapéo! Dá-lhe o meu! Irra!

Baptista recuou, muito grave.

Vá, acaba lá! exclamou Carlos, recahindo no assento, mais pallido.

E Ega, miudamente, contou a sua longa, terrivel conversa com o Guimarães, desde o momento em que o homem por acaso, já ao despedir-se, já ao estender-lhe a mão, fallára da

«irmã do Maia». Depois entregára-lhe os papeis da Monforte á porta do Hotel de Paris, no Pelourinho...

- E aqui está, não sei mais nada. Imagina tu que noite eu passei! Mas não tive coragem de te dizer. Fui ao Villaça... Fui ao Villaça com a esperança sobretudo de elle saber algum

facto, ter algum documento que atirrasse por terra toda esta historia do Guimarães... Não tinha nada, não sabia nada. Ficou tão aniquilado como eu!

No curto silencio que cahiu, um chuveiro mais largo, alagando o arvoredo do jardim, cantou nas vidraças. Carlos ergueu-se arrebatadamente, n'uma revolta de todo o sêr:

- E tu acreditas que isso seja possivel? Acreditas que succeda a um homem como eu, como tu, n'uma rua de Lisboa? Encontro uma mulher, ólho para ella, conheço-a, durmo com ella e, entre todas as mulheres do mundo, essa justamente ha de ser minha irmã! É

impossivel... Não ha Guimarães, não ha documentos que me convençam!

E como Ega permanecia mudo, a um canto do sofá, com os olhos no chão:

- Dize alguma coisa, gritou-lhe Carlos. Duvída tambem, homem, duvída commigo!... É

extraordinario! Todos vocês acreditam, como se isto fosse a coisa fosse a coisa mais natural do mundo, e não houvesse por essa cidade fóra senão irmaõs a dormir juntos!

Ega murmurou:

- Já ia succedendo um caso assim, lá ao pé da quinta, em Celorico...

E n'este momento, sem que um rumor os prevenisse, Affonso da Maia appareceu n'uma abertura do reposteiro, encostada á bengala, sorrindo todo com alguma idéa que decerto o divertia. Era ainda o chapéo do Villaça.

- Que diabo fizeram vocês ao chapéo do Villaça? O pobre homem andou por ahi afflicto... Teve de levar um chapéo meu. Cahia-lhe pela cabeça abaixo, enchumaçaram-lh'o com lenços...

Mas subitamente reparou na face transtornada do neto. Reparou na atarantação do Ega cujos olhos mal se fixavam, fugindo anciosamente d'elle para Carlos. Todo o sorriso se lhe apagou, deu no quarto um passo lento:

- Que é isso, que têm vocês?... Ha alguma coisa?

Então Carlos, no ardente egoismo da sua paixão, sem pensar no abalo cruel que ia dar ao pobre velho, cheio só de esperança que elle, seu avô, testemunha do passado, soubesse algum facto, possuisse alguma certeza contraria a toda essa historia de Guimarães, a todos esses papeis da Monforte - veio para elle, desabafou:

- Ha uma coisa extraordinaria, avô! O avô talvez saiba... O avô deve saber alguma coisa que nos tire d'esta afflicção!... Aqui está,

em duas palavras. Eu conheço ahi uma senhora que chegou ha tempos a Lisboa, mora na rua de S. Francisco. Agora de repente descobre-se que é minha irmã legitima!... Passou ahi um homem que a conhecia, que tinha uns papeis... Os papeis ahi estão. São cartas, uma declaração de minha mãi... Emfim uma trapalhada, um montão de provas... Que significa tudo isto? Essa minha irmã, a que foi levada em pequena, não morreu?... O avô deve saber!

Affonso da Maia, que um tremor tomára, agarrou-se um momento com força á bengala, cahiu por fim pesadamente n'uma poltrona, junto do reposteiro. E ficou devorando o neto, o Ega, com o olhar esgazeado e mudo.

- Esse homem, exclamou Carlos, é Guimarães, um tio do Damaso... Fallou com o Ega, foi ao Ega que entregou os papeis... Conta tu ao avô, Ega, conta tu do comêço!

Ega, com um suspiro, resumiu a sua longa historia. E findou por dizer que o importante, o decisivo alli era este homem, o Guimarães, que não tinha interesse em mentir e só por acaso, puramente por acaso, fallára em taes coisas - conhecia essa senhora, desde pequenina, como filha de Pedro da Maia e de Maria Monforte. E nunca a perdera de vista.

Vira-a crescer em Paris, andára com ella ao collo, dera-lhe bonecas. Visitára-a com a mãi no convento. Frequentára a casa que ella habitava em Fontainebleau, como casada...

- Emfim, interrompeu Carlos, viu-a ainda ha dias, n'uma carruagem, commigo e com o Ega... Que lha parece, avô?

O velho murmurou, n'um grande esforço, como se as palavras sahindo lhe rasgassem o coração:

- Essa senhora, está claro, não sabe nada...

Ega e Carlos, a um tempo, gritaram: - «Não sabe nada!» Segundo affirmava o Guimarães, a mãi escondera-lhe sempre a verdade. Ella julgava-se filha d'um autriaco.

Assignava-se ao principio Calzaski...

Carlos, que remexera sobre a mesa, adiantou-se com um papel na mão:

- Aqui tem o avô a declaração de minha mãi.

O velho levou muito tempo a procurar. a tirar a luneta d'entre o collete com os seus pobres dedos que tremiam; leu o papel devagar, empallidecendo mais a cada linha, respirando penosamente; ao findar deixou cahir sobre os joelhos as mãos, que ainda agarravam o papel, ficou como esmagado e sem força. As palavras por fim vieram-lhe apagadas, morosas. Elle nada sabia... O que a Monforte alli assegurava, elle não podia destruir... Essa senhora da rua de S. de Francisco era talvez na verdade sua neta... Não sabia mais...

E Carlos diante d'elle vergava os hombros, esmagado tambem sob a certeza da sua desgraça. O avô, testemunha do passado, nada sabia! Aquella declaração, toda a historia do Guimarães ahi permaneciam inteiras, irrefutaveis. Nada havia, nem memoria de homem, nem documento de escripto, que as pudesse abalar. Maria Eduarda era, pois, sua irmã!... E

um defronte do outro, o velho e o neto pareciam dobrados por uma mesma dôr - nascida da mesma idéa.

Por fim Affonso ergueu-se, fortemente encostado á bengala, foi pousar sobre a mesa o papel da Monforte. Deu um olhar, sem lhes tocar, ás cartas espalhadas em volta da caixa de charutos. Depois, lentamente, passando a mão pela testa:

- Nada mais sei... Sempre pensamos que essa criança tinha morrido... Fizeram-se todas as pesquizas... Ella mesma disse que lhe tinha morrido a filha, mostrou já não sei a quem um retrato...

- Era outra mais nova, a filha do italiano, disse o Ega. O Guimarães fallou-me n'isso...

Foi esta que viveu. Esta, que tinha já sete ou oito annos, quando havia apenas quatro ou cinco que esse sujeito italiano apparecera em Lisboa... Foi esta.

- Foi esta, murmurou o velho.

Teve um gesto vago de resignação, acrescentou, depois de respirar fortemente:

- Bem! Tudo isto tem de ser mais pensado... Parece-me bom tornar a chamar o Villaça... Talvez seja necessario que elle vá a Paris... E antes de tudo precisamos socegar...

De resto não ha aqui morte d'homem... Não ha aqui morte d'homem!

A voz sumia-se-lhe, toda tremula. Estendeu a mão a Carlos que lh'a beijou, suffocado; e o velho, puxando o neto para si, pousou-lhe os labios na testa. Depois deu dois passos para a porta, tão lentos e incertos que Ega correu para elle:

- Tome v. exc.ª o meu braço...

Affonso apoiou-se n'elle, pesadamente. Atravessaram a ante-camara silenciosa onde a chuva contínua batia nos vidros. Por traz d'elles cahiu o grande reposteiro com as armas dos Maias. E então Affonso, de repente, soltando o braço do Ega, murmurou-lhe, junto á face, no desabafo de toda a sua dôr:

Are sens