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N'essa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ella mostrára o desejo enternecido de não alterar o plano da Italia e d'um ninho romantico entre as flôres d'Isola-bella: sómente agora não iam esconder a inquietação d'uma felicidade culpada, mas gozar o repouso d'uma felicidade legitima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o dia em que cruzára Maria Eduarda no Aterro, Carlos anhelava tambem pelo momento de se installar emfim no conforto d'um amor sem duvidas e sem sobresaltos:

- Eu por mim abalava ámanhã. Estou sôfrego de paz. Estou até sôfrego de preguiça...

Mas tu, dize, quando queres?

Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, sem retirar a mão que a longa caricia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa através da janella.

- Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardaes que ainda não almoçaram...

- Não, vem cá.

Quando ella appareceu á porta, toda de branco, córada, com uma das ultimas rosas de verão mettida no cinto - Maria quil-a mais perto, entre elles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do cabello, perguntou, muito séria, muito commovida, se ella gostaria que Carlos viesse viver ver com ellas de todo e ficar alli na Toca. Os olhos da pequena encheram-se de surpreza e de riso:

- O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E ter aqui as suas malas, as suas coisas?...

Ambos murmuraram - «sim».

Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse já, já, buscar as suas malas e as suas coisas...

- Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E gostavas que elle fosse como o papá, e que ,andasse sempre comnosco, e que lhe obedecessemos ambas, e que gostassemos muito d'elle ?

Rosa ergueu para a mãe uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso se apagára.

- Mas eu não posso gostar mais d'elle do que gósto!...

Ambos a beijaram, n'um enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa debruçando-se sobre ella, beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mãi. E pareceu comprehender tudo; escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:

- Queres que te chame papá, só a ti?

- Só a mim, disse elle, fechando-a toda nos braços.

E assim obtiveram o consentimento de Rosa que fugiu, atirando a porta, com as mãos cheias de bolos para os pardaes.

Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e contemplando-a profundamente, até á alma, murmurou n'um enlevo:

- És perfeita!

Ella desprendeu-se, com melancolia, d'aquella adoração que a perturbava.

- Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para o nosso kiosque... Tu não tens nada que fazer, não? E que tenhas, hoje és meu... Vou já ter comtigo.

Leva as tuas cigarettes.

Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçura velada do céo cinzento...

E a vida pareceu-lhe adoravel, d'uma poesia fina e triste,assim envolta n'aquella nevoa macia onde nada resplandecia e nada cantava, e que tão favoravel era para que dois corações, desinteressados do mundo e em desharmonia com elle, se abandonassem juntos ao contínuo encanto de estremecerem juntos

na mudez e na sombra.

- Vamos ter chuva, tio André, disse elle, passando junto do velho jardineiro que aparava o buxo.

O tio André, atarantado, arrancou o chapéo. Ah! uma gota d'agua era bem necessaria, depois da estiagem! O torrãosinho já estava com sêde! E em casa todos bons? A senhora? A menina?

- Tudo bom, tio André, obrigado.

E no seu desejo de vêr todos em torno de si felizes como elle e como a terra sequiosa que ia ser consolada - Carlos metteu uma libra na mão do tio André, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos sobre aquele ouro extraordinario que reluziu.

Quando Maria entrou no kiosque trazia um cofre de sandalo. Atirou-o para o divan: fez sentar Carlos ao lado, bem confortavel, entre almofadas: accendeu-lhe uma cigarrete.

Depois agachou-se aos seus pés, sobre o tapete, como na humildade de uma confissão.

- Estás bem assim? Queres que o Domingos te traga agua e cognac?... Não? Então ouve agora, quero-te contar tudo...

Era toda a sua existencia que ella desejava contar. Pensára mesmo em lh'a escrever n'uma carta interminavel, como nos romances.

Mas decidira antes tagarellar alli uma manhã inteira, aninhada aos seus pés.

- Estás bem, não estás?

Carlos esperava, commovido. Sabia que aquelles labios amados iam fazer revelações pungentes para o seu coração e amargas para o seu orgulho. Mas a confidencia da sua vida completava a posse da sua pessoa: quando a conhecesse toda no seu passado sentil-a-hia mais sua inteiramente. E no fundo tinha uma curiosidade insaciavel d'essas coisas que o deviam pungir e que o deviam humilhar.

- Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize, conta... Onde nasceste tu por fim?

Nascera em Vienna: mas pouco se recordava dos tempos de criança, quasi nada sabia do papá, a não ser a sua grande nobreza e a sua grande belleza. Tivera uma irmãsinha que morrera de dois annos e que se chamava Heloisa. A mamã, mais tarde, quando ella era já rapariga, não tolerava que lhe perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a memoria das coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho...

De Vienna apenas recordava confusamente largos passeios d'arvores, militares vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada onde se dançava: ás vezes durante tempos ella ficava lá só com o avô, um velhinho triste e timido, mettido pelos cantos, que lhe contara historias de navios. Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-se sómente de ter atravessado um grande rumor de ruas, n'um dia de chuva, embrulhada em pelles, sobre os joelhos d'um escudeiro. As suas primeiras memorias mais nitidas datavam de Paris; a mamã, já viuva, andava de luto pelo avô; e ella tinha uma aia italiana que a levava todas as manhãs, com um arco e com uma pélla, brincar aos Campos Elyseos. A noite costumava vêr a mamã decotada, n'um quarto cheio de setins e de luzes; e um homem louro, um pouco brusco, que fumava sempre estirado pelos sofás, trazia-lhe de vez em quando uma boneca, e chamava-lhe mademoiselle Triste-coeur por causa do seu arzinho sisudo. Emfim a mamã mettera-a n'um convento ao pé de Tours - porque n'essa idade, apesar de cantar já ao piano as walsas da Belle Helène, ainda não sabia soletrar. Fôra nos jardins do convento, onde havia lindos lilazes, que a mamã se separára d'ella n'uma paixão de lagrimas; e ao lado esperava, para a consolar decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a Madre Superiora fallara com veneração.

A mamã ao principio vinha vêl-a todos os mezes, demorando-se em Tours dois, tres dias; trazia-lhe uma profusão de presentes, bonecas, bonbons, lenços bordados, vestidos ricos, que lhe não permittia usar a regra severa do convento. Davam então passeios de carruagem pelos arredores de Tours: e havia sempre officiaes a cavallo, que escoltavam a caleche - e tratavam a mamã por tu.. No convento as mestras, a Madre Superiora não gostavam d'estas sahidas - nem mesmo que a mamã viesse acordar os corredores devotos com as suas risadas e o ruido das suas sêdas; ao mesmo tempo pareciam temel-a; chamavam-lhe Madame la Comtesse. A mamã era muito amiga do general que commandava em Tours, e visitava o bispo. Monsenhor, quando vinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial na face e alludia risonhamente a son excellente mère. Depois a

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