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Ega embrulhou-se n'uma complicada historia, limpando o monoculo á ponta do lençol.

Não eram hespanholas... Pelo contrario, umas costureiras, raparigas sérias... Elle tinha um compromisso antigo d'ir a Cintra com uma d'ellas, filha d'um Simões, um estofador que fallira... Gente muito séria!...

Perante estes compromissos, tanta seriedade, Carlos desistiu logo da idéa de Cintra.

- Bem, acabou-se!... Vou então tomar banho e depois a negocios... E tu, se fôres, traze-me umas queijadas para a Rosa, que ella gosta!...

Apenas Carlos sahiu, Ega cruzou os braços desanimado, descorçoado, sentindo bem que não teria coragem nunca de «dizer tudo». Que havia de fazer?... E de novo, insensivelmente, se refugiou na idéa de procurar o Villaça, entregar-lhe o cofre da Monforte. Não havia homem mais honesto, nem mais pratico; e, pela mesma mediocridade do seu espirito burguez, quem melhor para encarar aquella catastrophe sem paixão e sem nervos?... E esta falta de nervos do Villaça fixou-o definitivamente.

Saltou então da cama, n'uma impaciencia, repicou a campainha. E emquanto o criado não entrava, foi, com o robe-de-chambre aos hombros, examinar o cofre da Monforte.

Parecia com effeito uma velha caixa de charutos, embrulhada n'um papel de dobras já sujas e gastas, com marcas de lacre onde se distinguia uma divisa que seria decerto a da Monforte - Pro amore. Na tampa tinha escripto n'uma letra de mulher mal-ensinada -

Monsieur Guimaran, à Paris. Ao sentir os passos do criado deitou-lhe por cima uma toalha, que pendia ao lado, n'uma cadeira. E d'ahi a meia hora rolava pelo Aterro n'uma tipoia descoberta, mais animado, respirando largamente aquelle bello ar da manhã, fino e fresco, que elle tão raras vezes gozava.

Começou por uma contrariedade. Villaça já sahira: e a criada não sabia bem se elle fôra para o escriptorio, se a uma vistoria ao Alfeite... Ega largou para o escriptorio, na rua da Prata. O snr. Villaça ainda não viera...

- E a que horas virá?

O escrevente, um rapaz macilento que torcia nervosamente sobre o collete uma corrente de coral, balbuciou que o snr. Villaça não devia tardar, se não tivesse atravessado, no vapor das nove, para o Alfeite... Ega desceu desesperado.

- Bem, gritou ao cocheiro, vai ao café Tavares...

No Tavares, ainda solitario áquella hora, um moço areava o sobrado. E emquanto esperava o almoço Ega percorreu os jornaes. Todos fallavam do sarau, em linhas curtas, promettendo detalhes criticos, mais tarde, sobre esse brilhante torneio artistico. Só a Gazeta Illustrada se alargava, com phrases sérias, tratando o Rufino de grandioso o Cruges de esperançoso: no Alencar a Gazeta separava o philosopho do poeta; ao philosopho a Gazeta lembrava com respeito que nem todas as aspirações ideaes da philosophia, bellas como

miragens de deserto, são realisaveis na pratica social; mas ao poeta, ao creador de tão formosas imagens, de tão inspiradas estancias, a Gazeta desafogadamente bradava «bravo!

bravo!» Havia ainda outras abominaveis sandices. Depois seguia-se a lista das pessoas que a Gazeta se recordava de ter visto, entre as quaes «destacava com o seu monoculo o fino perfil de João da Ega, sempre brilhante de verve.» Ega sorriu, cofiando o bigode.

Justamente o bife chegava, fumegante, chiando na frigideirinha de barro. Ega pousou a Gazeta ao lado, dizendo comsigo: «Não é nada mal feito, este jornal!»

O bife era excellente: - e depois d'uma perdiz fria, d'um pouco de dôce de ananaz, d'um café forte, Ega sentiu adelgaçar-se emfim aquelle negrume que desde a vespera lhe pesava n'alma. No fim, pensava elle, accendendo o charuto e lançando os olhos ao relogio, n'aquelle desastre praticamente encarado só havia para Carlos a perda d'uma bella amante.

E essa perda, que agora o angustiava, não traria depois compensações? O futuro de Carlos até ahi tinha uma sombra - aquella promessa de casamento que irreparavelmente o collava pela honra a uma mulher muito interessante, mas com um passado cheio de brazileiros e de irlandezes... A sua belleza poetisava tudo: mas quanto tempo mais duraria esse encanto, o seu brilho de deusa pisando a terra?... Não seria por fim aquella descoberta do Guimarães uma libertação providencial? D'ahi a annos Carlos estaria consolado, sereno como se nunca tivesse soffrido - e livre, e rico, com o largo mundo diante de si!

O relogio do café deu dez horas. «Bem, vamos a isto», pensou Ega.

De novo a tipoia bateu para a rua da Prata. O snr. Villaça ainda não viera, o escrevente estava realmente pensando que o snr. Villaça fôra ao Alfeite. E diante d'esta incerteza, de repente, Ega ficou de novo descorçoado, sem coragem. Despediu a tipoia: com o embrulho do cofre na mão foi andando pela rua do Ouro, depois até ao Rocio, parando distrahidamente diante d'um ourives, lendo aqui e além a capa d'um livro na vitrine dos livreiros. Pouco a pouco o negrume da vespera, um momento adelgaçado, recahia-lhe n'alma mais denso. Já não via as «libertações» nem as «compensações». Só sentia em torno de si, como fluctuando no ar, aquelle horror - Carlos a dormir com a irmã.

Voltou pela rua da Prata, de novo subiu a suja escadaria de pedra; e logo no patamar, diante da porta de baeta verde, deu com o Villaça que sahia, atarefado, calçando as luvas.

- Homem, até que emfim!

- Ah! Era o amigo que me tinha procurado?... Pois tenha paciencia, que está o visconde do Torral á minha espera...

Ega quasi o empurrou. Qual visconde!... Tratava-se d'uma coisa muito urgente, muito séria! Mas o outro não se arredava da porta, acabando de calçar a luva, com o mesmo ar vivo de negocio e de pressa.

- O amigo bem vê... Está o homem á espera! É um rendez-vous para as onze!

Ega, já furioso, agarrou-lhe a manga, murmurou-lhe junto á face, tragicamente, que se tratava de Carlos, d'um caso de vida ou de morte! Então o Villaça, n'um grande espanto, atravessou bruscamente o escriptorio, fez entrar Ega n'um cubiculo ao lado, estreito como um corredor, com um canapé de palhinha, uma mesa onde os livros tinham pó, e um armario ao fundo. Fechou a porta, atirou o chapéo para a nuca:

- Então que é?

Ega, com um gesto, indicou fóra o escrevente que podia escutar. O procurador abriu a porta, gritou ao rapazola que voasse ao Hotel Pelicano pedir ao snr. visconde do Torral a fineza de esperar meia hora... Depois, fechada a porta no ferrolho, foi a mesma exclamação anciosa:

- Então que é?

- É um horror, Villaça, um grande horror... Nem eu sei por onde hei de começar.

Villaça, já muito pallido, pousou lentamente o guardachuva sobre a mesa.

- É duello?

- Não... É isto... Você sabia que o Carlos tinha relações com uma snr. Mac-Gren que veio o inverno passado a Portugal, ficou ahi?...

Uma senhora brazileira, mulher d'um brazileiro, que passára o verão nos Olivaes?...

Sim, Villaça sabia. Fallára até n'isso com o Eusebiosinho.

- Ah, com o Eusebio?... Pois não é brazileira! É portugueza, e irmã d'elle!

Villaça cahiu para o canapé, batendo as mãos n'um assombro.

- Irmã do Eusebio!

- Qual do Eusebio, homem!... Irmã de Carlos!

Villaça ficára mudo, sem comprehender, com os olhos terrivelmente arregalados para o outro, que se movia pelo cubiculo, repetindo: «irmã! Irmã legitima!» Ega por fim sentou-se no canapé de palhinha; e baixo, muito baixo, apesar da solidão do escriptorio, contou o seu encontro com o Guimarães no sarau, e como a verdade terrivel estalára casualmente, n'uma palavra, á esquina do Alliança... Mas quando fallou dos papeis, entregues pela Monforte ao Guimarães, ha tantos annos guardados, nunca reclamados, e que o democrata agora, tão de repente, tão urgentemente, queria restituir á familia - Villaça, até ahi esmagado e como emparvecido, despertou, teve uma explosão:

- Ahi ha marosca! Tudo isso é para apanhar dinheiro!...

- Apanhar dinheiro! Quem?

- Quem? exclamou Villaça de pé, arrebatadamente. Essa senhora, esse Guimarães, essa tropa!... É que o amigo não percebe! Se apparecer uma irmã do Maia, legitima e authentica, são quatrocentos contos e pico que cabem á irmã do Maia!...

Então os dois ficaram-se devorando com os olhos, na forte impressão d'aquella idéa inesperada que a seu pezar abalava o Ega. Mas como o procurador, tremulo, voltava á grande somma de quatrocentos contos, lembrava a Companhia do Olho Vivo, Ega terminou por encolher os hombros:

- Isso não tem verosimilhança nenhuma! Ella é incapaz, absolutamente incapaz, de semelhante intriga. Além d'isso, se é uma questão de dinheiro, que necessidade tinha de se fazer passar como irmã desde que Carlos lhe promettera casar com ella?

Casar com ella! Villaça erguia as mãos, não queria acreditar. O quê! o snr. Carlos da Maia dar a sua mão, o seu nome, a essa creatura amigada com um brazileiro?... Santissimo nome de Deus! E através do assombro recrescia-lhe a desconfiança, via ahi um novo feito do Olho Vivo.

- Não senhor, Villaça, não senhor! insistiu Ega, já impaciente. Se a questão é de documentos e se ella os tinha, verdadeiros ou falsificados, apresentava-os logo, não ia primeiro dormir com o irmão!

Villaça baixou lentamente os olhos para o sobrado. Um terror invadia-o diante d'aquella grande casa, que era o seu orgulho, partida em metade, empolgada por uma aventureira... Mas como o Ega, muito nervoso, lembrava que de resto a questão não era de documentos, nem de legalidade, nem de fortuna - o procurador teve outro grito, com a face de novo alumiada:

- Espere, homem, ha outra coisa!... Talvez ella seja filha do italiano!

- E então?... Vem a dar na mesma.

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