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era a indestructivel certeza da historia do Guimarães, tão compacta, sem uma lacuna, sem uma falha por onde rachasse e se fizesse cahir aos pedaços. O homem conhecera Maria Monforte em Lisboa, ainda mulher de Pedro da Maia, brilhando no seu cavallo lazão; encontrára-a em Paris já fugida, depois da morte do primeiro amante, vivendo com outros; andára então ao collo com Maria Eduarda a quem se davam bonecas... E desde então não deixára mais de vêr Maria Eduarda, de a seguir: em Paris; no convento de Tours; em Fontainebleau com o irlandez; nos braços de Castro Gomes; n'uma tipoia de praça emfim com elle e com Carlos da Maia, havia dias, no caes do Sodré! Tudo isto se encadeava, concordando com a historia contada por Maria Eduarda. E de tudo resaltava esta certeza monstruosa: - Carlos amante da irmã!

Guimarães não descia. No segundo andar surgira uma luz viva, n'uma janella aberta.

Ega recomeçou a passear lentamente pelo meio do largo. E agora, pouco a pouco, subiu n'elle uma incredulidade contra esta catastrophe de dramalhão. Era acaso verosimil que tal se passasse, com um amigo seu, n'uma rua de Lisboa, n'uma casa alugada á mãi Cruges?... Não podia ser! Esses horrores só se produziam na confusão social, no tumulto da Meia-Idade! Mas n'uma sociedade burgueza, bem policiada, bem escripturada, garantida por tantas leis, documentada por tantos papeis, com tanto registro de baptismo, com tanta certidão de casamento, não podia ser! Não! Não estava no feitio da vida contemporanea que duas crianças separadas por uma loucura da mãi, depois de dormirem um instante no mesmo berço, cresçam em terras distantes, se eduquem, descrevam as parabolas remotas dos seus destinos - para quê? Para virem tornar a dormir juntas no mesmo ponto, n'um leito de concubinagem! Não era possivel. Taes coisas pertencem só aos livros, onde vêm, como invenções subtis da arte, para dar, á alma humana um terror novo... Depois levantava os olhos para a janella alumiada - onde o snr. Guimarães decerto rebuscava os papeis na mala.

Alli estava porém esse homem com a sua historia em que não havia uma discordancia por onde ella pudesse ser abalada!... E pouco a pouco aquella luz viva, sahida do alto, parecia ao Ega penetrar n'essa intrincada desgraça, aclaral-a toda, mostrar-lhe bem a lenta evolução. Sim, tudo isso era provavel no fundo! Essa criança, filha d'uma senhora que a levára comsigo, cresce, é amante d'um brazileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. N'um bairro visinho vive outro filho d'essa mulher, por ella deixado, que cresceu, é um homem. Pela sua figura, o seu luxo, elle destaca n'esta cidade provinciana e pelintra. Ella por seu lado, loura, alta, esplendida, vestida pela Laferrière, flôr d'uma civilisação superior, faz relêvo n'esta multidão de mulheres miudinhas e morenas. Na pequenez da Baixa e do Aterro, onde todos se acotovelavam, os dois fatalmente se cruzam: e com o seu brilho pessoal, muito fatalmente se attrahem! Ha nada mais natural? Se ella fosse feia e trouxesse aos hombros uma confecção barata da loja da America, se elle fosse um mocinho encolhido de chapéo côco, nunca se notariam e seguiriam diversamente nos seus destinos diversos. Assim, o conhecerem-se era certo, o amarem-se era provavel... E um dia o snr. Guimarães passa, a verdade terrivel estala!

A porta do hotel rangeu no escuro, o snr. Guimarães adiantou-se, de boné de sêda na cabeça, com o embrulho na mão.

- Não podia dar com a chave da mala, desculpe v. exc.ª É sempre assim quando ha pressa... E aqui temos o famoso cofre!

- Perfeitamente, perfeitamente...

Era uma caixa que parecia de charutos e que o democrata embrulhára n'um velho numero do Rappel. Ega metteu-a no bolso largo do seu paletot: e immediatamente, como se qualquer outra palavra entre elles fosse vã, estendeu a mão ao snr. Guimarães. Mas o outro insistiu em o acompanhar até á esquina da rua do Arsenal, apesar de estar de boné. A noite, para quem vinha de Paris, tinha uma doçura oriental - e elle, com os seus habitos de jornalista, nunca se deitava senão tarde, ás duas, tres horas da madrugada...

E então, caminhando devagar, com as mãos nos bolsos e o charuto entre os dentes, o snr. Guimarães voltou á politica e ao sarau. A poesia do Alencar (de que esperára muito por causa do titulo, A Democracia) sahira-lhe consideravelmente chôcha.

- Muita flôr, muita farofia, muita liberdade, mas não havia alli um ataque em fórma, duas ou tres boas estocadas n'esta choldra da monarchia e da côrte... Pois não é verdade?

- Sim, com effeito... - murmurou Ega, olhando ao longe, na esperança d'uma tipoia.

- É como os jornaes republicanos que por ahi ha... Tudo uma palhada, senhores, tudo uma balofice!... É o que eu lhes digo a elles:

- «Ó almas do diabo, atacai as questões sociaes!»

Felizmente um trem avançava, rolando devagar, do lado do Terreiro do Paço. Ega, precipitadamente, deu um aperto de mão ao democrata, desejou-lhe uma «boa viagem», atirou ao cocheiro a adresse do Ramalhete. Mas o snr. Guimarães ainda se apoderou da portinhola para aconselhar ao Ega que fosse a Paris. Agora, que tinham feito amizade, havia de o apresentar a toda aquella gente... E o snr. Ega veria! Não era cá a grande pose portugueza, d'estes imbecis, d'estes pelintras a darem-se ares, torcendo os bigodes. Lá, na primeira nação do mundo, tudo era alegria e fraternidade e espirito a rodos...

- E a minha adresse, na redacção do Rappel! Bem conhecida no mundo! Emquanto ao embrulhosinho fico descançado...

- Póde v. exc.ª ficar descançado!

- Criado de v. exc.ª... Os meus comprimentos á snr.ª D. Maria!

Na carruagem, através do Aterro, a anciosa interrogação do Ega a si mesmo foi - que hei de fazer?» Que faria, santo Deus, com aquelle segredo terrivel que possuia, de que só elle era senhor, agora que o Guimarães partia, desapparecia para sempre? E antevendo com terror todas as angustias em que essa revelação ia lançar o homem que mais estimava no mundo - a sua instinctiva idéa foi guardar para sempre o segredo, deixal-o morrer dentro em si. Não diria nada; o Guimarães sumia-se em Paris; e quem se amava continuava a amar-se!... Não crearia assim uma crise atroz na vida de Carlos - nem soffreria elle, como companheiro, a sua parte d'essas afflicções.

Que coisa mais impiedosa, de resto, que estragar a vida de duas innocentes e adoraveis creaturas, atirando-lhes á face uma prova de incesto!...

Mas, a esta idéa de incesto, todas as consequencias d'esse silencio lhe appareceram, como coisas vivas e pavorosas, flammejando no escuro diante dos seus olhos. Poderia elle tranquillamente testemunhar a vida dos dois - desde que a sabia incestuosa? Ir á rua de S.

Francisco, sentar-se-lhes alegremente á mesa, entrevêr através do reposteiro a cama em que ambos dormiam - e saber que esta sordidez de peccado era obra do seu silencio? Não podia

ser... Mas teria tambem coragem de entrar ao outro dia no quarto de Carlos, e dizer-lhe em face - «Olha que tu és amante de tua irmã?»

A carruagem parára no Ramalhete. Ega subiu, como costumava, pela escada particular de Carlos. Tudo estava apagado e mudo. Accendeu a sua palmatoria; entreabriu o reposteiro dos aposentos de Carlos; deu alguns passos timidos no tapete, que pareceram já soar tristemente. Um reflexo d'espelho alvejou ao fundo na sombra da alcova. E a luz cahiu sobre o leito intacto, com a sua longa colcha lisa, entre os cortinados de sêda. Então a idéa que Carlos estava áquella hora na rua de S. Francisco, dormindo com uma mulher que era sua irmã, atravessou-o com uma cruel nitidez, n'uma imagem material, tão viva e real, que elle viu-os claramente, de braços enlaçados, e em camisa... Toda a belleza de Maria, todo o requinte de Carlos desappareciam. Ficavam só dois animaes, nascidos do mesmo ventre, juntando-se a um canto como cães, sob o impulso bruto do cio!

Correu para o seu quarto, fugindo áquella visão a que o escuro do corredor, mal dissipado pela luz tremula, accentuava mais o relêvo. Aferrolhou a porta; accendeu á pressa sobre o toucador, uma depois da outra, com a mão agitada, as seis velas dos candelabros. E

agora apparecia-lhe mais urgente, inevitavel, a necessidade de contar tudo a Carlos. Mas ao mesmo tempo sentia em si, a cada instante, menos animo para chegar, encarar Carlos, e destruir-lhe a felicidade e a vida com uma revelação d'incesto. Não podia! Outro que lh'o dissesse! Elle lá estava depois para o consolar, tomar metade da sua dôr, carinhoso e fiel.

Mas o desgosto supremo da vida de Carlos não viria de palavras cahidas da sua boca!...

Outro que lh'o dissesse! Mas quem? Mil idéas passavam na sua pobre cabeça, incoherentes e tontas. Pedir a Maria que fugisse, desapparecesse... Escrever uma carta anonyma a Carlos, com a detalhada historia do Guimarães... E esta confusão, esta anciedade ia-se resolvendo lentamente em odio ao snr. Guimarães. Para que fallára

áquelle imbecil? Para que insistira em lhe confiar papeis alheios? Para que lh'o apresentára o Alencar? Ah! se não fosse a carta do Damaso... Tudo provinha do maldito Damaso!

Agitando-se pelo quarto, ainda de chapéo, os seus olhos cahiram n'um sobrescripto pousado sobre a mesa de cabeceira.

Reconheceu a letra do Villaça. E nem a abriu... Uma idéa sulcára-o de repente. Contar tudo ao Villaça!... Porque não? Era o procurador dos Maias. Nunca para elle houvera segredos n'aquella casa. E esta complicação singular d'uma senhora da familia, considerada morta e que surge inesperadamente - a quem a pertencia aclarar senão ao fiel procurador, ao velho confidente, ao homem que, por herança e por destino, recebera sempre todos os segredos e partilhára todos os interesses domesticos?... E sem pensar, sem aprofundar mais, fixou-se logo n'esta decisão salvadora, - que ao menos o socegava, lhe tirava já do coração um peso de ferro, suffocante e intoleravel...

Devia acordar cedo, procurar Villaça em casa. Escreveu n'uma folha de papel -

«Acorda-me ás sete». E desceu abaixo, ao longo corredor de pedra onde dormiam os criados, dependurou este recado na chave do quarto do escudeiro.

Quando subiu, mais calmo, - abriu então a carta do Villaça. Era uma curta linha lembrando ao amigo Ega que a letrinha de duzentos mil reis, no Banco Popular, se vencia d'ahi a dois dias...

- Sêbo, tudo se junta! exclamou Ega furioso, atirando a carta amarrotada para o chão.

VII

Pontual, ás sete horas, o escudeiro acordou Ega. Ao rumor da porta elle sentou-se na cama um salto - e logo todos os negros cuidados da vespera, Carlos, a irmã, a felicidade d'aquella casa acabada para sempre, se lhe ergueram n'alma em sobresalto, como despertando tambem. A portada da varanda ficára aberta; um ar silencioso e livido de madrugada clareava através do transparente de fazenda branca. Durante um momento Ega ficou olhando em redor, arrepiado; depois, sem coragem, remergulhou nos lençoes, gozando aquelle bocado de calor e de conchêgo antes d'ir affrontar fóra as amarguras do dia.

E pouco a pouco, sob o tepido conchêgo dos cobertores em que se atabafára, começou a afigurar-se-lhe menos urgente, e menos util, essa correria estremunhada a casa do Villaça... De que servia procurar o Villaça? Não se tratava alli de dinheiro, nem de demandas, nem de legalidade - de nada que reclamasse a experiencia d'um procurador. Era apenas introduzir um burguez mais n'um segredo tão terrivelmente delicado que elle mesmo se assustava de o saber. E acochado mais sob a roupa, apenas com o nariz ao frio, murmurava comsigo: «É uma tolice ir ao Villaça!»

De resto não poderia elle ajuntar em si bastante coragem para contar tudo a Carlos, logo, n'essa manhã, claramente, virilmente? Era por fim aquelle caso tão pavoroso como lhe parecera na vespera - um irreparavel desabamento d'uma vida de homem?... Ao pé da quinta da mãe, em Celorico, no logar de Vouzeias, houvera um successo parecido, dois irmãos que innocentemente iam casar. Tudo se aclarou ao reunirem-se os papeis para os banhos. Os noivos ficaram uns dias «embatucados», como dizia o padre Seraphim; mas por fim já riam, muito amigos, muito divertidos, quando se tratavam de «manos». O noivo, um rapagão bonito, contava depois «que ia havendo uma mixordia na familia». Aqui o engano seguira mais longe, as sensibilidades eram mais requintadas; mas os seus corações permaneciam livres de toda a culpa, innocentes absolutamente. Porque ficaria pois a existencia de Carlos para sempre estragada? A inconsciencia impediu-lhe o remorso: e passado o primeiro horror, de que lhe podia, na realidade, vir a definitiva dôr? Sómente do prazer ter findado. Era então como outro qualquer desgosto d'amor. Bem menos atroz do que se Maria o tivesse trahido com o Damaso!

De repente a porta abriu-se, Carlos appareceu exclamando:

- Então que madrugada foi esta? Disse-me agora lá em baixo o Baptista... É aventura?

duello?

Trazia o paletot todo abotoado, com a gola erguida, escondendo ainda a gravata branca da vespera; e decerto chegára da rua de S. Francisco na tipoia que havia instantes Ega sentira parar na calçada.

Elle sentára-se bruscamente na cama; e estendendo a mão para os cigarros, sobre a mesa ao lado, murmurou, bocejando, que na vespera combinára uma ida a Cintra com o Taveira... Por precaução mandára-se chamar... Mas não sabia, acordára cansado...

- Que tal está o dia?

Justamente Carlos fôra correr o transparente da janella. Ahi, na mesa de trabalho, collocada em plena luz, ficára a caixa da Monforte embrulhada no Rappel. E Ega pensou n'um relance: - «Se elle repara, se pergunta, digo tudo!» - O seu pobre coração pôz-se a bater anciosamente no terror d'aquella decisão. Mas o transparente um pouco pêrro subiu,

uma facha de sol banhou a mesa - e Carlos voltou sem reparar no cofre. Foi um immenso allivio para o Ega.

- Então, Cintra? disse Carlos, sentando-se aos pés da cama. Com effeito não é má idéa... A Maria ainda hontem esteve tambem a fallar d'ir a Cintra... Espera! Podiamos fazer a patuscada juntos... Iamos no break, a quatro!

E olhava já o relogio, calculando o tempo para atrellar, avisar Maria.

- O peor, acudiu o Ega atrapalhado, tomando de sobre a mesa o monoculo, é que o Taveira fallou em irmos com umas raparigas...

Carlos encolheu os hombros com horror. Que sordidez, ir com mulheres para Cintra, de dia!... De noite, nas trevas, por bebedeira, vá... Mas á luz do Senhor! Talvez com a Lola gorda, hein?...

Are sens