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- Mas eu queria dizer-t'o, murmurou muito baixo, muito quebrado diante d'elle, deixando cahir os braços. Eu queria dizer-t'o... Não te lembras, n'aquelle dia em que vieste tarde, quando eu fallei da casa de campo, e que tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu disse-te logo: «ha uma coisa que te quero contar...» Tu nem me deixaste acabar. Imaginavas o que era, que eu queria ser só tua, longe de tudo... E disseste então que haviamos d'ir, com Rosa, ser felizes para algum canto do mundo... Não te lembras?... Foi então que me veio uma tentação! Era não dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, annos depois, quando te tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua estima, confessar-te tudo e dizer-te: «agora, se queres, manda-me embora.» Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma tentação, não resisti... Se tu não fallasses em fugirmos, tinha-te dito tudo... Mas mal fallaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grande esperança, nem sei que! E além d'isso adiava aquella horrivel confissão! Emfim, nem posso explicar, era como o céo que se abria, via-me comtigo n'uma casa nossa... Foi uma tentação!... E depois era horrivel, no momento em que tu me querias tanto, ir dizer-te «não faças tudo isso por mim, olha que eu sou uma desgraçada, nem marido tenho...» Que te hei de explicar mais? Não me resignava a perder o teu respeito. Era tão bom ser assim estimada... Emfim foi um mal, foi um grande mal... E agora ahi está, vejo-me perdida, tudo acabou!

Atirou-se para o chão, como uma creatura vencida e finda, escondendo a face no sofá.

E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando bruscamente até junto d'ella, tinha só a mesma recriminação, a mentira, a mentira, pertinaz e de cada dia... Só os soluços d'ella lhe respondiam.

- Porque não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivaes, quando sabias que tu eras tudo para mim?...

Ella ergueu a cabeça fatigada:

- Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse d'outro modo... Via-te já a tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por ahi dentro de chapéo na cabeça, a perder a affeição á pequena, a querer pagar as despezas da casa... Depois tinha remorsos, ia adiando.

Dizia «hoje não, um dia só mais de felicidade, ámanhã será...» E assim ia indo! Emfim, nem eu sei, um horror!

Houve um silencio. E então Carlos sentiu á porta Niniche que queria entrar e que gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadellinha correu, pulou para o sofá, onde Maria permanecia soluçando, enrodilhando a um canto: procurava lamber-lhe as mãos, inquieta: depois ficou plantada junto d'ella, como a guarda-l'a, desconfiada, seguindo, com os seus vivos olhos d'azeviche, Carlos que recomeçára a passear sombriamente.

Um ai mais longo e mais triste de Maria fel-o parar. Esteve um momento olhando para aquella dôr humilhada... Todo abalado, com

os labios a tremer, murmurou:

- Mesmo que te pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora nunca mais? Ha esta mentira horrivel sempre entre nós a

separar-nos! Não teria um unico dia de confiança e de paz...

- Nunca te menti senão n'uma coisa, e por amor de ti! disse ella gravemente do fundo da sua prostração.

- Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te poderia

acreditar... Como havia de ser, se agora mesmo quasi que nem acredito no motivo das tuas lagrimas?

Uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente seccos rebrilharam, revoltados e largos, no marmore da sua

pallidez.

- Que queres tu dizer? Que estas lagrimas tem outro motivo, estas supplicas são fingidas? Que finjo tudo para te reter, para não te

perder, ter outro homem, agora que estou abandonada?...

Elle balbuciou:

- Não, não! Não é isso!

- E eu? exclamou ella, caminho para elle, dominando-o, magnifica e com um esplendor de verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar n'essa grande paixão que me juravas?

O que é que tu amavas então em mim? Dize lá! Era a mulher d'outro, o nome, o requinte do adulterio, as toilletes?... Ou era eu propria, o meu corpo, a minha alma e o meu amor por ti?... Eu sou a mesma, olha bem para mim!... Estes braços são os mesmos, este peito é o mesmo... Só uma coisa é differente: a minha paixão! Essa é maior, desgraçadamente, infinitamente maior.

- Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as mãos.

N'um instante Maria estava cahida a seus pés, com os braços abertos para elle.

- Juro-t'o por alma de minha filha, por alma de Rosa! Amo-te, adoro-te doidamente, absurdamente, até á morte!

Carlos tremia. Todo o seu sêr pendia para ella; e era um impulso irresistivel de se deixar cahir sobre aquelle seio que arfava a seus pés, ainda que elle fosse o abysmo da sua vida inteira... Mas outra vez a idéia da mentira passou, regeladora. E afastou-se d'ella, levando os punhos á cabeça, n'um desespero, revoltado contra aquella coisa pequenina e indestructivel que não queria sumir-se, e que se interpunha como uma barra de ferro entre elle e a sua felicidade divina!

Ella ficára ajoelhada, immovel, com os olhos esgazeados para o tapete. Depois, no silencio estofado da sala, a sua voz ergueu-se dolente e tremula:

- Tens razão, acabou-se! Tu não me acreditas, tudo se acabou!... É melhor que te vás embora... Ninguem me torna a acreditar... Acabou tudo para mim, não tenho ninguem mais no mundo... Ámanhã sáio d'aqui, deixo-te tudo... Has de me dar tempo para arranjar...

Depois, que hei de fazer, vou-me embora!

E não pôde mais, tombou para o chão, com os braços estirados, perdida de chôro.

Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro, para alli cahida e abandonada, parecia já uma pobre creatura, arremessada para fóra de todo o lar, sósinha a um canto, entre a inclemencia do mundo... Então respeitos humanos, orgulho, dignidade

humana, tudo n'elle foi levado como por um grande vento de piedade. Viu só, offuscando todas as fragilidades, a sua belleza, a sua dôr, a sua alma sublimemente amante. Um delirio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se á sua paixão. E, debruçando-se, disse-lhe baixo, com os braços abertos:

- Maria, queres casar commigo?

Ella ergueu a cabeça, sem comprehender, com os olhos desvairados. Mas Carlos tinha os braços abertos; e estava esperando para a fechar dentro d'elles outra vez, como sua e para sempre... Então levantou-se, tropeçando nos vestidos, veio cahir sobre o peito d'elle, cobrindo-o de beijos, entre soluços e risos, tonta, n'um deslumbramento:

- Casar comtigo, comtigo? Oh Carlos... E viver sempre, sempre comtigo?... Oh meu amor, meu amor! E tratar de ti, e servir-te, e adorar-te, e ser só tua? E a pobre Rosa tambem... Não, não cases commigo, não é possivel, não valho nada! Mas se tu queres, porque não?... Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coração! E has de ser nosso amigo, meu e d'ella, que não temos ninguem no mundo... Oh! meu Deus, meu Deus!...

Empallideceu, escorregando pesadamente entre os braços d'elle, desmaiada: e os seus longos cabellos desprendidos rojavam o chão, tocados pelas luz de tons d'ouro.

V

Maria Eduarda e Carlos, que ficára essa noite nos Olivaes na sua casinhola, acabavam de almoçar. O Domingos servira o café, e antes de sahir deixára ao lado de Carlos a caixa de cigarettes e o Figaro. As duas janellas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhã encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe nos campos. No banco de cortiça, sob as arvores, miss Sarah costurava preguiçosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E Carlos, que viera n'uma intimidade conjugal, com uma simples camisa de sêda e um jaquetão de flanella, chegou então a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a mão, brincando-lhe com os anneis, n'uma lenta caricia:

- Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?

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