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- Alto lá! berrou o procurador, batendo com o punho na mesa. Não tem direito á legitima do pai, e não apanha um real d'esta casa!... Irra, ahi é que está o ponto!

Ega teve um gesto desolado. Não, nem isso, desgraçadamente! Esta era a filha do Pedro da Maia. O Guimarães conhecia-a de a trazer ao collo, de lhe dar bonecas quando ella tinha sete annos, e quando apenas havia quatro ou cinco annos que o italiano estivera em Arroios, de cama, com uma chumbada... A filha d'esse morrera em Londres, pequenina.

Villaça recahiu no canapé, succumbido.

- Quatrocentos contos, que bolada!

Então Ega resumiu. Se não existia ainda uma certeza legal, havia já uma forte suspeita.

E desde logo não se podia deixar o pobre Carlos, innocentemente, a chafurdar n'aquella sordidez. Era pois indispensavel revelar tudo a Carlos n'essa noite...

- E você, Villaça, é que tem de lh'o dizer.

Villaça deu um salto que fez bater o canapé contra a parede.

- Eu?

- Você, que é o procurador da casa!

Que havia alli, senão uma questão de filiação, portanto de legitima? A quem pertenciam esses detalhes legaes senão ao procurador?

Villaça murmurou com todo o sangue na face:

- Homem, o amigo mette-me n'uma!...

Não. Ega mettia-o apenas n'aquillo em que o Villaça, como procurador, logicamente e profissionalmente devia estar.

O outro protestou, tão perturbado que gaguejava. Que diabo! Não era esquivar-se aos seus deveres! Mas é que elle não sabia nada! Que podia dizer ao snr. Carlos da Maia? «O

amigo Ega veio-me contar isto, que lhe contou um tal Guimarães hontem á noite no Loreto...» Não tinha a dizer mais nada...

- Pois diga isso.

O outro encarou Ega com olhos que chammejavam:

- Diga isso, diga isso... Que diabo, senhor, é necessario ter topete!

Deu um puxão desesperado ao collete, foi bufando até ao fundo do cubiculo, onde esbarrou com o armario. Voltou, tornou a encarar o Ega:

- Não se vai a um homem com uma coisa d'essas sem provas... Onde estão as provas?...

- Ó Villaça, desculpe, você está obtuso!... A que vim eu aqui senão trazer-lhe as provas, as que ha, boas ou más, a historia do Guimarães, essa caixa com os papeis da Monforte?...

Villaça, que resmungava, foi examinar a caixa, virando-a nas mãos, decifrando o mote do sinete Pro amore.

- Então, abrimol-a?

Já Ega puxára uma cadeira para a mesa. Villaça cortou o papel, gasto nos cantos, que envolvia o cofre. E appareceu effectivamente uma velha caixa de charutos pregada com duas taxas, cheia de papeis, alguns em maços apertados por fitas, outros soltos dentro de sobrescriptos abertos que tinham o monogramma da Monforte sob uma corôa de marquez.

Ega desembrulhou o primeiro maço. Eram cartas em allemão, que elle não percebia, datadas de Buda-Pesth e de Carlsruhe.

- Bem, isto não nos diz nada... Adiante!

Outro embrulho, a que Villaça cuidadosamente desapertou o nó côr de rosa, resguardava uma caixa oval com a miniatura d'um homem de bigodes e suissas ruivas, entalado na alta gola dourada d'uma farda branca. Villaça achou a pintura «linda».

- Algum oficial austriaco, rosnou Ega. outro amante... Ça marche.

Iam tirando os papeis por ordem, com a ponta dos dedos, como tocando em reliquias.

Um largo enveloppe atulhado de contas de modistas, algumas pagas, outras sem recibo, interessou profundamente o Villaça - que percorria os items, espantado dos preços, das infinitas invenções do luxo. Contas de seis mil francos! Um só vestido, dois mil francos!...

Outro maço trouxe uma surpreza. Eram cartas de Maria Eduarda á mãi, escriptas do convento, n'uma letra redonda e trabalhada como um desenho, com phrasesinhas cheias de gravidade devota, dictadas decerto pelas boas Irmãs; e n'estas composições, virtuosas e frias como themas, o sincero coração da rapariga só transparecia n'alguma florzinha, agora sêcca, pregada no alto do papel com um alfinete.

- Isto põe-se de parte, murmurou Villaça.

Então Ega, já impaciente, esvaziou toda a caixa sobre a mesa, alastrou os papeis. E

entre cartas, «entras contas, bilhetes de visita, um grande sobrescripto destacou com esta linha a tinta azul: - Pertence a minha filha Maria Eduarda. Foi Villaça que lançou os olhos rapidamente á enorme folha de papel que elle continha, luxuosa e documental, com o monogramma d'ouro sob a corôa de marquez. Quando o passou em silencio para a mão do Ega parecia suffocado, com todo o sangue nas orelhas.

Ega leu-o alto, devagar. Dizia: - «Como a Maria teve a pequena e anda muito fraca, e eu tambem me não sinto nada boa com umas pontadas, parece-me prudente, para o que possa vir a succeder, fazer aqui uma declaração que te pertence a ti, minha querida filha, e que só sabe o padre Talloux (Mr. l'abbé Talloux, coadjuteur à Saint-Roch) porque lh'o disse ha dois annos quando tive a pneumonia. E é o seguinte: Declaro que minha filha Maria Eduarda, que costuma assignar Maria Calzaski, por suppôr ser esse o nome de seu pai, é portugueza e filha de meu marido Pedro da Maia, de quem me separei voluntariamente, trazendo-a commigo para Vienna, depois para Paris, e que agora vive em companhia de Patrick Mac-Gren, em Fontainebleau, com quem vai casar. E o pai de meu marido era meu sogro Affonso da Maia, viuvo, que vivia em Bemfica e tambem em Santa Olavia ao pé do rio Douro. O que tudo se póde verificar em Lisboa pois devem lá estar os papeis; e os meus erros de que vejo agora as consequencias não devem impedir que tu, minha querida filha, tenhas a posição e fortuna que te pertencem. E por isso aqui declaro tudo isto que assigno, no caso que o não possa fazer diante d'um tabellião, o que tenciono logo que esteja melhor.

E de tudo, se eu vier a morrer, o que Deus não permitiu, peço perdão a minha filha. E

assigno com o meu nome de casada - Maria Monforte da Maia.»

Ega ficou a olhar para o Villaça. O procurador só pôde murmurar, com as mãos cruzadas sobre a mesa:

- Que bolada! Que bolada!

Então Ega ergueu-se. Bem! Agora tudo se simplificava. Havia unicamente a entregar aquelle documento a Carlos, sem commentarios. Mas o Villaça coçava a cabeça, retomado por uma duvida:

- Eu não sei se este papelinho faria fé em juizo...

- Qual fé, qual juizo! exclamou Ega violentamente. É o bastante para que elle não torne a dormir com ella!...

Uma pancada timida na porta do cubiculo fêl-o estacar, inquieto. Desandou a chave.

Era o escrevente, que segredou através da frincha:

- O snr. Carlos da Maia ficou agora lá em baixo no carrinho quando eu entrei, perguntou pelo snr. Villaça.

Houve um pânico! Ega, atarantado, agarrára o chapéo do Villaça. O procurador atirava ás mãos ambas, para dentro d'uma gaveta, os papeis da Monforte.

- É talvez melhor dizer que não está, lembrou o escrevente.

- Sim, que não está! foi o grito abafado de ambos.

Ficaram á escuta, ainda pallidos. O dog-cart de Carlos rolou na calçada; os dois amigos respiraram. Mas agora Ega arrependia-se de não terem mandado subir Carlos - e alli mesmo, sem outras vacillações nem pieguices, corajosamente, contarem-lhe tudo, diante d'aquelles papeis bem abertos. E estava saltado o barranco!

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