mamã começou a apparecer menos em Tours. Esteve um anno longe, quasi sem escrever, viajando na Allemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto, e ficou toda a manhã abraçada a ella a chorar.
Mas na visita seguinte vinha mais moça, mais brilhante, mais ligeira, com dois grandes galgos brancos, annunciando uma romagem poetica á Terra Santa e a todo o remoto Oriente. Ella tinha então quasi dezeseis annos: pela sua applicação, os seus modos dôces e graves, ganhára a affeição da Madre Superiora - que ás vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o cabello cahido em duas tranças segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar sempre ao seu lado. Le monde, dizia ella, ne vous sera bon à rien, mon enfant!... Um dia, porém, appareceu para a levar para Paris, para a mamã, uma Madame de Chavigny, fidalga pobre, de caracoes brancos, que era como uma estampa de severidade e de virtude.
O que ella chorára ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse o que ía encontrar em Paris!
A casa da mamã, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo - mas recoberta de um luxo sério e fino. Os escudeiros tinham meias de sêda; os convidados, com grandes nomes no Nobiliario de França, conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e as mesas de jogo armavam-se depois como uma distracção mais picante. Ella recolhia sempre ao seu quarto ás dez horas: Madame de Chavigny, que ficára como sua dama de companhia, ia com ella cedo ao Bois n'um coupé estufo de douairière.
Pouco a pouco, porém, este grande verniz começou a estalar. A pobre mamã cahira sob o jugo d'um Mr. de Trevernnes, homem perigoso pela sua seducção pessoal e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casa descahiu rapidamente n'uma bohemia mal dourada e ruidosa. Quando ella madrugava, com os seus habitos saudaveis do convento, encontrava paletots d'homens por cima dos sofás: no marmore das consoles restavam pontas de charuto entre nodoas de champagne; e n'algum quarto mais retirado ainda tinia o dinheiro d'um baccarat talhado á claridade do sol. Depois uma noite, estando deitada, sentira de repente gritos, uma debandada brusca na escada; veio encontrar a mamã estirada no tapete, desmaiada; ella dissera-lhe apenas mais tarde, alagada em lagrimas, «que tinha havido uma desgraça»...
Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée-d'Antin. Ahi começou a apparecer uma gente desconhecida e suspeita. Eram Valachos de grandes bigodes, Peruanos com diamantes falsos, e condes romanos que escondiam para dentro das mangas os punhos enxovalhados... Por vezes entre esta malta vinha algum gentleman que não tirava o paletot, como n'um café-concerto. Um d'esses foi um irlandez, muito moço, Mac-Gren... Madame de Champigny deixára-as desde que faltára o coupé severo, acolchoado de setim; e ella, só com a mãi, insensivelmente, fatalmente, fôra-se misturando a essa vida tresnoitada de grogs e de baccarat.
A mamã chamava a Mac-Gren o «bébé». Era com effeito uma criança estouvada e feliz. Namorára-se d'ella logo com o ardor, a effusão, o impeto d'um irlandez; e prometteu-lhe fazel-a sua esposa apenas se emancipasse - porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo das liberalidades de uma avó excentrica e rica que o adorava, e que habitava a Provença n'uma vasta quinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto induzia-a sem cessar a fugir com elle, desesperado de a vêr entre aquelles Valachos que cheiravam a genebra.
O seu desejo era leval-a para Fontainebleau, para um cottage com trepadeiras de que fallava sempre, e esperar ahi tranquillamente a maioridade que lhe traria duas mil libras de renda.
Decerto, era uma situação falsa: mas preferivel a permanecer n'aquelle meio depravado e
brutal onde ella a cada instante córava... A esse tempo a mamã parcela ir perdendo todo o senso, desarranjada de nervos, quasi irresponsavel. As difficuldades crescentes estonteavam-n'a; brigava com as criadas; bebia champagne «pour s'étourdir». Para satisfazer as exigencias de Mr. de Trevernnes empenhára as suas joias, e quasi todos os dias chorava com ciumes d'elle. Por fim houve uma penhora: uma noite tiveram d'enfardelar á pressa roupa n'um sacco, e ir dormir a um hotel. E, peor, peor que tudo! Mr. de Trevernnes começava a olhar para ella d'um modo que a assustava...
- Minha pobre Maria! murmurou Carlos, pallido, agarrando-lhe as mãos.
Ella permaneceu um momento suffocada, com o rosto cahido nos joelhos d'elle. Depois limpando as lagrimas que a ennevoavam:
- Ahi estão as cartas de Mac-Gren, n'esse cofre... Tenho-as guardado sempre para me justificar a mim mesma, se me é possível...
Pede-me em todas que vá para Fontainebleau; chama-me sua esposa; jura que apenas juntos iremos ajoelhar-nos diante da avó, obter a sua indulgencia... Mil promessas! E era sincero...
Que queres que te diga? A mamã uma manhã partiu com uma sucia para Baden.
Fiquei em Paris só, n'um hotel... Tinha um palpite, um terror que Trevernnes apparecia... E
eu só! Estava tão transtornada que pensei em comprar um rewolver... Mas quem veio foi Mac-Gren.
E partira com elle, sem precipitação, como sua esposa, levando todas as suas malas. A mamã de volta de Baden correu a Fontainebleau, desvairada e tragica, amaldiçoando MacGren, ameaçando-o com a prisão de Mazas, querendo esbofeteal-o; depois rompeu a chorar.
Mac-Gren, como um bébé, agarrou-se a ella aos beijos, chorando tambem. A mamã terminou por os apertar a ambos contra o coração, já rendida, perdoando tudo, chamando-lhes «filhos da sua alma». Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando «a patuscada de Baden», já com o plano de vir installar-se no cottage, viver junto d'elles n'uma felicidade calma e nobre de avósinha...Era em maio; Mac-Gren, á noite, deitou um «fogo preso» no jardim.
Começou um anno quieto e facil. O seu unico desejo era que a mamã vivesse com elles socegadamente. Diante das suas supplicas ella ficava pensativa, dizia: «Tens razão, veremos!» Depois remergulhava no torvelinho de Paris, d'onde resurgia uma manhã, n'um fiacre, estremunhada e afflicta, com uma rica pelliça sobre uma velha saia, a pedir-lhe cem francos... Por fim nascera Rosa. Toda a sua anciedade desde então fôra legitimar a sua união. Mas Mac-Gren adiava, levianamente, com um medo pueril da avó. Era um perfeito bébé! Entretinha as manhãs a caçar passaros com visco! E ao mesmo tempo terrivelmente teimoso: ella pouco a pouco perdera-lhe todo o respeito. No começo da primavera a mamã um dia appareceu em Fontainebleau com as suas malas, succumbida, enojada da vida.
Rompera emfim com Trevernnes. Mas quasi immediatamente se consolou: e começou d'ahi a adorar Mac-Gren com uma tão larga effusão de caricias, e achando-o tão lindo, que era ás vezes embaraçadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de cognac, jogando o bezigue.
De repente rebentou a guerra com a Prussia. Mac-Gren enthusiasmado, e apesar das supplicas d'ellas, corrêra a alistar-se no batalhão de Zuavos de Charette; a avó de resto approvára este rasgo d'amor pela França, e fizera-lhe n'uma carta em verso, em que celebrava Jeanne d'Arc, uma larga remessa de dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ella, sem lhe largar o leito, mal attendia ás noticias da guerra. Sabia apenas confusamente das primeiras batalhas perdidas na fronteira. Uma manhã a mamã rompeu-lhe no quarto, estonteada, em camisa: o exercito capitulara em Sédan, o imperador estava prisioneiro! «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» dizia a mamã espavorida. Ella veio a Paris
procurar noticias de Mac-Gren: na rua Royale teve de se refugiar n'um portão, diante do tumulto d'um povo em delirio, acclamando, cantando a Marselheza, em torno de uma caleche onde ia um homem, pallido como cera, com um cache-nez escarlate ao pescoço. E
um sujeito ao lado, aterrado, disse-lhe que o povo fôra buscar Rochefort á prisão e que estava, proclamada a Republica.
Nada soubera de Mac-Gren. Começaram então dias d'infinito sobresalto. Felizmente Rosa convalescia. Mas a pobre mamã causava dó, envelhecida de repente, sombria, prostrada n'uma cadeira, murmurando apenas: «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» E
parecia na verdade o fim da França. Cada dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados em wagons de gado, internados a todo o vapor para os presidios d'Allemanha; os prussianos marchando sobre Paris... Não podiam permanecer em Fontainebleau; o duro inverno começava; e com o que venderam á pressa, com o dinheiro que Mac-Gren deixara, partiram para Londres.
Fôra uma exigencia da mamã. E em Londres ella, desorientada na enorme e estranha cidade, doente tambem, deixára-se levar pelas tontas idéas da mãe. Tomaram uma casa mobilada, muito cara, nos bairros de luxo, ao pé de Mayfair. A mamã fallava em organisar alli o centro de resistencia dos bonapartistas refugiados; no fundo, a desgraçada pensava em crear uma casa de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas, sem imperio, não jogavam já o baccarat. E ellas em breve, sem rendimentos, gastando sempre, tinham-se achado com aquella dispendiosa casa, tres criados, contas colossaes e uma nota de cinco libras no fundo d'uma gaveta. E Mac-Gren mettido dentro de Paris, com meio milhão de prussianos em redor. Foi necessario vender todas as joias, vestidos, até as pelliças. Alugaram então, no bairro pobre de Soho, tres quartos mal mobilados. Era o lodging de Londres em toda a sua suja, solitaria tristeza; uma criadita unica, enfarruscada como um trapo; alguns carvões humidos fumegando mal na chaminé; e para jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina. Por fim faltára mesmo o escasso shilling para pagar o lodging. A mamã não sahia do catre, doente, succumbida, chorando. Ella ás vezes ao anoitecer, escondida n'um water-proof, levava ao prégo embrulhos de roupa (até roupa branca, até camisas!) para que ao menos não faltasse a Rosa a sua chicara de leite. As cartas que a mamã escrevia a alguns antigos companheiros de ceias na Maison d'Or ficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada n'um bocado de papel, alguma meia-libra que tinha o pavoroso sabor d'uma esmola. Uma noite, um sabbado de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de rendas da mamã, perdera-se, errára na vasta Londres n'uma treva amarelada, a tiritar de frio, quasi com fome, perseguida por dois brutos que empestavam a alcool. Para lhes fugir atirou-se para dentro d'um cab que a levou a casa. Mas não tinha um penny para pagar ao cocheiro; e a patrôa roncava no seu cacifro, bebeda. O homem resmungou; ella, succumbida, alli mesmo na porta rompeu a chorar.
Então o cocheiro desceu da almofada, commovido, offereceu-se para a levar de graça ao prégo, onde ajustariam as suas contas. Foi; o pobre homem só aceitou um schilling; até mesmo suppondo-a franceza grunhiu blasphemias contra os prussianos, e teimou em lhe offerecer uma bebida.
Ella no emtanto procurava uma occupação qualquer costura, bordados, traducções, cópias de manuscriptos... Não achava nada. N'aquelle duro inverno o trabalho escasseava em Londres; surgira uma multidão de francezes, pobres como ella, luctando pelo pão... A mamã não cessava de chorar; e havia alguma coisa mais terrivel que as suas lagrimas -
eram as suas allusões constantes á facilidade de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo, quando se é nova e se é bonita...
- Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ella, apertando as mãos amargamente.
Carlos beijou-a em silencio, com os olhos humedecidos.
- Emfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cêrco acabou. Paris estava de novo aberto... Sómente a difficuldade era voltar.
- Como voltaste?
Um dia por acaso, em Regent-Street, encontrára um amigo de Mac-Gren, outro irlandez, que muitas vezes jantára com elles em Fontainebleau. Veio vêl-as a Soho; diante d'aquella miseria, do bule de chá aguado, dos ossos de carneiro requentando sobre tres brazas mortas, começou, como bom irlandez, por accusar o governo d'Inglaterra e jurar uma desforra de sangue. Depois offereceu, com os beiços já a tremer, toda a sua dedicação.
O pobre rapaz batia tambem o lagedo n'uma lucta tormentosa pela vida. Mas era irlandez; e partiu logo generosamente, armado de todos os seus ardis, a conquistar através de Londres o pouco que ellas necessitavam para recolher a França. Com effeito appareceu n'essa mesma noite, derreado e triumphante, brandindo tres notas de banco e uma garrafa de champagne. A mamã ao vêr, depois de tantos mezes de chá preto, a garrafa de Clicquot encarapuçada de ouro – quasi desmaiou, de enternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao partirem, na estação de Charing-Cross, o irlandez levou-a para um canto, e engasgado, torcendo os bigodes, disse-lhe que Mac-Gren tinha morrido na batalha de Saint-Privat...
- Para que te hei de eu contar o resto? Em Paris recomecei a procurar trabalho. Mas tudo estava ainda em confusão... Quasi immediatamente veio a Communa... Pódes acreditar que muitas vezes tivemos fome. Mas emfim já não era Londres, nem o inverno, nem o exilio. Estavamos em Paris, soffriamos de companhia com amigos d'outros tempos. Já não parecia tão terrivel... Com todas estas privações a pobre Rosa começava a definhar... Era um supplicio vêl-a perder as côres, tristinha, mal vestida, mettida n'uma trapeira... A mamã já se queixava da doença de coração que a matou... O trabalho que eu encontrava, mal pago, dava-nos apenas para a renda da casa, e para não morrer absolutamente de necessidade... Principiei a adoecer de anciedade, de desespero. Luctei ainda. A mamã fazia dó. E Rosa morria se não tivesse outro regimen, bom ar, algum conforto... Conheci então Castro Gomes em casa d'uma antiga amiga da mamã, que não perdera nada com a guerra, nem com os prussianos, e que me dava trabalhos de costura... E o resto sábel-o... Nem eu me lembro... Fui levada... Via ás vezes Rosa, coitadinha, embrulhada n'um chale, muito quietinha ao seu canto, depois de rapada a sua magra tigela de sopas, e ainda com fome...
Não pôde continuar; rompeu a chorar, cahida sobre os joelhos de Carlos. E elle na sua emoção só lhe podia dizer, passando-lhe as mãos tremulas pelos cabellos, que a havia de desforrar bem de todas as miserias passadas...
- Escuta ainda, murmurou ella, limpando as lagrimas. Ha só uma coisa mais que te quero dizer. E é a santa verdade, juro-te pela alma de Rosa! É que n'estas duas relações que tive o meu coração conservou-se adormecido... Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem desejar nada, até que te vi... E ainda te quero dizer outra coisa...
Um momento hesitou, coberta de rubor. Passára os braços em torno de Carlos, pendurada toda d'elle, com os olhos mergulhados nos seus. E foi mais baixo que balbuciou na derradeira, na absoluta confissão de todo o seu sêr: