Melanie encolheu os hombros. Não sabia: nem a senhora sabia! Estivera no Central como madame Gomes; alugára a casa da rua de S. Francisco como madame Gomes; recebera-o como madame Gomes... E assim se deixára ir, insensivelmente, conversando com elle, gostando d'elle, vindo para os Olivaes... E depois era tarde, já não se atrevera a confessar, toda enterrada assim na mentira, com medo do desgosto...
Mas, exclamava Carlos, nunca imaginára ella que fatalmente tudo se descobriria um dia?
- Je ne sais pas, monsieur, je ne sais pas, murmurou Melanie quasi a chorar.
Depois eram outras curiosidades. Ella não esperava Castro Gomes? não suppunha que elle voltasse? não costumava fallar d'elle?...
- Oh non, monsieur, oh non!
Madame, desde que o senhor começára a ir todos os dias á rua de S. Francisco, considerára-se para sempre desligada do snr. Castro Gomes, nem fallava n'elle, nem queria que se fallasse... Antes d'isso a menina chamava sempre ao snr. Castro Gomes petit ami.
Agora não lhe chamava nada. Tinham-lhe dito que já não havia petit ami...
- Ella escrevia-lhe ainda, dizia Carlos, eu sei que ella lhe escrevia...
Sim, Melanie julgava que sim... Mas cartas indifferentes. A senhora levára o seu escrupulo a ponto de que, desde que viera para os Olivaes, nunca mais gastara um ceitil das quantias que lhe mandava o snr. Castro Gomes. As letras para receber dinheiro conservava-as intactas, entregara-lh'as n'essa tarde... Não se lembrava elle de a ter encontrado uma manhã á porta do Monte-Pio? Pois bem! Fôra lá, com uma amiga franceza, empenhar uma pulseira de brilhantes da senhora. A senhora vivia agora das suas joias; tinha já outras no prégo.
Carlos parára, commovido. Mas então para que tinha ella mentido?
- Je ne sais pas, dizia Melanie, je ne sais pas... Mais elle vous aime bien, allez!
Estavam defronte do portão. A tipoia esperava. E, ao fundo da rua d'acacias, a porta da casa aberta deixava passar a luz do corredor, frouxa e triste. Carlos julgou vêr mesmo a figura de Maria Eduarda, embrulhada n'uma capa escura, de chapéo, atravessar n'essa claridade... Ouvira decerto rodar a carruagem. Que afflicta paciencia seria a sua!
- Vai-lhe dizer que vim, Melanie, vai! murmurou Carlos.
A rapariga correu. E elle, caminhando devagar sob as acacias, sentia no sombrio silencio as pancadas desordenandas do seu coração. Subiu os tres degraus de pedra - que lhe pareciam já d'uma casa estranha. Dentro, o corredor estava deserto, com a sua lampada mourisca alumiando as panoplias de touros... Alli ficou. Melanie, com o chale na mão, veio dizer-lhe que a senhora estava na sala das tapeçarias...
Carlos entrou.
Lá estava, ainda de capa, esperando de pé, palida, com toda a alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lagrimas. E correu para elle, arrebatou-lhe as mãos, sem poder fallar, soluçando, tremendo toda.
Na sua terrivel perturbação, Carlos achava só esta palavra, melancolicamente estupida:
- Não sei porque chora, não sei, não há razão para chorar...
Ella pôde emfim balbuciar:
- Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa contar-te... Eu ia lá, tinha mandado Melanie por uma carruagem. Ia vêr-te... Nunca tive a coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrivel... Mas escuta, não digas nada ainda, perdôa, que eu não tenho culpa!
De novo os soluços a suffocaram. E cahiu ao canto do sofá, n'um chôro brusco e nervoso, que a sacudiu toda, lhe fazia rolar sobre os hombros os cabellos mal atados.
Carlos ficára diante d'ella, immovel. O seu coração parecia parado de surpreza e de duvida, sem força para desafogar. Apenas agora sentia quanto baixo e brutal deixar-lhe o cheque - que tinha alli na carteira e que o enchia de vergonha... Ella ergueu o rosto, todo molhado, murmurou com um grande esforço:
- Escuta-me!... Nem sei como hei de dizer... Oh, são tantas coisas, são tantas coisas!...
Tu não te vaes já embora, senta-te, escuta...
Carlos puxou uma cadeira, lentamente.
- Não, aqui ao pé de mim... Para eu ter mais coragem... Por quem és, tem pena, faze-me isso!
Elle cedeu á supplicação humilde e enternecedora dos seus olhos arrazados d'agua: e sentou-se ao outro canto do sofá, afastado d'ella, n'uma desconsolação infinita. Então, muito baixo, enrouquecida pelo chôro, sem o olhar, e como n'um confessionario - Maria começou a fallar do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando, entre grandes soluços que a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam enterrar nas mãos a face afflicta.
A culpa não fôra d'ella! não fôra d'ella! Elle devia ter perguntado áquelle homem que sabia toda a sua vida... Fôra sua mãi... Era horroroso dizel-o, mas fôra por causa d'ella que conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandez... E tinha vivido com elle quatro annos, como sua esposa, tão fiel, tão retirada de tudo e só occupada da sua casa, que elle ia casar com ella! Mas morrera na guerra com os allemães, na batalha de Saint-Privat. E ella ficára com Rosa, com a mãi já doente, sem recursos, depois de vender tudo... Ao principio trabalhára... Em Londres tinha procurado dar lições de piano... Tudo falhára, dois dias vivera sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com fome! com fome!
Ah, elle não podia perceber o que isto era!... Quasi fôra por caridade que as tinha repatriado para Paris... E ahi conhecera Castro Gomes. Era horrivel, mas que havia d'ella fazer! Estava perdida...
Lentamente escorregára do sofá, cahira aos pés de Carlos. E elle permanecia mmovel, mudo, com o coração rasgado por angustias differentes: era uma compaixão tremula por todas aquellas miserias soffridas, dôr de mãi, trabalho procurado, fome, que lh'a tornavam confusamente mais querida; e era o horror d'esse outro homem, o irlandez, que surgia agora, e que lh'a tornava de repente mais maculada...
Ella continuava fallando de Castro Gomes. Vivera tres annos com elle, honestamente, sem um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era estar quieta em casa. Elle é que a forçava a andar em ceias, em noitadas...
E Carlos não podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as mãos, que procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!...
- Oh não, não me mandes embora! gritou ella prendendo-se a elle anciosamente. Eu sei que não mereço nada! Sou uma desgraçada... Mas não tive coragem, meu amor! Tu és homem, não comprehendes estas coisas... Olha para mim! porque não olhas para mim? Um instante só, não voltes o rosto, tem pena de mim...
Não! elle não queria olhar. Temia aquellas lagrimas, o rosto cheio d'agonia. Ao calor do seio que arquejava sobre os seus joelhos, já tudo n'elle começava a oscillar, orgulhos, despeitos, dignidade, ciume... E então, sem saber, a seu pezar, as suas mãos apertaram as d'ella. Ella cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente: e anciosa implorava do fundo da sua miseria um instante de misericordia.
Oh, dize que me perdôas! Tu és tão bom! Uma palavra só... Dize só que não me odeias, e depois deixo-te ir... Mas dize primeiro... Olha ao menos para mim como d'antes, uma só vez!...
E eram agora os seus labios que procuravam os d'elle. Então a fraqueza em que sentia afundar-se todo o seu sêr encheu Carlos de cólera, contra si e contra ella. Sacudiu-a brutalmente, gritou:
- Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste, tu?
Largára-a, prostrada no chão. E de pé, deixava cahir sobre ella a sua queixa desesperada:
- É a tua mentira que nos separa, a tua horrivel mentira, a tua mentira sómente!
Ella ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma pallidez de desmaio.