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Ega teve um movimento d'espanto:

- Á irmã!... A que irmã?

O snr. Guimarães considerou Ega tambem com assombro. E abandonando-lhe lentamente a mão:

- A que irmã!? A irmã d'elle, á unica que tem, á Maria!

Cruges, que batia as solas no lagedo, enfastiado gritou da esquina:

- Bem, eu vou andando para o Gremio.

- Até logo!

O snr. Guimarães, no emtanto, passava os dedos calçados de pellica preta pelos longos fios da barba, fitando o Ega, n'um esforço de penetração. E quando Ega lhe travou do braço, pedindo-lhe para conversarem um pouco até ao Loreto, o democrata deu os primeiros passos com uma lentidão desconfiada.

- Eu parece-me, dizia o Ega sorrindo, mas nervoso, que nós estamos aqui a enrodilhar-nos n'um equivoco... Eu conheço o Maia desde pequeno, vivo até agora em casa d'elle, posso afiançar-lhe que não tem irmã nenhuma...

Então o snr. Guimarães começou a rosnar umas desculpas embrulhadas que mais enervavam, torturavam o Ega. O snr. Guimarães imaginava que não era segredo, que todas essas coisas da irmã estavam esquecidas, desde que houvera reconciliação...

- Como vi, ainda não ha muitos dias, o snr. Carlos da Maia com a irmã e com v. exc.ª, na mesma carruagem, no caes do Sodré...

- O quê! Aquella senhora! A que ia na carruagem?

- Sim! exclamou o snr. Guimarães irritado, farto emfim d'essa confusão em que se debatiam. Aquella mesma, a Maria Eduarda Monforte, ou a Maria Eduarda Maia, como quizer, que eu conheci de pequena, com quem andei muitas vezes ao collo, que fugiu com o Mac-Gren, que esteve depois com a besta do Castro Gomes... Essa mesma!

Era ao meio do Loreto sob o lampeão de gaz. E o snr. Guimarães de repente estacou, vendo os olhos do Ega esgazearem-se de horror, uma terrivel pallidez cobrir-lhe a face.

- V. exc.ª não sabia nada d'isto?

Ega respirou fortemente, arredando o chapéo da testa sem responder. Então o outro, embaçado, terminou por encolher os hombros. Bem, via que tinha feito uma tolice! A gente nunca se devia intrometter nos negocios alheios! Mas acabou-se! Imaginasse o snr. Ega que aquillo fôra um pesadêlo, depois da versalhada do sarau! Pedia desculpa sinceramente - e desejava ao snr. João da Ega muitissimo boas noites.

Ega, como a um clarão de relampago, entrevira toda a catastrophe: e agarrou avidamente o braço do snr. Guimarães, n'um terror que elle abalasse, desapparecesse,

levando para sempre o seu testemunho, esses papeis, o cofre da Monforte, e com elles a certeza – a certeza por que agora anciava. E através do Loreto, vagamente, foi balbuciando, justificando a sua emoção, para tranquillisar o homem, poder lentamente arrancar-lhe as coisas que soubesse, as provas, a verdade inteira.

- O snr. Guimarães comprehende... Isto são coisas muito delicadas, que eu suppunha absolutamente ignoradas de todos... De modo que fiquei embatucado, fiquei tonto, quando o ouvi assim de repente fallar d'ellas com essa simplicidade... Porque emfim, aqui para nós, essa senhora não passa em Lisboa por irmã de Carlos.

O snr. Guimarães atirou logo a mão n'um grande-gesto. Ah, bem! Então era jogo com elle? Pois tinha feito o snr. Ega perfeitamente... Com certeza eram coisas muito sérias, que necessitavam toda a sorte de vêos... Elle comprehendia, comprehendia muito bem!... E

realmente, dada a posição dos Maias em Lisboa, na sociedade, aquella senhora não era irmã que se apresentasse.

- Mas a culpa não a teve ella, meu caro senhor! Foi a mãi, foi aquella extraordinaria mãi que o Diabo lhe deu!...

Desciam o Chiado. Ega parou um momento, devorando o velho com olhos de febre:

- O snr. Guimarães conheceu muito essa senhora, a Monforte?

Intimamente! Já a conhecera em Lisboa - mas de longe, como mulher de Pedro da Maia. Depois viera essa tragedia, ella fugira com o italiano. Elle abalára tambem para Paris n'esse anno, com uma Clemence, uma costureira da Levaillant: e, umas coisas enfiando n'outras, negocios e desgraças, por lá ficára para sempre! Emfim, não era a sua vida que lhe ia contar... Só mais tarde encontrára a Monforte, uma noite, no baile Laborde: e d'ahi datavam as suas relações. A esse tempo já o italiano morrera n'um duello, e o velho Monforte espichára da bexiga. Ella estava então com um rapaz chamado Trevernnes -

n'uma casa bonita, no Parc Monceaux, em grande chic... Mulher extraordinaria! E não se envergonhava de confessar que lhe devia obrigações! Quando essa rapariga, a Clemence, que era um encanto, adoecera do peito, a Monforte trazia-lhe flôres, frutas, vinhos, fazia-lhe companhia, velava-a como um anjo...

Porque lá isso coração largo e generoso atá alli! Esta, a filha, a D. Maria, tinha então sete ou oito annos, linda como os amores... E houvera uma outra pequena do italiano, muito galantinha tarobem. Oh! muito galantinha tambem! Mas morrera em Londres, essa...

- E com esta Maria andei muitas vezes ao collo, meu caro senhor... Não sei se ella ainda se lembra d'uma boneca que eu lhe dei, que fallava, dizia Napoléon... Era no bello tempo do Imperio, até as desavergonhadas das bonecas eram imperialistas! Depois, quando ella estava em Tours, no convento, fui lá duas vezes com a mãi. Já então os meus principios me não permittiam entrar n'esses covis religiosos: mas emfim fui acompanhar a mãi... E

quando ella fugiu com o irlandez, o MacGren, foi commigo que a mãi veio ter, furiosa, a querer que eu chamasse o commissario de policia para se prender o irlandez. Por fim metteu-se n'um fiacre, foi para Fontainebleau, lá fez as pazes, viviam até juntos... Emfim uma série de trapalhadas.

Um suspiro cansado escapou-se do peito do Ega, que arrastava os passos, succumbido:

- E esta senhora, está claro, não sabia então de quem era filha...

O snr. Guimarães encolheu os hombros:

- Nem suspeitava que existissem Maias sobre a face da terra! A Monforte dissera-lhe sempre que o pai era um fidalgo austriaco com quem ella casára na Mudeira... Uma mixordia, meu caro senhor, uma mixordia!

- É horrivel! murmurou Ega.

Mas, dizia o snr. Guimarães, que podia tambem fazer a Monforte? Que diabo, era duro confessar á filha: «Olha que eu fugi a teu pai, e elle por causa d'isso matou-se!» Não tanto pela questão de pudor; a rapariga devia perceber que a mãi tinha amantes, ella mesma aos dezoito annos, coitadinha, já tinha um; mas por causa do tiro, do cadaver, do sangue...

-A mim mesmo! exclamou o snr. Guimarães, parando, alargando os braços na rua deserta. A mim mesmo nunca ella fallou do marido, nem de Lisboa, nem de Portugal.

Lembra-me até uma occasião em casa da Clemence, que eu alludi a um cavallo lazão, um cavallo de Pedro da Maia, em que ella costumava montar. Animal soberbo! Mas nem mencionei o marido, fallei só do cavallo. Pois senhores, bate com o leque em cima da mesa, grita como uma bicha: - Dites donc, mon cher, vous m'embêtez avec ces histoires de l'autre monde!... Com effeito, bem o podia dizer, eram historias do outro mundo! Para encurtar: estou convencido que nos ultimos tempos ella mesmo julgava que Pedro da Maia nunca existira. Uma insensata! Por fim até bebia... Mas acabou-se! Tinha grande coração, e portou-se muito bem com a Clemence. Parce sepultis!

- É horrivel! murmurou outra vez o Ega, tirando o chapéo correndo a mão tremula pela testa.

E agora o seu unico desejo era a accumulação incessante de provas, de detalhes. Fallou então d'esses papeis, d'esse cofre da Monforte. O snr. Guimarães não sabia o que elles continham; e não se admiraria se fossem apenas contas de modista, ou pedaços velhos do Figaro em que se fallava d'ella...

- É uma caixita pequena que a Monforte me deu, na vespera de partir para Londres com a filha. Era no tempo da guerra... Já a Maria vivia com o irlandez, tinha mesmo uma pequena, a Rosa. Depois veio a Communa, todos aquelles desastres. Quando a Monforte voltou de Londres eu estava em Marselha. Foi então que a pobre Maria se metteu com o Castro Gomes, creio que para não morrer de fome... Eu recolhi a Paris, mas não vi mais a Monforte, que já estava muito doente... Á Maria, collada então a essa besta do Castro Gomes, um pedante, um rastaquouère mesmo a calhar para a guilhotina, não tornei tambem a fallar. Se a encontrava era um comprimento de longe, como n'outro dia, quando a vi na carruagem com v. exc.ª e com o irmão... De sorte que fui ficando com os papeis. Nem a fallar a verdade, com estas coisas todas de politica, me lembrei mais d'elles. E agora ahi estão, ás ordens da familia.

- Se isso não fosse incommodo para v. exc.ª, acudiu Ega, eu passava agora pelo seu hotel e levava-os logo commigo...

- Incommodo nenhum! Estamos em caminho, é negocio que fica feito!

Algum tempo seguiram calados. O sarau decerto acabára. Um bater de carruagens atroava as descidas do Chiado. Junto d'elles passaram duas senhoras, com um rapaz que bracejava, fallando alto do Alencar. O snr. Guimarães tirára lentamente do bolso a charuteira: depois parando, para raspar um phosphoro:

- Então a D. Maria passa simplesmente por parenta?... E como soube ella? Como foi isso?

Ega, que caminhava com a cabeça cahida, estremeceu como se acordasse. E começou a tartamudear uma historia confusa, de que elle mesmo córava na sombra. Sim, Maria Eduarda passava por parenta. Fôra o procurador que descobrira. Ella rompera com o Castro Gomes, com todo o passado. Os Maias davam-lhe uma mezada; e vivia nos Olivaes, muito retirada, como filha d'um Maia que morrera na Italia. Todos gostaram muito d'ella, Affonso da Maia tinha grande ternura pela pequena...

E de repente indignou-se com estas invenções por onde arrastava já o nome do nobre velho, exclamou como se abafasse:

- Emfim, nem eu sei, um horror!

- Um drama! resumiu gravemente o snr. Guimarães.

E como estavam no Pelourinho rogou ao Ega que esperasse um momento emquanto elle corria acima buscar os papeis da Monforte.

Só, no largo, Ega ergueu as mãos ao céo n'um desabafo mudo d'aquella angustia em que caminhava, como um somnambulo, desde o Loreto. E a sua unica sensação, bem clara -

Are sens