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Carlos então recordou o que lhe contára o Taveira - as allusões mysteriosas do Damaso a um escandalo que se estava armando, uma bala que elle devia receber na cabeça... O

Damaso, portanto, tinha como certa a vinda do brazileiro, depois um duello...

- É necessario esmagar esse infame! exclamou Ega, subitamente furioso. Não ha segurança, não ha paz na nossa vida emquanto esse bandido viver!...

Carlos não respondeu. E o outro proseguia, transtornado, já todo pallido, deixando transbordar odios cada dia accumulados:

- Eu não o mato porque não tenho um pretexto!... Se tivesse um pretexto, uma insolencia d'elle, um olhar atrevido, era meu, esborrachava-o!... Mas tu precisas fazer

alguma coisa, isto não póde ficar assim! Não póde! É necessario sangue... Vê tu que infamia, uma carta anonyma!... Temos a nossa paz, a nossa felicidade, tudo exposto constantemente aos ataques do snr. Damaso. Não póde ser. Eu o que tenho pena é de não ter um pretexto! Mas tenl-o tu, aproveita, e esmaga-o!

Carlos encolheu vagamente os hombros:

- Merecia chicotadas, com effeito... Mas elle realmente só tem sido velhaco commigo por causa das minhas relações com essa senhora; e como isso é um caso acabado, tudo o que se prende com elle finda tambem. Parce sepultis... E no fim era elle que tinha razão, quando dizia que ella era uma intrujona...

Atirou uma punhada á mesa, ergueu-se, e com um sorriso amargo, n'um tedio infinito de tudo:

- Era elle, era o snr. Damaso Salcede que tinha razão!...

Toda a sua cólera revivera, mais aspera, a esta idéa. Olhou o relogio. Tinha pressa de a vêr, tinha pressa de a injuriar!...

- Escreveste-lhe? perguntou o Ega.

- Não, vou lá eu mesmo.

Ega pareceu espantado. Depois recomeçou a passear, calado, com os olhos no tapete.

Ia escurecendo quando Baptista voltou. Vira o snr. Castro Gomes apear-se no hotel e mandar descer as suas bagagens: - e a tipoia, para levar o menino aos Olivaes, esperava em baixo.

- Bem, adeus! disse Carlos procurando atarantadamente um par de luvas.

- Não jantas?

- Não.

D'ahi a pouco rodava pela estrada dos Olivaes. Já se accendera o gaz. E inquieto, no estreito assento, accendendo nervosamente cigarettes que não fumava, soffria já a perturbação d'aquelle encontro difficil e doloroso... Nem sabia mesmo como a havia de tratar, se por «minha senhora», se por «minha boa amiga», com uma superior indifferença.

E ao mesmo tempo sentia por ella uma compaixão indefinida, que o amollecia. Diante d'estes seus modos regelados, via-a já toda pallida, a tremer, com os olhos cheios d'agua. E

estas lagrimas que appetecera, agora que estava tão perto de as vêr correr, enchiam-no só de commoção e de dó... Durante um momento mesmo pensou em retroceder. Por fim seria muito mais digno escrever-lhe duas linhas altivas, sacudindo-a de si para sempre e seccamente! Poderia não lhe mandar o cheque, - affronta brutal d'homem rico. Apesar d'embusteira era mulher, cheia de nervos, cheia de phantasia, e amára-o talvez com desinteresse... Mas uma carta era mais digno. E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter dirigido, incisivas e precisas. Sim, devia-lhe ter dito - que se estava prompto a dar a sua vida a uma mulher que se lhe abandonára por paixão, estava decidido a não sacrificar nem os seus vagares a uma mulher que lhe cedera por profissão. Era mais simples, era terminante... E depois não a via, não teria de supportar a tortura das explicações e das lagrimas.

Então veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar, reflectir um instante, mais calmamente, no silencio das rodas. O cocheiro não ouviu: o trote largo da parelha continuou batendo a estrada escura. E Carlos deixou seguir, outra vez hesitante. Depois, á maneira que reconhecia, esbatidos na sombra, aquelles sitios onde tantas vezes passára com o coração em festa, quando a sua paixão estava em flôr, uma cólera nova voltava - menos contra a pessoa de Maria Eduarda, que contra essa mentira que fôra obra d'ella, e que vinha estragar irremediavelmente o encanto divino da sua vida. Era essa mentira que agora odiava

- vendo-a como uma coisa material e tangivel, de um peso enorme, feia e côr de ferro, esmagando-lhe o coração. Oh! Se não fosse essa coisa pequenina e inolvidavel que estava entre elles, como um indestructivel bloco de granito, poderia abrir-lhe novamente os seus braços, senão com a mesma crença pelo menos com o mesmo ardor! Esposa do outro ou amante do outro - no fim que importava? Não era por faltar aos beijos que lhe dera esse a consagração d'um padre, rosnada em latim - que a sua pelle estava mais polluida por elles, ou tinha a menos frescura? Mas havia a mentira, a mentira inicial, dita no primeiro dia em que fôra á rua de S. Francisco, e que como um fermento podre ficava estragando tudo d'ahi por diante, dôces conversas, silencios, passeios, sestas no calor da quinta, murmurios de beijos morrendo entre os cortinados côr d'ouro... Tudo manchado, tudo contaminado por aquella mentira primeira que ella dissera sorrindo, com os seus tranquillos olhos limpidos...

Abafava. Ia a descer a vidraça que faltava a correia - quando a tipoia parou de repente, na estrada solitaria... Abriu a portinhola. Uma mulher com um chale pela cabeça fallava ao cocheiro.

- Melanie!

- Ah, monsieur!

Carlos saltou precipitadamente. Era já proximo da quinta, na volta d'estrada, onde o muro fazia um recanto sob uma faia, defronte de sebes de piteiras resguardando campos d'olivedo. Carlos gritou ao cocheiro que seguisse e esperasse no portão da quinta. E ficou alli, no escuro, com Melanie encolhida no seu chale.

Que estava ella alli a fazer? Melanie parecia transtornada: contou que vinha procurar á villa uma carruagem, porque a senhora queria ir a Lisboa, ao Ramalhete... Ella julgára a tipoia vazia.

E apertava as mãos, dando as graças, com um immenso allivio. Ah! que felicidade, que felicidade ter elle vindo!... A senhora estava afflicta, nem jantára, perdida de chôro. O snr.

Castro Gomes apparecera lá inesperadamente... A senhora, coitadinha, queria morrer!

Então Carlos, caminhando rente ao muro, interrogou Melanie. Como viera o outro? que dissera? como se despedira?... Melanie não ouvira nada. O Snr. Castro Gomes e a senhora tinham conversado sós no pavilhão japonez. Á sahida é que vira o snr. Castro Gomes dizer adeus a madame, muito socegado, muito amavel, rindo, fallando de Niniche... A senhora, essa, parecia como morta, tão pallida! Quando o outro partiu, ia tendo um desmaio.

Estavam proximo do portão da Toca. Carlos retrocedeu, respirando fortemente, com o chapéo na mão. E agora todo o seu orgulho se ia sumindo sob a violencia da sua anciedade.

Queria saber! E perguntava, deixava Melanie nas coisas dolorosas da sua paixão... Dites toujours, Melanie, dites! Sabia a senhora que Castro Gomes estivera com elle no Ramalhete, lhe confessára tudo?...

Claramente que sabia, por isso chorava - dizia Melanie. Ah, ella bem repetira á senhora que era melhor contar a verdade! Era muito amiga d'ella, servia-a desde pequena, vira nascer a menina... E tinha-lh'o dito, até já nos Olivaes!

Carlos curvava a cabeça na escuridão do muro. Melanie tinha-lh'o dito! Assim ella e a criada discutiam ambas, acamaradadas, o embuste em que andava presa a sua vida! E

aquellas revelações de Melanie, que suspirava com o chale sobre o rosto, abatiam os ultimos pedaços d'esse sonho, que elle erguera tão alto, entre nuvens d'ouro. Nada restava.

Tudo jazia em estilhaços, no lodo immundo.

Um momento, com o coração cheio de fadiga, pensou em voltar a Lisboa. Mas para além d'aquelle negro muro estava ella, perdida de chôro, querendo morrer... E lentamente recomeçou a caminhar para o portão.

E agora, sem resistencia nenhuma do orgulho, fazia perguntas mais intimas a Melanie.

Porque é que Maria Eduarda não lhe dissera a verdade?

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