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Até me lembro que o anno passado...

Mas emmudeceu. O conde de Gouvarinho voltára-se, pousando a mão carinhosa no hombro de Carlos, desejando a sua impressão sobre o «nosso Rufino». Elle conde estava encantado! Encantado sobretudo com a variedade d'escala, aquella arte tão difficil de passar do solemne para o ameno, de descer das grandes rajadas para os brincados de linguagem.

Extraordinario!

- Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher, o Gladstone, o Canovas, outros muitos. Mas não são estes vôos, esta opulencia... É tudo muito sêcco, idéas e factos. Não entra n'alma! Vejam os amigos aquella imagem tão pujante, tão respeitosa, do Anjo da Esmola, descendo devagar, com as azas de setim... É de primeira ordem.

Ega não se conteve:

- Eu acho esse genio um imbecil.

O conde sorriu, como á tonteria d'uma criança:

- São opiniões...

E estendeu em redor as mãos ao Sousa Netto, ao Darque, ao Telles da Gama, a outros que se juntavam ao rancho intimo - emquanto os seus correligionarios, os seus collegas do Centro e da Camara, o Gonçalo, o Neves, o Vieira da Costa rondavam de longe, sem poder roçar pelo ministro que tinham creado, agora que elle conversava e ria com rapazes e senhoras da «sociedade». O Darque, que era parente do Gouvarinho, quiz saber como o amigo Gastão se ia dando com os encargos do Poder... O conde declarou para os lados que não fizera mais por ora do que passar em revista os elementos com que contava para atacar os problemas... De resto, em questões de trabalho, o ministerio fôra infelicissimo! O

presidente do conselho de cama com uma catarrheira, inutil para uma semana. Agora o collega da fazenda com as febres do Aterro...

- Está melhor? Já sae? foi em torno a pergunta cheia de cuidado.

- Está na mesma, vai ámanhã para o Dáfundo. Mas realmente esse não se acha de todo inutilisado. Ainda hontem eu lhe dizia:

«Você parte para o Dáfundo, leva os seus papeis, os seus documentos... Pela manhã dá os seus passeios, respira o bom ar... E á noite, depois de jantar, á luz do candieiro, entretem-se a resolver a questão de fazenda!»

Uma campainha retiniu. D. José Sequeira, escarlate d'azafama, veio, furando, annunciar a s. exc.ª o fim do intervallo - offerecer o braço á snr.ª condessa. Ao passar, ella lembrou a Carlos as suas «terças-feiras», com a delicada simplicidade d'um dever. Elle curvou-se em silencio. Era como se todo o passado, o sofá que rolava, a casa da titi em Santa Isabel, as tipoias em que ella deixava o seu cheiro de verbena - fossem coisas lidas por ambos n'um livro e por ambos esquecidas. Atraz, o marido seguiu, erguendo alto a cabeça e as lunetas, como representante do Poder n'aquella festa da Intelligencia.

- Pois senhores, disse o Ega afastando-se com Carlos, a mulherzinha tem topete!

- Que diabo queres tu? Atravessou a sua hora de tolice e de paixão, e agora continúa tranquillamente na rotina da vida.

- E na rotina da vida, concluiu Ega, encontra-se a cada passo comtigo, que a viste em camisa!... Bonito mundo!

Mas o Alencar appareceu no alto da escada, voltando do botequim e da genebra, com um brilho maior no olho cavo, de paletot no braço, já preparado para gorgear. E o marquez juntou-se a elles, abafado no cache-nez de sêda branca, mais rouco, queixando-se de que a cada minuto a garganta se lhe punha peor... Aquella canalha d'aquella garganta ainda lhe vinha a pregar uma!...

Depois, muito sério, considerando o Alencar:

- Ouve lá, isso que tu vaes recitar, a Democracia é política ou sentimento? Se é política, raspo-me. Mas se é sentimento, e a humanidade, e o santo operario, e a fraternidade, então fico, que d'isso gosto e até talvez me faça bem.

Os outros affirmaram que era sentimento. O poeta tirou o chapéo, passou os dedos pelos anneis fôfos da grenha inspirada:

-Eu vos digo, rapazes... Uma coisa não vai sem a outra, vejam vocês Danton!... Mas já não fallo emfim d'esses leões da

Revolução. Vejam vocês o Passos Manoel! Está claro, é necessario logica... Mas, tambem, caramba, sêbo para uma politica sem entranhas e sem um bocado de infinito!

Subitamente, por sobre o novo silencio da sala, um vozeirão mais forte que o do Rufino fez retumbar os grandes nomes de D. João de Castro e de Affonso d'Albuquerque...

Todos se acercaram da porta, curiosamente. Era um maganão gordo, de barba em bico e camelia na casaca, que, de mão fechada no ar como se agitasse o pendão das Quinas, lamentava aos berros que nós portuguezes, possuindo este nobre estuario do Tejo e tão formosas tradições de gloria, deixassemos esbanjar, ao vento do indifferentismo, a sublime herança dos avós!...

- É patriotismo, disse o Ega. Fujamos!

Mas o marquez reteve-os, gostando tambem de um bocado de Quinas. E foi o pobre marquez que o patriota pareceu interpellar, alçando na ponta dos botins o corpanzil rotundo, aos urros. Quem havia agora ahi, que, agarrando n'uma das mãos a espada e na outra a cruz, saltasse para o convés d'uma caravella a ir levar o nome portuguez através dos mares desconhecidos? Quem havia ahi, heroico bastante, para imitar o grande João de Castro, que na sua quinta de Cintra arrancára todas as arvores de fructo, tal a era a isenção da sua alma de poeta?...

- Aquelle miseravel quer-nos privar da sobremesa! exclamou Ega.

Em torno correram risos alegres. O marquez virou costas, enojado com aquella patriotice reles. Outros bocejavam por traz da mão, n'um tedio completo de «todas as nossas glorias». E Carlos, enervado, preso alli pelo dever de applaudir o Alencar, chamava o Ega para irem abaixo ao botequim espairecer a impaciencia - quando viu o Eusebiosinho que descia a escada, enfiando á pressa um paletot alvadio. Não o encontrara mais desde a infamia da Corneta, em que elle fôra «embaixador». E a cólera que tivera contra elle n'esse dia reviveu logo n'um desejo irresistivel de o espancar. Disse ao Ega:

- Vou aproveitar o tempo, emquanto esperamos pelo Alencar, a arrancar as orelhas áquelle maroto!

- Deixa lá, acudiu Ega, é um irresponsavel!

Mas já Carlos corria pelas escadas: Ega seguiu atraz, inquieto, temendo uma violencia.

Quando chegaram á porta, Eusebio mettera para os lados do Carmo. E alcançaram-no no largo da Abegoaria, áquella hora deserto, mudo, com dois bicos de gaz mortiços. Ao vêr Carlos fender assim sobre elle, sem paletot, de peitilho claro na noite escura, o Eusebio, encolhido, balbuciou atarantadamente: «Olá, por aqui...»

- Ouve cá, estupôr! rugiu Carlos, baixo. Então tambem andaste mettido n'essa maroteira da Corneta? Eu devia rachar-te os ossos um a um!

Agarrára-lhe o braço, ainda sem odio. Mas, apenas sentiu na sua mão de forte aquella carne mollenga e tremula, resurgiu n'elle essa aversão nunca apagada - que já em pequeno o fazia saltar sobre o Eusebiosinho, esfrangalhal-o, sempre que as Silveiras o traziam á quinta. E então abanou-o, como outr'ora, furiosamente, gozando o seu furor. O pobre viuvo, no meio das lunetas negras que lhe voavam, do chapéo coberto de luto que lhe rolára nas lages, dançava, escanifrado e desengonçado. Por fim Carlos atirou-o contra a porta d'uma cocheira.

- Acudam! Aqui d'el-rei, policia! rouquejou o desgraçado.

Já a mão de Carlos lhe empolgára as guelas. Mas Ega interveio:

- Alto! Basta! O nosso querido amigo já recebeu a sua dóse...

Elle mesmo lhe apanhou o chapéo. Tremendo, arquejando, de bruços, Eusebiosinho procurava ainda o guarda-chuva. E, para findar, a bota de Carlos atirada com nojo, estatelou-o nas pedras, para cima d'uma sargeta onde restavam immundicies e humidade de cavallo.

O largo permanecia deserto, com o gaz adormecendo nos candieiros baços.

Tranquillamente os dois recolheram ao sarau. No peristylo, cheio de luz e plantas, cruzaram-se com o patriota de barbas em bico, rodeado d'amigos, em caminho para o botequim, limpando ao lenço o pescoço e a face, exclamando com o cansaço radiante d'um triumphador:

- Irra! custou, mas sempre lhes fiz vibrar a corda!

Já o Alencar estaria gorgeando! Os dois amigos galgaram a escada. E com effeito Alencar apparecera no estrado, onde ardia ainda o candelabro de duas velas.

Esguio, mais sombrio n'aquelle fundo côr de canario, o poeta derramou pensativamente pelas cadeiras, pela galeria, um olhar encovado e lento: e um silencio pesou, mais enlevado, diante de tanta melancolia e de tanta solemnidade.

- A Democracia! annunciou o auctor d'Elvira com a pompa d'uma revelação.

Duas vezes passou pelos bigodes o lenço branco, que depois atirou para a mesa. E

levantando a mão n'um gesto demorado e largo:

Era n'um parque. O luar

Sobre os vastos arvoredos,

Cheios de amor e segredos...

Are sens