Rufino, no emtanto, com as mãos descahidas, confessava uma fragilidade de sua alma!
Apesar da poesia ambiente d'essa sua aldeia natal, onde a violeta em cada prado, o rouxinol em cada balseira provavam Deus irrefutavelmente, - elle fôra dilacerado pelo espinho da descrença! Sim, quantas vezes, ao cahir da tarde, quando os sinos da velha torre choravam no ar a Ave-Maria e no valle cantavam as ceifeiras, elle passára junto da cruz do adro e da cruz do cemiterio, atirando-lhes de lado, cruelmente, o sorriso frio de Voltaire...
Um largo fremito d'emoção passou. Vozes suffocadas de gozo mal podiam : murmurar
«muito bem, muito bem...»
Pois fôra n'esse estado, devorado pela duvida, que Rufino ouvira um grito d'horror resoar por sobre o nosso Portugal... Que succedera? Era a Natureza que atacava seus filhos!
- E lançando os braços, como quem se debate n'uma catastrophe, Rufino pintou a inundação... Aqui aluia um casal, ninho florido d'amores; além, na quebrada, passava o balar choroso dos gados; mais longe as negras aguas iam juntamente arrastando um botão de rosa e um berço!...
Os bravos partiram profundos e roucos de peitos que arfavam. E em torno de Carlos e do Ega sujeitos voltavam-se apaixonadamente uns para os outros, com um brilho na face, commungando no mesmo enthusiasmo: «Que rajadas!... Caramba!... Sublime!...»
Rufino sorria bebendo esta commoção, que era a obra do seu verbo. Depois, respeitosamente, voltou-se para as cadeiras reaes, solemnes e vazias...
Vendo que a cólera da Natureza rugia implacavel elle erguera os olhos para o natural abrigo, para o exaltado logar d'onde desce a salvação, para o Throno de Portugal! E de repente, deslumbrado, vira por sobre elle estenderam-se as azas brancas d'um anjo! Era o anjo da esmola, meus senhores! E d'onde vinha? d'onde recebera a inspiração da caridade?
d'onde sahia assim, com os seus cabellos d'ouro? Dos livros da sciencia? dos laboratorios chimicos? d'esses amphitheatros d'anatomia onde se nega covardemente a alma? Das sêccas escólas de philosophia que fazem de Jesus um precursor de Robespierre? Não! Elle ousára interrogar o anjo, submisso, com o joelho em terra. E o anjo da esmola, apontando o espaço divino, murmurára: «Venho d'além!»
Então pelos bancos apinhados correu um susurro d'enlevo. Era como se os estuques do tecto se abrissem, os anjos cantassem no alto. Um estremecimento devoto e poetico arrepiava as caias das senhoras.
E Rufino findava, com uma altiva certeza na alma! Sim, meus senhores! Desde esse momento, a duvida fôra n'elle como a nevoa que o sol, este radiante sol portuguez, desfaz nos ares... E agora, apesar de todas as ironias da sciencia, apesar dos escarneos orgulhosos d'um Benan, d'um Littré e d'um Spencer, elle, que recebera a confidencia divina, podia alli, com a mão sobre o coração, affirmar a todos bem alto - havia um céo!
- Apoiado! mugiu na coxia o padre sebento.
E por todo o salão, no aperto e no calor do gaz, os cavalheiros das Secretarias, da Arcada, da Casa Havaneza, berrando, batendo as mãos, affirmaram soberbamente o céo!
O Ega que ria, divertido, sentiu ao lado um som rouco de cólera. Era o Alencar, de paletot, de gravata branca, cofiando sombriamente os bigodes.
- Que te parece, Thomaz?
- Faz nojo! rugiu surdamente o poeta.
Tremia, revoltado! N'uma noite d'aquellas, toda de poesia, quando os homens de letras se deviam mostrar como são, filhos da democracia e da liberdade, vir aquelle pulha pôr-se alli a lamber os pés á familia real... Era simplesmente ascoroso!
Lá na fundo, junto aos degraus do tablado, ia um tumulto d'abraços, de comprimentos, em torno do Rufino, que reluzia todo de orgulho e suor. E pela porta os homens escoavam-se, afogueados, commovidos ainda, puxando das charuteiras. Então o poeta travou do braço do Ega:
- Ouve lá, eu vinha justamente procurar-te. É o Guimarães, o tio do Damaso, que me pediu para te ser apresentado... Diz que é uma coisa séria, muito séria... Está lá em baixo no botequim, com um grog.
Ega pareceu surprendido... Coisa séria!?
- Bem, vamos nós lá abaixo tomar tambem um grog! E que recitas tu logo, Alencar?
- A Democracia, foi dizendo o poeta pela escada, com certa reserva. Uma coisita nova, tu verás... São algumas verdades duras a toda essa burguezia...
Estavam á porta do botequim - e precisamente o snr. Guimaráes sahia, com o chapéo sobre o olho, de charuto accêso, abotoando a sobrecasaca. Alencar lançou a apresentação, com immensa gravidade:
- O meu amigo João da Ega... O meu velho amigo Guimarães, um bravo cá dos nossos, um veterano da Democracia.
Ega acercou-se d'uma mesa, puxou cortezmente um banco para o veterano da Democracia, quiz saber se elle preferia cognac ou cerveja.
- Tomei agora o meu grog de guerra, disse o snr. Guimarães com seccura, tenho para toda a noite.
Um criado dava uma limpadella lenta sobre o marmore da mesa. Ega ordenou cerveja.
E directamente, largando o charuto, passando a mão pelas barbas a retocar a magestade da face, o snr. Guimarães começou com lentidão e solemnidade:
- Eu sou tio do Damaso Salcede, e pedi aqui ao meu velho amigo Alencar para me apresentar a v. exc.ª, com o fim de o intimar a que olhe bem para mim e que diga se me acha cara de bebedo...
Ega comprehendeu, atalhou logo, cheio de franqueza e bonhomia:
- V. exc.ª refere-se a uma carta que seu sobrinho me escreveu...
- Carta que v. exc.ª dictou! Carta que v. exc.ª o forçou a assignar!
- Eu?...
- Affirmou-m'o elle, senhor!
Alencar interveio:
- Fallem vocês baixo, que diabo!... Isto é terra de curiosos...
O snr. Guimarães tossiu, chegou a cadeira mais para a mesa. Tinha estado, contou elle, havia semanas fóra de Lisboa por negocios da herança de seu irmão. Não vira o sobrinho, porque só por necessidade se encontrava com esse imbecil. Na vespera, em casa d'um antigo amigo, o Vaz Forte, deitára por acaso os olhos ao Futuro, um jornal republicano, bem escripto, mas frouxo de idéas. E avistára logo na primeira pagina, em typo enorme, sob esta rubrica aliás justa Coisas do highlife, a carta do sobrinho... Imagine o snr. Ega o seu furor! Alli mesmo, em casa do Forte, escrevera ao Damaso pouco mais ou menos n'estes termos: «Li a tua infame declaração. Se ámanhã não fazes outra, em todos os jornaes, dizendo que não tinhas intenção de me incluir entre os bebedos da tua familia, vou ahi e quebro-te os ossos um por um. Treme!» Assim lhe escrevera. E sabia o snr. João da Ega qual fôra a resposta do snr. Damaso?
- Tenho-a aqui, é um documento humano, como diz o amigo Zola! Aqui está... Grande papel, monogramma d'ouro, corôa de conde. Aquelle asno! Quer v. exc.ª que eu leia?
A um gesto risonho do Ega, elle mesmo leu, lentamente, e sublinhando:
- «Meu caro tio! A carta de que falla foi escripta pelo snr. João da Ega. Eu era incapaz de tal desacato á nossa querida família. Foi elle que me agarrou na mão, á força, para eu assignar: e eu, n'aquella atrapalhação, sem saber o que fazia, assignei para evitar fallatorios.
Foi um laço que me armaram os meus inimigos. O meu querido tio, que sabe como eu gósto de si, que até estava o anno passado com tenção, se soubesse a sua morada em Paris, de lhe mandar meia pipa de vinho de Collares, não fique pois zangado commigo. Bem
infeliz já eu sou! E se quizer procure esse João da Ega que me perdeu! Mas acredite que hei de tirar uma vingança que ha de ser fallada!
Ainda não decidi qual, n'esta atarantação; mas em todo o caso a nossa familia ha de ficar desenxovalhada, porque eu nunca admitti que ninguem brincasse com a minha dignidade...
E se o não fiz já antes de partir para Italia, se ainda não pugnei pela minha honra, é porque ha dias, com todos estes abalos, veio-me uma tremenda dysenteria, que estou que me não tenho nas pernas. Isto por cima dos meus males moraes!...» V. exc.ª ri-se, snr. Ega?
- Pois que quer v. exc.ª que eu faça? balbuciou o Ega por fim, suffocado, com os olhos em lagrimas. Rio-me eu, ri-se o Alencar, ri-se v. exc.ª. Isso é extraordinario! Essa dignidade, essa dysenteria...
O snr. Guimarães, embaçado, olhou o Ega, olhou o poeta que fungava sob os longos bigodes, e terminou por dizer:
- Com effeito, a carta é d'uma cavalgadura... Mas o facto permanece...
Então Ega appellou para o bom senso do snr. Guimarães, para a sua experiencia das coisas d'honra. Comprehendia elle que dois cavalheiros, indo desafiar um homem a sua casa, lhe agarrem no pulso, o forcem violentamente a assignar uma carta em que elle se declara bebedo?...
O snr. Guimarães, agradado com aquella deferencia pelo seu tacto e pela sua experiencia, confessou que o caso, pelo menos em Paris, seria pouco natural.