- É que você é um sensual, disse Craft. E a proposito de sensualidade e de Babylonia, quer vir você almoçar ao Bragança? Eu tenho de lá encontrar um inglez, o meu homem das minas... Mas havemos d'ir pela rua do Ouro, que quero trepar um instante á caverna do meu procurador... E a caminho, que é meio dia!
Deixaram o Eusebiosinho, em baixo na sala, ageitando as suas lugubres lunetas negras diante dos telegrammas. E apenas sahira o pateo, Craft travou do braço de Carlos, e disselhe que as coisas sérias a respeito de Santa Olavia - era o visivel, profundo desgosto do avô por elle não ter lá apparecido.
- Seu avô não me disse nada, mas eu sei que elle está muitissimo magoado com você.
Não ha desculpa, são umas horas de viagem... Você sabe como elle o adora... Que diabo!
Est modus in rebus.
- Com effeito, murmurou Carlos. Eu devia ter lá ido... Que quer você, amigo?... Emfim acabou-se, é necessario fazer um esforço!... Talvez parta para a semana com o Ega.
- Sim, homem, dê-lhe esse alegrão... Esteja lá umas semanas...
- Est modus in rebus. Hei de vêr se lá estou uns dias.
A caverna do procurador era defronte do Monte-Pio. Carlos esperava, havia momentos, dando por diante das lojas uma volta lenta - quando de repente avistou Melanie, a sahir o portão do Monte-Pio, com uma matrona gorda, de chapéo rôxo. Surprehendido, atravessou a rua. Ella estacou como apanhada, fazendo-se toda vermelha; e nem deixou vir a pergunta; balbuciou logo que Madame lhe déra licença para vir a Lisboa, e ella andava acompanhando aquella amiga... Uma velha caleche, de parelha branca, estava encalhada alli, contra o passeio. Melanie saltou para dentro, á pressa. A traquitana rodou aos solavancos para o Terreiro do Paço.
Carlos via-a desapparecer, pasmado. E Craft, que voltára, olhando tambem, reconheceu no lamentavel calhambeque a caleche do Torto, dos Olivaes, onde elle ás vezes costumava vir «janotar a Lisboa».
- Era alguem lá da Toca? perguntou.
Uma criada, disse Carlos, ainda espantado d'aquelle estranho embaraço de Melanie.
E mal tinham dado alguns passos, Carlos, parando, baixando a voz no rumor da rua:
- Ouça lá! O Eusebiosinho disse-lhe alguma coisa a meu respeito, Craft?
O outro confessou que Eusebiosinho, apenas lhe apparecera no quarto, rompera logo, mascando as palavras, a informal-o da mysteriosa vida de Carlos nos Olivaes...
- Mas eu fil-o calar, acrescentou Craft, declarando-lhe que era tão pouco curioso que nem mesmo quizera lêr nunca a Historia Romana... Em todo o caso você deve ir a Santa Olavia.
Carlos, com effeito, logo n'essa noite fallou a Maria da visita que devia ao avô. Ella, muito séria, aconselhou-lh'a tambem, arrependida de o ter retido assim, egoisticamente e tanto tempo, longe dos outros que o amavam.
- Mas ouve, querido, não é por muito tempo, não?
- Por dois ou tres dias, quando muito. E naturalmente, trago até o avô. Não está lá a fazer nada, e eu não estou para a massada de voltar lá...
Maria então lançou-lhe os braços ao pescoço, e baixo, timidamente, confessou-lhe um grande desejo que tinha... Era vêr o Ramalhete! Queria visitar os quartos d'elle, o jardim, todos esses recantos, onde tantas vezes elle pensara n'ella, e se desesperára, sentindo-a distante e inaccessivel...
- Dize, queres? Mas é necessario que seja antes de vir teu avô. Queres?
- Acho um encanto! Ha só um perigo. É eu não te deixar sahir mais e ficar a devorar-te na minha caverna.
- Prouvera a Deus!
Combinaram então que ella fosse jantar ao Ramalhete, no dia da partida de Carlos para Santa Olavia. Á noitinha levava-o no coupé a Santa Apolonia; depois seguia para os Olivaes.
Foi no sabbado. Carlos veio muito cedo para o Ramalhete: e o seu coração batia com a deliciosa perturbação d'um primeiro encontro, quando sentiu parar a carruagem de Maria e os seus vestidos escuros roçarem o velludo côr de cereja que forrava a escada discreta dos seus quartos. O beijo que trocaram, na ante-camara, teve a profunda doçura d'um primeiro beijo!
Ella foi logo ao toucador tirar o chapéo, dar um geito ao cabello. Elle não cessava de a beijar; abraçava-a pela cinta; e com os rostos juntos sorriam para o espelho, enlevados no brilho da sua mocidade. Depois, impaciente, curiosa, ella percorreu os quartos, miudamente, até á alcova de banho; leu os títulos dos livros, respirou o perfume dos frascos, abriu os cortinados de sêda do leito... Sobre uma commoda Luiz XV havia uma salva de prata, transbordando de retratos que Carlos se esquecera de esconder, a coronella d'hussards d'amazona, madame Rughel decotada, outras ainda. Ella mergulhou as mãos, com um sorriso triste, na profusão d'aquellas recordacões... Carlos, rindo, pediu-lhe que não olhasse «esses enganos do seu coração».
Porque não? dizia Maria, séria. Sabia bem que elle não descera das nuvens, puro como um seraphim. Havia sempre photographias no passado d'um homem. De resto tinha a certeza que nunca amára as outras como a sabia amar a ella.
- Até é uma profanação fallar em amor quando se trata d'essas coisas d'acaso, murmurou Carlos. São quartos de estalagem onde se dorme uma vez...
No emtanto Maria considerava longamente a photograptfia da coronella d'hussards.
Parecia-lhe bem linda! Quem era? Uma franceza?
- Não, de Vienna. Mulher d'um correspondente meu, homem de negocios... Gente tranquilla, que vivia no campo...
- Ah, Viennense... Dizem que tem um grande encanto as mulheres de Vienna!
Carlos tirou-lhe a photographia da mão. Para que haviam de fallar d'outras mulheres?
Existia em todo o vasto mundo uma mulher unica, e elle tinha-a alli abraçada sobre o seu coração.
Foram então percorrer todo o Ramalhete, até ao terraço. Ella gostou sobretudo do escriptorio d'Affonso, com os seus damascos de camara de prelado, a sua feição severa de paz estudiosa.
- Não sei porque, murmurou dando um olhar lento ás estantes pesadas e ao Christo na cruz, não sei porque, mas teu avô faz-me medo!
Carlos riu. Que tonteria! O avô se a conhecesse, fazia-lhe logo a côrte rasgadamente...
O avô era um santo! E um lindo velho!
- Teve paixões?
- Não sei, talvez... Mas creio que o avô foi sempre um puritano.