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No emtanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na plateia. Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeçou no joelho do Ega: outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permissão a s. exc.ª Elle não escutava, não percebia: os seus

olhos, um momento errantes, tinham-se emfim cravado no camarote da Cohen e não se desviaram de lá, n'uma emoção que o empallidecia.

Não a tornára a encontrar desde Cintra, onde só a via de longe, com vestidos claros sob o verde das arvores; e agora alli, toda de preto, em cabello, com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura do seu collo, ella era outra vez a sua Rachel, dos tempos divinos da villa Balzac. Era assim que elle, todas as noites em S. Carlos, a contemplava do fundo da frisa de Carlos, com a cabeça encostada ao tabique, saturado de felicidade. Lá tinha a sua luneta d'ouro, presa por um fio d'ouro. Parecia mais pallida, mais delicada, com o longo quebranto dos olhos pisados, o seu ar de romance e de lirio meio murcho: e como então os seus cabellos magnificos e pesados cahiam habilmente n'uma massa meia solta sobre as costas, n'um desalinho de nudez. Pouco a pouco, entre o afinar de rebecas e o rumor das cadeiras Ega revia, n'uma onda de recordações que o suffocava, o grande leito da villa Balzac, certos beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa á borda do sofá, e a melancolia deliciosa das tardes, quando ella sahia furtivamente, coberta de véos, e elle ficava, cansado, no crepusculo poetico do quarto, cantarolando a Traviata...

- V. exc.ª dá licença, snr. Ega?

Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira. Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o snr. Sonsa Netto. O panno subira. Á borda da rampa um lacaio, piscando o olho á Plateia, fazia confidencias sobre a patrôa, de espanejador debaixo do braço. E Cohen, agora de pé, enchia o meio do camarote, cofiando a suissas com um correr lento da mão bem tratada, onde reluzia um diamante.

Ega então, n'um soberbo alarde d'indifferença, cravou o monoculo no palco. O lacaio abalára espavorido, a um repique furioso de sineta; e uma megera azeda, de roupão verde e touca á banda, rompera de dentro, meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida que batia o tacão, se esganiçava: «Pois hei de amal-o sempre! hei de amal-o sempre!»

Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e o Damaso, com as cabeças chegadas como em Cintra, cochichavam n'um sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu n'um immenso odio ao Damaso! Collado á umbreira da porta, rilhava os dentes, n'um desejo de subir, escarrar-lhe na bochecha gorda.

E não desviava d'elle os olhos, que dardejavam. Na scena, um velho general, gottoso e resmungão, sacudia um jornal, gritava pela sua tapioca. A Plateia ria, o Cohen ria. E n'esse momento Damaso, que se debruçára no camarote com as mãos de fóra, calçadas de gris-perle, descobriu o Ega, sorriu, atirou-lhe como em Cintra um acenosinho petulante, muito d'alto, na ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um insulto. E ainda na vespera aquelle covarde se lhe agarrára ás mãos, tremendo todo, a gritar «que o salvasse!...»

Subitamente, com uma idéa, palpou por sobre o bolso a carteira onde na vespera guardára a carta do Damaso... «Eu t'arranjo!» murmurou elle. E abalou, desceu a rua da Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da praça de Camões, n'um grande portão que uma lanterna alumiava. Era a redacção da Tarde.

Dentro do pateo d'esse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz, cruzou um sujeito encatarrhoado que lhe disse que o Neves estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, politico, director da Tarde, fôra, havia annos, n'umas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e desde esse verão alegre em que o Neves lhe ficára sempre devendo tres moedas, os dois tratavam-se por tu.

Foi encontral-o n'uma vasta sala alumiada por bicos de gaz sem globo, sentado na borda n'uma mesa atulhada de jornaes, com o chapéo para a nuca, discursando a alguns cavalheiros de provincia que o escutavam de pé, n'um respeito de crentes. N'um vão de janella, com dois homens d'idade, um rapaz esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e uma cabelleira crespa que parecia erguida n'uma rajada de vento, bracejava como um moinho na crista d'um monte. E, abancado, outro sujeito já calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel.

Ao vêr o Ega (um intimo do Gouvarinho) alli na redacção, n'aquella noite de intriga e de crise, Neves cravou n'elle os olhos tão curiosos, tão inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:

- Nada de politica, negocio particular... Não te interrompas. Depois fallaremos.

O outro findou a injuria que estava lançando ao José Bento, «essa grande besta que fôra metter tudo no bico da amiga do Sousa e Sá, o par do reino» - e na sua impaciencia saltou da mesa, travou do braço do Ega arrastando-o para um canto:

- Então que é?

- É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi offendido ahi por um sujeito muito conhecido. Nada d'interessante. Um paragrapho immundo na Corneta do Diabo, por uma questão de cavallos... O Maia pediu-lhe explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas, n'uma carta que quero que vocês publiquem.

A curiosidade do Neves flammejou:

- Quem é?

- O Damaso.

O Neves recuou d'assombro:

- O Damaso!? Ora essa! Isso é extraordinario! Ainda esta tarde jantei com elle! Que diz a carta?

- Tudo. Pede perdão, declara que estava bebedo, que é de profissão um bebedo...

O Neves agitou as mãos com indignação:

- E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Damaso, nosso amigo politico!... E

que não fosse, não é questão de partido, é de decencia! Eu faço lá isso!... Se fosse uma acta de duello, uma coisa honrosa, explicações dignas... Mas uma carta em que um homem se declara bebedo! Tu estás a mangar!

Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na face, teve ainda uma revolta áquella idéa do Damaso se declarar bebedo.

- Isso não póde ser! É absurdo! Ahi ha historia... Deixa vêr a carta.

E, mal relanceára os olhos ao papel, á larga assignatura floreada, rompeu n'um alarido:

- Isto não é o Damaso nem é letra do Damaso!... «Salcede»! Quem diabo é «Salcede»?

Nunca foi o meu Damaso!

- É o meu Damaso, disse o Ega. O Damaso Salcede, um gordo...

O outro atirou os braços ao ar:

- O meu é o Guedes, homem, o Damaso Guedes! Não ha outro! Que diabo, quando se diz o Damaso é o Guedes!...

Respirou com grande allivio:

- Irra, que me assustaste! Olha agora n'este momento, com estas coisas de ministerio, uma carta d'essas escripta pelo Guedes... Se é o Salcede, bem, acabou-se! Espera lá... Não é um gordalhufo, um janota que tem uma propriedade em Cintra? Isso! Um maganão que nos entalou na eleição passada, fez gastar ao Silverio mais de trezentos mil reis... Perfeitamente,

ás ordens... Ó Pereirinha, olhe aqui o snr. Ega. Tem ahi uma carta para sahir ámanhã, na primeira pagina, typo largo...

O snr. Pereirinha lembrou o artigo do snr. Vieira da Costa sobre a «Reforma das Pautas».

- Vai depois! gritou o Neves. As questões de honra antes de tudo!

E voltou ao seu grupo onde agora se fallava do conde de Gouvarinho, saltou para a borda da mesa, lançou logo o seu vozeirão de chefe, affirmando no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar!

Ega accendeu o charuto, ficou um momento considerando aquelles sujeitos que pasmavam para o verbo do Neves. Eram decerto deputados que a crise arrastára a Lisboa, arrancára á quietação das villas e das quintas. O mais novo parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme face a estourar de sangue, jocundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo de porco. Outro, esguio, com o paletot solto sobre as costas em arco, tinha um queixo duro e macisso de cavallo: e dois padres muito rapados, muito morenos, fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar, conjunctamente apagado e desconfiado, que marca os homens de provincia, perdidos entre as tipoias e as intrigas da Capital. Vinham alli ás noites, áquelle jornal do partido, saber as novas, beber do fino, uns com esperanças de empregos, outros por interesses de terriola, alguns por ociosidade. Para todos o Neves era um «robusto talento»; admiravam-lhe a verbosidade e a tactica; decerto gostavam de citar nas lojas das suas villas o amigo Neves, o jornalista, o da Tarde...

Mas, através d'essa admiração e do prazer de roçar por elle, percebia-se-lhes um vago medo que aquelle «robusto talento» lhes pedisse, n'um vão de janella, duas ou tres moedas. O

Neves no emtanto celebrava o Gouvarinho como orador. Não que tivesse os rasgos, a pureza, as bellas syntheses historicas do José Clemente! Nem a poesia do Rufino! Mas não havia outro para as piadas que ferem e que ficam cravadas, alli a arder, na pelle do touro! E

era a grande coisa na Camara - ter a farpa, sabêl-a ferrar!

- Ó Gonçalo, tu lembras-te da piada do Gouvarinho, a do trapezio? gritou elle virando-se para a janella, para o rapaz de jaquetão claro.

O Gonçalo, cujos olhos pretos refulgiram de agudeza e malicia, estendeu o pescoço magro n'um collarinho muito decotado, lançou de lá:

- A do trapezio? Divina! Conta á rapaziada!

A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, á espera da «do trapezio». Fôra na amara dos Pares, na reforma da instrucção.

Estava fallando o Torres Valente, esse maluco que defendia a gymnastica dos collegios e queria as meninas a fazerem a prancha.

Gouvarinho ergue-se e atira-lhe esta:

«Snr. presidente, direi uma palavra só. Portugal sahirá para sempre da senda do progresso, em que tanto se tem illustrado, no dia em que nós fôrmos ao ensino, com mão impia, substituir a cruz pelo trapezio!»

Are sens