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- Que tolice, que tolice!

Vinham rodando ao comprido das casas, por diante da fabrica do gaz. Um americano passou alumiado, com senhoras vestidas de claro. N'aquella noite de verão e d'estrellas, havia gente vagueando tranquillamente entre as arvores. Ella continuava a chorar.

Aquelle pranto triste, lento, correndo a seu lado, começou a commovel-o; e ao mesmo tempo quasi lhe queria mal por ella não reter essas lagrimas infindaveis que laceravam o seu coração... E elle que estava tão tranquillo, no Ramalhete, na sua poltrona, sorrindo a tudo, n'uma deliciosa lassidão!

Tomou-lhe a mão, querendo calmal-a, apiedado, e já impaciente.

- Realmente não tem razão. É absurdo... Tudo isto é para seu bem...

Ella leve emfim um movimemto, enxugou os olhos, assoou-se doloridamente por entre longos soluços... E de repente, n'um arranque de paixão, atirou-lhe os braços ao pescoço, prendendo-se a elle com desespero, esmagando-o contra o seu seio.

- Oh meu amor, não me deixes, não me deixes! Se tu soubesses! És a única felicidade que eu tenho na vida... Eu morro, eu mato-me!... Que te fiz eu? Ninguem sabe do nosso amor... E que soubesse! Por ti sacrifico tudo, vida, honra,tudo! tudo!...

Molhava-lhe a face com o resto das suas lagrimas; e elle abandonava-se, sentindo aquelle corpo sem collete, quente e como nú, subir-lhe para os joelhos, collar-se ao seu, n'um furor de o repossuir, com beijos sôfregos, furiosos, que o suffocavam... Subitamente a tipoia parou. E um momento ficaram assim - Carlos immovel, ella cahida sobre elle e arquejando.

Mas a tipoia não continuava. Então Carlos desprendeu um braço, desceu o vidro; e viu que estavam defronte do Ramalhete. O homem obedecendo á ordem, dera a volta pelo Aterro, devagar, subira a rampa, retrocedera á porta da casa. Durante um instante Carlos teve a tentação de descer, acabar alli bruscamente aquelle longo tormento. Mas pareceu-lhe uma brutalidade. E desesperado, detestando-a, berrou ao cocheiro:

- Outra vez ao Aterro, anda sempre!...

A tipoia deu na rua estreita uma volta resignada, tornou a rolar; de novo as pedras da calçada fizeram tilintir os vidros; de novo, mais suavemente, desceram a rampa de Santos.

Ella recomeçára os seus beijos. Mas tinham perdido a chamma que um instante os fizera quasi irresistiveis. Agora Carlos sentia só uma fadiga, um desejo infinito de voltar ao seu quarto, ao repouso de que ella o arrancára para o torturar com estas recriminações, estes ardores entre lagrimas... E de repente, emquanto a condessa balbuciava, como tonta, pendurada do seu pescoço, - elle viu surgir n'alma, viva e resplandecente, a imagem de Maria Eduarda, tranquilla áquella hora na sua sala de reps vermelho, fazendo serão, confiando n'elle, pensando n'elle, relembrando as felicidades da vespera, quando a Toca, cheia de seus amores, dormia, branca entre as arvores... Teve então horror á Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repelliu-a para o canto do coupé.

- Basta! Tudo isto é absurdo... As nossas relações estão acabadas, não temos mais nada que nos dizer!

Ella ficou um instante como atordoada. Depois estremeceu, teve um riso nervoso, reppelliu-o tambem, phreneticamente, pisando-lhe o braço.

- Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brazileira! Eu conheço-a, é uma aventureira que tem o marido arruinado, e precisa quem lhe pague as modistas!...

Elle voltou-se, com os punhos fechados, como para a espancar; e na tipoia escura, onde já havia um vago cheiro de verbena, os olhos d'ambos, sem se vêrem, dardejavam o odio que os enchia... Carlos bateu raivosamente no vidro. A tipoia não parou. E a Gouvarinho, do outro lado, furiosa, magoando os dedos, procurava descer a vidraça.

- É melhor que sáia! dizia ella suffocada. Tenho horror de me achar aqui, ao seu lado!

Tenho horror! Cocheiro! cocheiro!

O calhambeque parou. Carlos pulou para fóra, fechou d'estalo a portinhola; e sem uma palavra, sem erguer o chapéo, virou costas, abalou a grandes passadas para o Ramalhete, tremulo ainda, cheio d'idéas de rancor, sob a paz da noite estrellada.

IV

Foi n'um sabbado que Affonso da Maia partiu para Santa Olavia. Cedo n'esse mesmo dia, Maria Eduarda, que o escolhera por ser de boa estreia, installára-se nos Olivaes. E

Carlos, voltando de Santa Apolonia, onde fôra acompanhar o avô, com o Ega, dizia-lhe alegremente:

- Então aqui ficamos nós sós a torrar, na cidade de marmore e de lixo...

- Antes isso, respondeu o Ega, que andar de sapatos brancos, a scismar, por entre a poeirada de Cintra!

Mas no domingo, quando Carlos recolheu ao Ramalhete ao anoitecer - Baptista annunciou que o snr. Ega tinha partido n'esse momento para Cintra, levando apenas livros e umas escovas embrulhadas n'um jornal... O snr. Ega tinha deixado uma carta. E tinha dito:

«Baptista, vou pastar.»

A carta, a lapis, n'uma larga folha d'almasso, dizia: «Assaltou-me de «repente, amigo, juntamente com um horror á caliça de Lisboa, uma saudade «infinita da natureza e do verde. A porção d'animalidade que ainda resta no meu «sêr civilisado e recivilisado precisa urgentemente d'espolinhar-se na relva, beber «no fio dos regatos, e dormir balançada n'um ramo de castanheiro. O solicito «Baptista que me remetta ámanhã pelo omnibus a mala com que eu não quiz «sobrecarregar a tipoia do Mulato. Eu demoro-me apenas tres ou quatro

«dias. O tempo de cavaquear um bocado com o Absoluto no alto dos «Capuchos, e vêr o que estão fazendo os myosotis junto á meiga fonte dos Amores...»

- Pedante! rosnou Carlos, indignado com o abandono ingrato em que o deixava o Ega.

E atirando a carta:

- Baptista! O snr. Ega diz ahi que lhe mandem uma caixa de charutos, dos Imperiales.

Manda-lhe antes dos Flôr de Cuba. Os Imperiales são um veneno. Esse animal nem fumar sabe!

Depois de jantar Carlos percorreu o Figaro, folheou um volume de Byron, bateu carambolas solitarias no bilhar, assobiou malagueñas no terrasso - e terminou por sahir, sem destino, para os lados do Aterro. O Ramalhete entristecia-o, assim mudo, apagado, todo aberto ao calor da noite. Mas insensivelmente, fumando, achou-se na rua de S.

Francisco. As janellas de Maria Eduarda estavam tambem abertas e negras. Subiu ao andar do Cruges. O menino Victorino não estava em casa...

Amaldiçoando o Ega, entrou no Gremio. Encontrou o Taveira, de paletot ao hombro, lendo os telegrammas. Não havia nada novo por essa velha Europa; apenas mais uns Nihilistas enforcados; e elle Taveira ia ao Price...

- Vem tu tambem d'ahi, Carlinhos! Tens lá uma mulher bonita que se mette na agua com cobras e crocodilos... Eu pello-me por estas mulheres de bichos!... Que esta é difficil, traz um chulo... Mas eu já lhe escrevi: e ella faz-me um bocado d'olho de dentro da tina.

Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo fallou-lhe logo do Damaso. Não tornára a ver essa flôr? Pois essa flôr andava apregoando por toda a parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhe dera por um amigo explicações humildes, covardes... Terrivel, aquelle Damaso!

Tinha figura, interior, e natureza de pélla! Com quanto mais força se atirava ao chão, mais elle resaltava para o ar, triumphante!...

- Em todo o caso é uma rez traiçoeira, e deves ter cautela com elle...

Carlos encolheu os hombros, rindo.

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