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Justamente Ega erguera-se com o papel na mão e caminhava para o piano, devagar, relendo baixo.

- Ficou optimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em fórma de carta ao Carlos, é mais correcto. Você depois copia e assigna.

Ouça lá: «Exc.mo snr... Está claro, você dá-lhe excellencia, porque é um documento d'honra... Exc.mo snr. - Tendo-me v. exc.ª, por intermédio dos seus amigos João da Ega e Victorino Cruges, manifestado a indignação que lhe causára um certo artigo da Corneta do Diabo de que eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicação, venho declarar francamente a v. exc.ª que esse artigo, como agora reconheço, não continha senão falsidades e incoherencias: e a minha desculpa unica está em que o compuz e enviei á redacção da Corneta no momento de me achar no mais completo estado d'embriaguez...»

Parou. E nem se voltou para o Damaso, que deixára pender os braços, rolar o charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando o monoculo:

- Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim por ser justamente a unica maneira de resalvar a dignidade do nosso Damaso.

E desenvolveu a sua idéa, mostrando quanto era generosa e habil - emquanto o Damaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem elle queriam que o Damaso n'uma carta (que se podia tornar publica) declarasse «que calumniára por ser calumniador».

Era necessario, pois, dar á calumnia uma d'essas causas fortuitas e ingovernaveis que tiram a responsabilidade ás acções. E que melhor, tratando-se d'um rapaz mundano e femeeiro, do que estar bebedo?... Não era vergonha para ninguem embebedar-se... O proprio Carlos, todos elles alli, homens de gosto e de honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos romanos, onde isso era uma hygiene e um luxo, muitos grandes homens na Historia bebiam de mais. Em Inglaterra era tão chic, que Pitt, Fox e outros nunca fallavam na Camara dos communs senão aos bordos. Musset, por exemplo, que bebedo! Emfim a Historia, a Litteratura, a Politica, tudo fervilhava de piteiras... Ora, desde que o Damaso se declarava borracho, a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que apanhára uma carraspana e que commettera uma indiscrição... Nada mais!

- Pois não te parece, Cruges?

- Sim, talvez, que estava bebedo, murmurou o maestro timidamente.

- Pois não lhe parece a você, francamente, Damaso?

- Sim, que estava bebedo, balbuciou o desgraçado.

Immediatamente Ega retomou a leitura: «Agora que voltei a mim reconheço, como sempre renheci e proclamei, que é v. exc.ª um caracter absolutamente nobre; e as outras pessoas, que n'esse momento d'embriaguez ousei salpicar de lama, são-me só merecedoras de veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a succeder soltar eu alguma palavra offensiva para v. exc.ª não lhe devia dar v. exc.ª, ou aquelles que a escutassem, mais importancia do que a que se dá a uma involuntaria baforada d'alcool - pois que, por um habito hereditario que reapparece frequentemente na minha familia, me acho repetidas vezes em estado de embriaguez... De v. exc.ª, com toda a estima etc....» Rodou sobre os tacões, pousou o rascunho na mesa - e accendendo o charuto ao lume do Damaso, explicou com amizade, com bonhomia, o que o determinára áquella confissão de bebedeira incorrigivel e palreira. Fôra ainda o desejo de garantir a tranquillidade do «nosso Damaso».

Attribuindo todas as imprudencias em que pudesse cahir a um habito d'intemperança

hereditaria, de que tinha tão pouca culpa como de ser baixo e gordo, o Damaso punha-se para sempre ao abrigo das provocações de Carlos...

- Você, Damaso, tem genio, tem lingua... Um dia esquece-se, e no Gremio, sem querer, na cavaqueira depois do theatro, lá lhe escapa uma palavra contra Carlos... Sem esta precaução, ahi recomeça a questão, o escarro, o duello... Assim já Carlos não se póde queixar. Lá tem a explicação que tudo cobre, uma gotta de mais, a gotta tomada por impulso de borrachice hereditaria... Você alcança d'este modo a coisa que mais se appetece n'este nosso seculo XIX - a irresponsabilidade!... E depois para a sua família não é ergonha, porque você não tem familia. Em resumo, convem-lhe?

O pobre Damaso escutava-o, esmagado, enervado, sem comprehender aquellas roncantes phrases sobre «a hereditariedade», sobre «o seculo XIX». E um unico sentimento vivo o dominava, acabar, reentrar na sua paz pachorrenta, livre de floretes e de escarros.

Encolheu os hombros, sem força:

- Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar fallatorios.

E abancou, metteu um bico novo na penna, escolheu uma folha de papel em que o monogramma luzia mais largo, começou a copiar a carta na sua maravilhosa letra, com finos e grossos, d'uma nitidez de gravura em aço.

Ega no emtanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava em torno da mesa, seguindo sôfregamente as linhas que traçava a mão applicada do Damaso, ornada d'um grosso annel d'armas. E durante um momento atravessou-o um susto... Damaso parára, com a penna indecisa. Diabo! Acordaria emfim, no fundo de toda aquella gordura balofa, um resto escondido de dignidade, de revolta?... Damaso alçou para elle os olhos embaciados:

- Embriaguez é com n ou com m?

- Com um m, um m só, Damaso! acudiu Ega affectuosamente. Vai muito bem... Que linda letra você tem, caramba!

E o infeliz sorriu á sua propria letra - pondo a cabeça de lado, no orgulho sincero d'aquella soberba prenda.

Quando findou a cópia foi Ega que conferiu, pôz a pontuação. Era necessario que o documento fosse chic e perfeito.

- Quem é o seu tabellião, Damaso?

- O Nunes, na rua do Ouro... Porque?

- Oh! nada. É um detalhe que n'estes casos se pergunta sempre. Mera ceremonia... Pois amigos, como papel, como letra, como estylo, está d'appetite a cartinha!

Metteu-a logo n'um enveloppe onde rebrilhava a divisa «Sou Forte», sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o chapéo, batendo no hombro do Damaso com uma familiaridade folgazã e leve:

- Pois, Damaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fóra de portas, n'uma poça de sangue! Assim é uma delicia. E adeus...Não se incommode você. Então o grande sarau sempre é na segunda-feira? Vai lá tudo, hein! Não venha cá, homem... Adeus!

Mas o Damaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no patamar reteve o Ega, desafogou outra inquietação que o assaltára:

- Isso não se mostra a ninguem, não é verdade, Ega?

Ega encolheu os hombros. O documento pertencia a Carlos... Mas emfim Carlos era tão bom rapaz, tão generoso!

Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Damaso:

- E chamei eu áquelle homem meu amigo!

- Tudo na vida são desapontamentos, meu Damaso! foi a observaçáo do Ega, saltando alegremente os degraus.

Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrella, Carlos já esperava ao portão de ferro, n'uma impaciencia, por causa do jantar na Toca. Enfiou logo para dentro atropellando o maestro, bradou ao cocheiro que voasse ao Loreto.

- E então, meus senhores, temos sangue?

- Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o enveloppe.

Carlos leu a carta do Damaso. E foi um immenso assombro:

- Isto é incrível!... Chega a ser humilhante para a natureza humana!

- O Damaso não é o genero humano, acudiu Ega. Que diabo esperavas tu? Que elle se batesse?

- Não sei, corta o coração... Que se ha de fazer a isto?

Segundo o Ega não se devia publicar; seria crear curiosidade e escandalo em torno do artigo da Corneta que custára trinta libras a suffocar. Mas convinha conservar aquillo como uma ameaça pairando sobre o Damaso, tornando-o para longos annos nullo e inoffensivo.

- Eu eslou mais que vingado, concluiu Carlos. Guarda o papel: é obra tua, usa-o como quizeres...

Ega guardou-o com prazer, emquanto Carlos, batendo no joelho do maestro, queria saber como elle se portára n'aquelle lance d'honra...

- Pessimamente! gritou Ega. Com expressões de compaixão; sem linha nenhuma; estendido por cima do piano; agarrando com a mão no sapato...

- Pudera! exclamou Cruges desafogando emfim. Vocês dizem-me que me ponha de ceremonia, calço uns sapatos novos de verniz, estive toda a tarde n'um tormento!

E não se conteve mais, arrancou o sapato, pallido, com um medonho suspiro de consolação.

No dia seguinte, depois do almoço, emquanto uma chuva grossa alagava os vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no fumoir, enterrado n'uma poltrona, com os pés para o lume, relia a carta do Damaso: e pouco a pouco subiu n'elle a mágoa de que esse colossal documento de cobardia humana, tão interessante para a physiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado no escuro d'uma gaveta!... Que effeito, que soberbo effeito se aquella confissão do «nosso distincto sportman» surgisse um dia na Gazeta Illustrada ou no novo jornal A Tarde, nas columnas do High-life, sob este titulo- PENDENCIA D'HONRA! E que lição, que meritorio acto de justiça social!

Todo esse verão, Ega detestára o Damaso, certo, desde Cintra, de que elle era o amante da Cohen - e de que, por esse imbecil de grossas nadegas, esquecera ella para sempre a villa Balzac, as manhãs na colcha de setim preto, os seus beijos delicados, os versos de Musset que lhe lia, os lunchesinhos de perdiz, tantos encantos poeticos. Mas o que lhe tornára o Damaso intoleravel - fôra a sua farofia radiante de homem preferido; o ar de posse com que passeava ao lado de Rachel pelas estradas de Cintra, vestido de flanella branca; os segredinhos que tinha sempre a cochichar-lhe sobre o hombro; e o acênosinho desdenhoso, com um dedo, que lhe atirava de lado, ao passar, a elle proprio, Ega... Era odioso! Odiava-o: e através d'esse odio ruminára sempre o desejo d'uma vingança - pancada, deshonra ou ridiculo que tornasse o snr. Salcede, aos olhos de Rachel, desprezivel, grutesco, chato como um balão furado...

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