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- Você, Maia, tem isto lindissimo, exclamou elle logo. Eu pello-me por porcelanas...

Hei de voltar um dia d'estes, com mais vagar, vêr tudo isto, de dia... Mas hoje venho com pressa, venho com uma missão... Você não adivinha?

Carlos não adivinhava.

E o outro, recuando um passo, com uma gravidade em que transparecia um sorriso:

- Eu venho aqui perguntar-lhe da parte do Damaso, se você hoje, n'aquillo que lhe disse, tinha tenção de o offender. É, só isto... A minha missão é apenas esta: perguntar-lhe se você tinha intenço de o offender.

Carlos olhou-o, muito sério:

- O quê!? Se tinha intenção de offender o Damaso quando o ameacei de lhe arrancar as orelhas? De modo nenhum: tinha só intenção de lhe arrancar as orelhas!

Telles da Gama saudou, rasgadamente:

- Foi isso mesmo o que eu respondi ao Damaso: que você não tinha senão essa intenção. Em todo o caso, desde este momento, a minha missão está finda... Como você tem isto bonito!... O que é aquelle prato grande, majolica?

- Não, um velho Nevers. Veja você ao pé... É Thetis conduzindo as armas d'Achilles...

É esplendido; e é muito raro... Veja você esse Deft, com as duas tulipas amarellas... É um encanto!

Telles da Gama dava um olhar lento a todas estas preciosidades, tomando o chapéo de sobre o sofá.

- Lindissimo tudo isto!... Então só intenção de lhe arrancar as orelhas? nenhuma de o offender?...

- Nenhuma de o offender, toda de lhe arrancar as orelhas... Fume você um charuto.

- Não, obrigado...

- Calice de cognac?

- Não! abstenção total de bebidas e aguas ardentes... Pois adeus, meu bom Maia!

- Adeus, meu bom Telles...

Ao outro dia, por uma radiante manhã de julho, Carlos saltava do coupé, com um mólho de chaves, diante do portão da quinta do Craft. Maria Eduarda devia chegar ás dez horas, só, na sua carruagem da Companhia. O hortelão, dispensado por dois dias, fôra a Villa Franca; não havia ainda criados na casa; as janellas estavam fechadas. E pesava alli, envolvendo a estrada e a vivenda, um d'esses altos e graves silencios d'aldêa, em que se sente, dormente no ar, o zumbir dos moscardos.

Logo depois do portão, penetrava-se n'uma fresca rua d'acacias, onde cheirava bem. A um lado, por entre a ramagem, apparecia o kiosque, com tecto de madeira, pintado de

vermelho, que fôra o capricho de Craft, e que elle mobilára á japoneza. E ao fundo era a casa, caiada de novo, com janellas de peitoril, persianas verdes, e a portinha ao centro sobre tres degraus, flanqueados por vasos de louça azul cheios de cravos.

Só o metter a chave devagar e com uma inutil cautela na fechadura d'aquella morada discreta foi para Carlos um prazer. Abriu as janellas: e a larga luz que entrava pareceu-lhe trazer uma doçura rara, e uma alegria maior que a dos outros dias, como preparada especialmente pelo bom Deus para alumiar a festa do seu coração. Correu logo á sala de jantar, a verificar se, na mesa posta para o lunch, se conservavam ainda viçosas as flôres que lá deixára na vespera. Depois voltou ao coupé a tirar o caixote de gelo, que trouxera de Lisboa, embrulhado em flanella, entre serradura. Na estrada, silenciosa por ora, ia só passando uma saloia montada na sua egua.

Mas apenas accommodára o gelo - sentiu fóra o ruido lento da carruagem. Veio para o gabinete forrado de cretones, que abria sobre o corredor; e ficou alli, espreitando da porta, mas escondido, por causa do cocheiro da Conpanhia. D'ahi a um instante viu-a emfim chegar, pela rua de acacias, alta e bella, vestida de preto, e com um meio-véo espesso como uma mascara. Os seus pésinhos subiram os tres degraus de pedra. Elle sentiu a sua voz inquieta perguntar de leve:

- Êtes-vous là?

Appareceu - e ficaram um instante, á porta do gabinete, apertando sofregamente as mãos, sem fallar, commovidos, deslumbrados.

- Que linda manhã! disse ella por fim, rindo e toda vermelha.

- Linda manhã, linda! repetia Carlos, contemplando-a, enlevado.

Maria Eduarda resvalára sobre uma cadeira, junto da porta, n'um cansaço delicioso, deixando calmar o alvoroço do seu coração.

- É muito confortavel, é encantador tudo isto, dizia ella olhando lentamente em redor os cretones do gabinete, o divan turco coberto com um tapete de Brousse, a estante envidraçada cheia de livros. Vou ficar aqui adoravelmente...

- Mas ainda nem lhe agradeci o ter vindo, murmurou Carlos, esquecido a olhar para ella. Ainda nem lhe beijei a mão...

Maria Eduarda começou atirar o véo, depois as luvas, fallando da estrada. Achara-a longa, fatigante. Mas que lhe importava? Apenas se accommodasse n'aquelle fresco ninho nunca mais voltava a Lisboa!

Atirou o chapéo para cima do divan - ergueu-se, toda alegre e luminosa.

- Vamos vêr a casa, estou morta por vêr essas maravilhas do seu amigo Craft!... É Craft que se chama? Craft quer dizer industria!

- Mas ainda nem sequer lhe beijei a mão! tornou Carlos, sorrindo e supplicante.

Ella estendeu-lhe os labios, e ficou presa nos seus braços.

E Carlos, beijando-lhe devagar os olhos, o cabello, dizia-lhe quanto era feliz e quanto a sentia agora mais sua entre estes velhos muros de quinta que a separavam do resto do mundo...

Ella deixava-se beijar, séria e grave:

- E é verdade isso? É realmente verdade?...

Se era verdade! Carlos teve um suspiro quasi triste:

- Que lhe hei de eu responder? Tenho de lhe repetir essa coisa antiga que já Hamlet disse: que duvide de tudo, que duvide do sol, mas que não duvide de mim...

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