- Não ha mas! O avô e os meus amigos sabem que eu tenho uma casa no campo, inutil por algum tempo, e que a aluguei a uma senhora. De resto, se quizer, metteremos n'isto tudo o meu procurador... Minha cara amiga, se fosse possivel que a nossa affeição se passasse fóra do mundo, distante de todos os olhares, ao abrigo de todas as suspeitas, seria delicioso... Mas não pode ser!... Alguem tem de saber sempre alguma coisa; quando não seja senão o cocheiro que me leva todos os dias a sua casa, quando não seja senão o criado que me abre todos os dias a sua porta... Ha sempre alguem que surprehende o encontro de dois olhares; ha sempre alguem que adivinha d'onde se vem a certas horas... Os deuses antigamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem que os tornava invisiveis.
Nós não somos deuses, felizmente...
Ella sorriu.
- Quantas palavras para converter uma convertida!
E tudo ficou harmonisado n'um grande beijo.
Affonso da Maia approvou plenamente a compra das collecções do Craft. «É um valor, disse elle ao Villaça, e acabamos d'encher com boa arte Santa-Olavia e o Ramalhete.»
Mas o Ega indignou-se, chegou a fallar em «desvario», despeitado por essa transacção secreta para que não fôra consultado. O que o irritava sobretudo era vêr, n'esta acquisição inesperada de uma casa de campo, outro symptoma do grave e do fundo segredo que presentia na vida de Carlos: e havia já duas semanas que elle habitava o Ramalhete e Carlos ainda não lhe fizera uma confidencia!... Desde a sua ligação de rapazes em Coimbra, nos Paços de Cella, fôra elle o confessor secular de Carlos: mesmo em viagem, Carlos não tinha uma aventura banal d'hotel, de que não mandasse ao Ega «um relatorio». O romance com a Gouvarinho, de que Carlos ao principio tentára, frouxamente, guardar um mysterio delicado, já o conhecia todo, já lêra as cartas da Gouvarinho, já passára pela casa da titi...
Mas do outro segredo não sabia nada - e considerava-se ultrajado. Via rodas as manhãs Carlos partir para a rua de S. Francisco, levando flôres; via-o chegar de lá, como elle dizia,
«besuntado d'extasi»; via-lhe os silencios repassados de felicidade, e esse indefinido ar, ao
mesmo tempo sério e ligeiro, risonho e superior, do homem profundamente amado... E não sabia nada.
Justamente alguns dias depois, estando ambos sós, a fallar de planos de verão, Carlos alludiu aos Olivaes, com enthusiasmo, relembrando algumas das preciosidades do Craft, o dôce socego da casa, a clara vista do Tejo... Aquillo realmente fôra obter por uma mão cheia de libras um pedaço do paraiso...
Era á noite, no quarto de Carlos, já tarde. E o Ega, que passeara com as mãos nas algibeiras do robe-de-chambre, encolheu os hombros, impaciente, farto d'aquelles louvores eternos a casinhola do Craft.
- Essa concepção do paraiso, exclamou elle, parece-me d'um estofador da rua Augusta!
Como natureza, couves gallegas; como decoração, os velhos cretones do gabinete, desbotados já por tres barrelas... Um quarto de dormir lugubre como uma capella de santuario... Um salão confuso como o armazem d'um cara-de-pau, e onde não é possivel conversar... A não ser o armario hollandez, e um ou outro prato, tudo aquillo é um lixo archeologico... Jesus! o que eu odeio bric-à-brac!
Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquillamente, e como reflectindo:
- Com effeito esses cretones são medonhos... Mas eu vou mandar remobilar, tornar aquillo mais habitavel.
Ega estacou no meio do quarto, com o monoculo a faiscar sobre Carlos.
- Habitavel? Vaes ter hospedes?
- Vou alugar.
- Vaes alugar! A quem?
E o silencio de Carlos, que soprava o fumo da cigarrette com os olhos no tecto, enfureceu Ega. Comprimentou quasi até ao chão, disse sarcasticamente:
- Peço perdão. A pergunta foi brutal. Tive agora o ar de querer arrombar uma gaveta fechada... O aluguel d'um predio é sempre um d'esses delicados segredos de sentimento e de honra em que não deve roçar nem a aza da imaginação... Fui rude... Irra! Fui bestialmente rude!
Carlos continuava calado. Comprehendia bem o Ega - e quasi sentia um remorso d'aquella sua rigida reserva. Mas era como um pudor que o enleava, lhe impedia de pronunciar sequer o nome de Maria Eduarda. Todas as suas outras aventuras as contára ao Ega; e essas confidencias constituiam talvez mesmo o prazer mais solido que ellas lhe davam. Isto, porém, não era «uma aventura». Ao seu amor misturava-se alguma coisa de religioso; e, como os verdadeiros devotos, repugnava-lhe conversar sobre a sua fé...
Todavia, ao mesmo tempo, sentia uma tentação de fallar d'ella ao Ega, e de tornar vivas, e como visiveis aos seus proprios olhos, dando-lhes o contorno das palavras e o seu relevo, as coisas divinas e confusas que lhe enchiam o coração. Além d'isso, Ega não saberia tudo, mais tarde ou mais cedo, pela tagarellice alheia? Antes lh'o dissesse elle, fraternalmente.
Mas hesitou ainda, accendeu outra cigarrette. Justamente o Ega tomára o seu castiçal, e começava a: accendel-o a uma serpentina, devagar e com um ar amuado.
- Não sejas tolo, não te vás deitar, senta-te ahi, disse Carlos.
E contou-lhe tudo miudamente, diffusamente, desde o primeiro encontro, á entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.
Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sofá. Suppuzera um romancesinho, d'esses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo: e agora, só pelo modo como Carlos fallava d'aquelle grande amor, elle sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal tornando-se d'ahi por diante, e para sempre, o seu
irreparavel destino. Imaginára uma brazileira polida por Paris, bonita e futil, que tendo o marido longe, no Brazil, e um formoso rapaz ao lado, no sofá, obedecia simplesmente e alegremente á disposição das coisas: e sahia-lhe uma creatura cheia de caracter, cheia de paixão, capaz de sacrificios, capaz de heroismos. Como sempre, diante d'estas coisas patheticas, murchava-lhe a veia, faltava-lhe a phrase; e quando Carlos se calou, o bom Ega teve esta pergunta chôcha:
- Então estás decidido a safar-te com ella?
- A safar-me, não; a ir viver com ella longe d'aqui, decididissimo!
Ega ficou um momento a olhar para Carlos como para um phenomeno prodigioso, e murmurou:
- É d'arromba!
Mas que outra coisa podiam elles fazer? D'ahi a tres mezes talvez, Castro Gomes chegava do Brazil. Ora nem Carlos, nem ella, aceitariam nunca uma d'essas situações atrozes e reles em que a mulher é do amante e do marido, a horas diversas... Só lhes restava uma solução digna, decente, seria - fugir.
Ega, depois de um silencio, disse pensativamente:
- Para o marido é que não é talvez divertido perder assim, de uma vez, a mulher, a filha, e a cadellinha...
Carlos ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto. Sim, tambem elle já pensára n'isso...
E não sentia remorsos - mesmo quando os podesse haver no absoluto egoismo da paixão...
Elle não conhecia intimamente Castro Gomes: mas tinha podido adivinhar o typo, reconstruil-o, pelo que lhe dissera o Damaso, e por algumas conversas com miss Sarah.
Castro Gomes não era um esposo a sério: era um dandy, um futil, um gommeux, um homem de sport e de cocottes... Casára com uma mulher bella, saciára a paixão, e recomeçára a sua vida de club e de bastidores... Bastava olhar para elle, para a sua toilette, para os seus modos - e comprehendia-se logo a trivialidade d'aquelle caracter...