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Mas Carlos quiz que elle admirasse os esplendores novos da Toca. E foi já com familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que só viesse assim á Toca no fim do verão e no fim das flôres. Ega extasiou-se ruidosamente. Emfim, perdera a Toca o seu ar regelado e triste de museu! Já alli se podia palrar livremente!

- Isto é um barbaro, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror á arte! É um Ibero, é um Semita...

Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Aryano! E por isso mesmo não podia viver n'uma casa, em que cada cadeira tinha a solemnidade sorumbatica de antepassados com cabelleira...

- Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do seculo dezoito lembram antes a ligeireza, o espirito, a graça de maneiras...

- V. exc.ª acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados, esses rococós lembram-me uma vivacidade estouvada e sirigaita... Nada! nós vivemos n'uma Democracia! E não ha para exprimir a alegria simples, sólida e bonacheirona da Democracia, como largas poltronas de marroquim, e o mogno envernizado!...

Assim n'uma risonha, ligeira discussão sobre bric-à-brac, desceram ao jardim.

Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na mão. Ega, que conhecia já os seus ardores nocturnos, cravou-lhe sôfregamente o monoculo; e emquanto Maria se abaixára a cortar um geranio, exprimiu a Carlos n'um gesto mudo a sua admiração por aquelle beicinho escarlate, aquelle seiosinho redondo de rola farta... Depois, ao fundo, junto do caramanchão, encontraram Rosa que se balouçava. Ega pareceu deslumbrado com a sua belleza, a sua frescura mate de camelia branca. Pediu-lhe um beijo.

Ella exigiu primeiro, muito séria, que ella tirasse o vidro do olho.

- Mas é para te vêr melhor! é para te vêr melhor!...

- Então porque não trazes um em cada olho? Assim só me vês metade...

Encantadora! Encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena espevitada e impudente. Maria resplandecia.

E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo á sopa, fallando-se de campo e d'um chalet que elle desejava construir em Cintra, nos Capuchos, dissera -

«quando nos casarmos». E Ega alludiu a esse futuro do modo mais grato ao coração de Maria.

Agora que Carlos se installava para sempre n'uma felicidade estavel (dizia elle) era necessario trabalhar! E relembrou então a sua velha idéa do Cenaculo, representado por uma Revista que dirigisse a litteratura, educasse o gosto, elevasse a política, fizesse a civilisação, remoçasse o carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espirito, pela sua fortuna (até pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a direcção d'este movimento. E que profunda alegria para o velho Affonso da Maia!

Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida toda de intelligencia e de actividade, rehabilitaria supremamente aquella união mostrando-lhe a influencia fecunda e purificadora.

- Tem razão, tem bem razão! exclamava ella com ardor.

- Sem contar, acrescentava o Ega, que o paiz precisa de nós! Como muito bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o paiz não tem pessoal... Como ha de tel-o, se nós, que possuimos as aptidões, nos contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vida intima dos atomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa biographia d'um atomo!... No fim, este dilettantismo é absurdo. Clamamos por ahi, em botequins e livros, «que o paiz é uma choldra». Mas que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas idéas?... V. exc.ª não conhece este paiz, minha senhora. É admiravel! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas, banaes, toscas, reles, rotineiras... É necessario pôl-a em mãos d'artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou!...

Carlos ria, preparando n'uma travessa o ananaz com sumo de laranja e vinho da Madeira. Mas Maria não queria que elle risse. A idéa do Ega parecia-lhe superior, inspirada n'um alto dever. Quasi tinha remorsos, dizia ella, d'aquella preguiça de Carlos. E agora, que ia ser cerrado de affeição serena, queria-o vêr trabalhar, mostrar-se, dominar...

- Com effeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance findou. E agora...

Mas o Domingos servia o ananaz. E o Ega provou e rompeu em clamores de enthusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delicia!

- Como fazes tu isto? Com Madeira...

- E genio! exclamou Carlos. Delicioso, não é verdade? Ora digam-me se tudo o que eu pudesse fazer pela civilisação valeria este prato de ananaz! É para estas coisas que eu vivo!

Eu não nasci para fazer civilisação...

- Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flôres d'essa planta da civilisação que a multidão rega com o seu suor! No fundo tambem eu, menino!

Não, não! Maria não queria que fallassem assim!

- Esses ditos estragam tudo. E o snr. Ega, em logar de corromper Carlos, devia inspiral-o...

Ega protestou requebrando o olho, já languido. Se Carlos necessitava uma musa inspiradota e benefica não podia ser elle, bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estava toute trouvée!

- Ah, com effeito!... Quantas paginas bellas, quantas nobres idéas se náo podem produzir n'um paraiso d'estes!...

E o seu gesto molle e acariciador indicava a Toca, a quietação dos arvoredos, a belleza de Maria. Depois na sala, emquanto Maria tocava um nocturno de Chopin e Carlos e elle acabavam os charutos á porta do jardim vendo nascer a lua - Ega declarou que, desde o começo do jantar, estava com idéas de casar!... Realmente não havia nada como o casamento, o interior, o ninho...

- Quando penso, menino, murmurou elle mordendo sombriamente o charuto, que quasi todo um anno da minha vida foi dado áquella israelita devassa que gosta de levar bordoada...

- Que faz ella em Cintra? perguntou Carlos.

- Ensopa-se na crapula. Não ha a menor duvida que dá todo o seu coração ao Damaso...

Tu sabes o que n'estes casos significa o termo coracão... Viste já immundicie igual? É

simplesmente obscena!

- E tu adóral-a, disse Carlos.

O outro não respondeu. Depois, dentro, n'um odio repentino da bohemia e do romantismo, entoou louvores sonoros á família, ao trabalho, aos altos deveres humanos -

bebendo copinhos de cognac. Á meia noite, ao sahir, tropeçou duas vezes na rua d'acacias, já vago, citando Proudhon. E quando Carlos o ajudou a subir para a victoria, que elle quiz descoberta para ir communicando com a lua, Ega ainda lhe agarrou o braço para lhe fallar da Revista, d'um forte vento de espiritualidade e de virtude viril que se devia fazer soprar sobre o paiz... Por fim, já estirado no assento, tirando o chapéo á aragem da noite:

- E outra coisa, Carlinhos. Vê se me arranjas a ingleza... Ha vicios deliciosos n'aquellas pestanas baixas... Vê se m'a arranjas... Vá lá, bate lá, cocheiro! Caramba, que belleza de noite!

Carlos ficára encantado com este primeiro jantar d'amizade na Toca. Elle tencionava não apresentar Maria aos seus intimos senão depois de casado e á volta de Italia. Mas agora a «união legal» estava já no seu pensamento adiada, remota, quasi dispersa no vago.

Como dizia o Ega, devia esperar, deixar-se ir... E no emtanto, Maria e elle não poderiam isolar-se alli todo um longo inverno, sem o calor sociavel d'alguns amigos em redor. Por isso uma manhã, encontrando o Cruges, que fôra o visinho de Maria e outr'ora lhe dava

noticias da «lady ingleza», pediu-lhe para vir jantar á Toca no domingo.

O maestro appareceu n'uma tipóia, á tardinha, de laço branco e de casaca: e os fatos claros de campo com que encontrou Carlos e Ega começaram logo a enchel-o de mal-estar.

Toda a mulher, além das Lolas e Conchas, o atarantava, o emmudecia: Maria, «com o seu porte de grande-dame», como elle dizia, intimidou-o a tal ponto que ficou diante d'ella, sem uma palavra, escarlate, torcendo o forro das algibeiras. Antes de jantar, por lembrança de Carlos, foram-lhe mostrar a quinta. O pobre maestro, roçando a casaca mal feita pela folhagem dos arbustos, fazia esforços anciosos por murmurar algum elogio «á belleza do sitio»; mas escapavam-lhe então inexplicavelmente coisas reles, em calão: «vista catita»! «é pitada»! Depois ficava furioso, coberto de suor, sem comprehender como se lhe babavam dos labios esses ditos abominaveis, tão contrarios ao seu gosto fino d'artista. Quando se sentou á mesa soffria um negrissimo accesso de spleen e mudez! Nem uma controversia que Maria arranjára caridosamente para elle sobre Wagner e Verdi pôde descerrar-lhe os labios empedernidos. Carlos ainda tentou envolvel-o na alegria da mesa - contando a ida a Cintra, quando elle procurava Maria na Lawrence, e em vez d'ella achára uma matrona obesa, de bigode, de cãosinho ao collo, ralhando com o homem em hespanhol. Mas a cada exclamação de Carlos - «Lembras-te, Cruges?», «Não é verdade, Cruges?» - o maestro, rubro, grunhia apenas um sim avaro. Terminou por estar alli, ao lado de Maria, como um trambolho funebre. Estragou o jantar. Combinára-se para depois do café um passeio pelos arredores, n'um break. E Carlos já tomára as guias, Maria na almofada acabava de abotoar as luvas – quando Ega, que receava a friagem da tarde, saltou do break, correu a buscar o paletot. N'esse mesmo momento sentiram um trote de cavallo na estrada - e appareceu o marquez.

Foi uma surpreza para Carlos, que o não vira durante esse verão. O marquez parou logo, tirando profundamente, ao vêr Maria, o seu largo chapéo desabado.

- Imaginava-o pela Gollegã! exclamou Carlos. Foi até o Cruges que me disse... Quando chegou vossê?

Chegára na vespera. La fôra ao Ramalhete; tudo deserto. Agora vinha aos Olivaes vêr um dos Vargas que tinha casado, se installára alli perto, a passar o noivado...

- Quem, o gordo, o das corridas?

- Não, o magro, o das regatas.

Carlos, debruçado da almofada, examinava a egoasita do marquez, pequena, bem estampada, d'um baio escuro e bonito.

- Isso é novo?

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