"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » 🌘 🌘 ,,Os Maias'' - de Eça de Queirós🌘 🌘

Add to favorite 🌘 🌘 ,,Os Maias'' - de Eça de Queirós🌘 🌘

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

- Não, não! Não é isso!

- E eu? exclamou ella, caminho para elle, dominando-o, magnifica e com um esplendor de verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar n'essa grande paixão que me juravas?

O que é que tu amavas então em mim? Dize lá! Era a mulher d'outro, o nome, o requinte do adulterio, as toilletes?... Ou era eu propria, o meu corpo, a minha alma e o meu amor por ti?... Eu sou a mesma, olha bem para mim!... Estes braços são os mesmos, este peito é o mesmo... Só uma coisa é differente: a minha paixão! Essa é maior, desgraçadamente, infinitamente maior.

- Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as mãos.

N'um instante Maria estava cahida a seus pés, com os braços abertos para elle.

- Juro-t'o por alma de minha filha, por alma de Rosa! Amo-te, adoro-te doidamente, absurdamente, até á morte!

Carlos tremia. Todo o seu sêr pendia para ella; e era um impulso irresistivel de se deixar cahir sobre aquelle seio que arfava a seus pés, ainda que elle fosse o abysmo da sua vida inteira... Mas outra vez a idéia da mentira passou, regeladora. E afastou-se d'ella, levando os punhos á cabeça, n'um desespero, revoltado contra aquella coisa pequenina e indestructivel que não queria sumir-se, e que se interpunha como uma barra de ferro entre elle e a sua felicidade divina!

Ella ficára ajoelhada, immovel, com os olhos esgazeados para o tapete. Depois, no silencio estofado da sala, a sua voz ergueu-se dolente e tremula:

- Tens razão, acabou-se! Tu não me acreditas, tudo se acabou!... É melhor que te vás embora... Ninguem me torna a acreditar... Acabou tudo para mim, não tenho ninguem mais no mundo... Ámanhã sáio d'aqui, deixo-te tudo... Has de me dar tempo para arranjar...

Depois, que hei de fazer, vou-me embora!

E não pôde mais, tombou para o chão, com os braços estirados, perdida de chôro.

Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro, para alli cahida e abandonada, parecia já uma pobre creatura, arremessada para fóra de todo o lar, sósinha a um canto, entre a inclemencia do mundo... Então respeitos humanos, orgulho, dignidade

humana, tudo n'elle foi levado como por um grande vento de piedade. Viu só, offuscando todas as fragilidades, a sua belleza, a sua dôr, a sua alma sublimemente amante. Um delirio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se á sua paixão. E, debruçando-se, disse-lhe baixo, com os braços abertos:

- Maria, queres casar commigo?

Ella ergueu a cabeça, sem comprehender, com os olhos desvairados. Mas Carlos tinha os braços abertos; e estava esperando para a fechar dentro d'elles outra vez, como sua e para sempre... Então levantou-se, tropeçando nos vestidos, veio cahir sobre o peito d'elle, cobrindo-o de beijos, entre soluços e risos, tonta, n'um deslumbramento:

- Casar comtigo, comtigo? Oh Carlos... E viver sempre, sempre comtigo?... Oh meu amor, meu amor! E tratar de ti, e servir-te, e adorar-te, e ser só tua? E a pobre Rosa tambem... Não, não cases commigo, não é possivel, não valho nada! Mas se tu queres, porque não?... Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coração! E has de ser nosso amigo, meu e d'ella, que não temos ninguem no mundo... Oh! meu Deus, meu Deus!...

Empallideceu, escorregando pesadamente entre os braços d'elle, desmaiada: e os seus longos cabellos desprendidos rojavam o chão, tocados pelas luz de tons d'ouro.

V

Maria Eduarda e Carlos, que ficára essa noite nos Olivaes na sua casinhola, acabavam de almoçar. O Domingos servira o café, e antes de sahir deixára ao lado de Carlos a caixa de cigarettes e o Figaro. As duas janellas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhã encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe nos campos. No banco de cortiça, sob as arvores, miss Sarah costurava preguiçosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E Carlos, que viera n'uma intimidade conjugal, com uma simples camisa de sêda e um jaquetão de flanella, chegou então a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a mão, brincando-lhe com os anneis, n'uma lenta caricia:

- Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?

N'essa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ella mostrára o desejo enternecido de não alterar o plano da Italia e d'um ninho romantico entre as flôres d'Isola-bella: sómente agora não iam esconder a inquietação d'uma felicidade culpada, mas gozar o repouso d'uma felicidade legitima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o dia em que cruzára Maria Eduarda no Aterro, Carlos anhelava tambem pelo momento de se installar emfim no conforto d'um amor sem duvidas e sem sobresaltos:

- Eu por mim abalava ámanhã. Estou sôfrego de paz. Estou até sôfrego de preguiça...

Mas tu, dize, quando queres?

Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, sem retirar a mão que a longa caricia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa através da janella.

- Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardaes que ainda não almoçaram...

- Não, vem cá.

Quando ella appareceu á porta, toda de branco, córada, com uma das ultimas rosas de verão mettida no cinto - Maria quil-a mais perto, entre elles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do cabello, perguntou, muito séria, muito commovida, se ella gostaria que Carlos viesse viver ver com ellas de todo e ficar alli na Toca. Os olhos da pequena encheram-se de surpreza e de riso:

- O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E ter aqui as suas malas, as suas coisas?...

Ambos murmuraram - «sim».

Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse já, já, buscar as suas malas e as suas coisas...

- Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E gostavas que elle fosse como o papá, e que ,andasse sempre comnosco, e que lhe obedecessemos ambas, e que gostassemos muito d'elle ?

Rosa ergueu para a mãe uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso se apagára.

- Mas eu não posso gostar mais d'elle do que gósto!...

Ambos a beijaram, n'um enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa debruçando-se sobre ella, beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mãi. E pareceu comprehender tudo; escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:

- Queres que te chame papá, só a ti?

- Só a mim, disse elle, fechando-a toda nos braços.

E assim obtiveram o consentimento de Rosa que fugiu, atirando a porta, com as mãos cheias de bolos para os pardaes.

Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e contemplando-a profundamente, até á alma, murmurou n'um enlevo:

- És perfeita!

Ella desprendeu-se, com melancolia, d'aquella adoração que a perturbava.

- Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para o nosso kiosque... Tu não tens nada que fazer, não? E que tenhas, hoje és meu... Vou já ter comtigo.

Leva as tuas cigarettes.

Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçura velada do céo cinzento...

E a vida pareceu-lhe adoravel, d'uma poesia fina e triste,assim envolta n'aquella nevoa macia onde nada resplandecia e nada cantava, e que tão favoravel era para que dois corações, desinteressados do mundo e em desharmonia com elle, se abandonassem juntos ao contínuo encanto de estremecerem juntos

na mudez e na sombra.

- Vamos ter chuva, tio André, disse elle, passando junto do velho jardineiro que aparava o buxo.

O tio André, atarantado, arrancou o chapéo. Ah! uma gota d'agua era bem necessaria, depois da estiagem! O torrãosinho já estava com sêde! E em casa todos bons? A senhora? A menina?

- Tudo bom, tio André, obrigado.

E no seu desejo de vêr todos em torno de si felizes como elle e como a terra sequiosa que ia ser consolada - Carlos metteu uma libra na mão do tio André, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos sobre aquele ouro extraordinario que reluziu.

Quando Maria entrou no kiosque trazia um cofre de sandalo. Atirou-o para o divan: fez sentar Carlos ao lado, bem confortavel, entre almofadas: accendeu-lhe uma cigarrete.

Are sens