Carlos encolheu os hombros. Como podia ella acreditar no Damaso? Devia conhecer-lhe bem a tagarellice, a imbecilidade...
- É perfeitamente verdade que eu vou a casa d'essa senhora, que nem brazileira é, que é tão portugueza como eu; mas é porque ella tem a governante muito doente com uma bronchite, e eu sou o medico da casa. Foi até o Damaso, elle proprio, que lá me levou como medico!
No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridade vinda do dôce allivio que se fazia no seu coração.
- Mas o Datoaso disse-me que era tão linda!...
Sim, era muito linda. E então? Um medico, por fidelidade ás suas affeições, e para as não inquietar, não podia realmente, antes de penetrar na casa d'uma doente, exigir-lhe um certificado de hediondez!
- Mas que está ella cá a fazer?...
- Está á espera do marido que foi a negocios ao Brazil, e vem ahi... É uma gente muito distincta, e creio que muito rica... Vão-se brevemente embora, de resto, e eu pouco sei d'elles. As minhas visitas são de medico; tenho apenas conversado com ella sobre Paris, sobre Londres, sobre as suas impressões de Portugal...
A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominada pelo bello olhar com que elle lh'as murmurava: e o seu pé apertava o de Carlos n'uma reconciliação apaixonada, com a força que desejaria pôr n'um abraço - se alli lh'o podesse dar.
A senhora d'escarlate, no emtanto, recomeçara a fallar da Russia. O que a assustava é que o paiz era tão caro, corriam-se tantos perigos por causa da dynamite, e uma constituição fraca devia soffrer muito com a neve nas ruas. E foi então que Carlos percebeu que ella era a esposa de Sousa Netto, e que se tratava d'um filho d'elles, filho unico, despachado segundo secretario para a legação de S. Petersburgo.
- O menino conhece-o? perguntou D. Maria ao ouvido de Carlos, por traz do leque. É
um horror d'estupidez... Nem francez sabe! De resto não é peor que os outros... Que a quantidade de mônos, de semsaborões e de tolos que nos representam lá fóra até faz chorar... Pois o menino não acha? Isto é um paiz desgraçado.
- Peor, minha cara senhora, muito peor. Isto é um paiz cursi.
Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa com o seu sorriso cansado; a senhora de escarlate calára-se, já preparada, tendo mesmo afastado um pouco a cadeira; e as senhoras ergueram-se, no momento em que o Ega, ainda ácerca da Russia, acabava de contar uma historia ouvida a um polaco, e em que se provava que o Czar era um estupido...
- Liberal todavia, gostando bastante do progresso! murmurou ainda o conde, já de pé.
Os homens, sós, accenderam os seus charutos; o escudeiro serviu o café. Então o snr.
Sousa Netto, com a sua chavena na mão, aproximou-se de Carlos para lhe exprimir de novo o prazer que tivera em fazer o seu conhecimento...
- Eu tive tambem em tempos o prazer de conhecer o pai de v. exc.ª... Pedro, creio que era justamente o snr. Pedro da Maia. Começava eu então a minha carreira publica... E o avô de v. exc.ª, bom?
- Muito agradecido a v. exc.ª
Pessoa muito respeitavel... O pai de v. exc.ª era... Emfim, era o que se chama «um elegante». Tive tambem o prazer de conhecer a mãi de v. exc.ª...
E de repente calou-se, embaraçado, levando a chavena aos labios. Depois, lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, que ao lado discutia com o Gouvarinho sobre mulheres. Era a proposito da secretária da legação da Russia, com quem elle encontrára n'essa manhã o conde conversando ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa, com o seu corpinho nervoso e ondeado, os seus grandes olhos garços... E o conde, que a admirava tambem, gabava-lhe sobretudo o espirito, a instrucção. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a: porque o dever da mulher era primeiro ser bella, e depois ser estupida... O conde affirmou logo com exuberancia que não gostava tambem de litteratas: sim, decerto o lugar da mulher era junto do berço, não na bibliotheca...
- No emtanto é agradavel que uma senhora possa conversar sobre coisas amenas, sobre o artigo d'uma Revista, sobre... Por exemplo, quando se publica um livro... Emfim, não direi quando se trata d'um Guizot, ou d'um Jules Simon... Mas, por exemplo, quando se trata d'um Feuillet, d'um... Emfim, uma senhora deve ser prendada. Não lhe parece, Netto?
Netto, grave, murmurou:
- Uma senhora, sobretudo quando ainda é nova, deve ter algumas prendas...
Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas litterarias, sabendo dizer coisas sobre o snr. Thiers, ou sobre o snr. Zola, é um monstro, um phenomeno que cumpria recolher a uma companhia de cavallinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem.
- V. exc.ª decerto, snr. Sousa Netto, sabe o que diz Proudhon?
Não me recordo textualmente, mas...
Em todo o caso v. exc.ª conhece perfeitamente o seu Proudhon?
O outro, muito seccamente, não gostando decerto d'aquelle interrogatorio, murmurou que Proudhon era um author de muita nomeada.
Mas o Ega insistia, com uma impertinencia perfida:
- V. exc.ª leu evidentemente, como nós todos, as grandes paginas de Proudhon sobre o amor?
O snr. Netto, já vermelho, pousou a chavena sobre a mesa. E quiz ser sarcastico, esmagar aquelle moço, tão litterario, tão audaz.
- Não sabia, disse elle com um sorriso infinitamente superior, que esse philosopho tivesse escripto sobre assumptos escabrosos!
Ega atirou os braços ao ar, consternado:
- Oh snr. Sousa Netto! Então v. exc.ª, um chefe de familia, acha o amor um assumpto escabroso?!
O snr. Netto encordoou. E muito direito, muito digno, fallando do alto da sua consideravel posição burocratica:
- É meu costume, snr. Ega, não entrar nunca em discussões, e acatar rodas as opiniões alheias, mesmo quando ellas sejam absurdas...
E quasi voltou as costas ao Ega, dirigindo-se outra vez a Carlos, desejando saber, n'uma voz ainda um pouco alterada, se elle agora se fixava algum tempo mais em Portugal.
Então, durante um momento, acabando os charutos, os dois fallaram de viagens. O snr.
Netto lamentava que os seus muitos deveres não lhe permitissem percorrer a Europa. Em pequeno fôra esse o seu ideal; mas agora, com tantas occupações publicas, via-se forçado a não deixar a carteira. E alli estava, sem ter visto sequer Badajoz...
- E v. exc.ª de que gostou mais, de Paris ou de Londres ?