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- Como quer o senhor que se vá para Cintra com um tempo d'estes?

- Com effeito, está infernal...

- E que conta de novo? perguntou ella, abrindo lentamente o seu grande leque preto.

- Creio que não ha nada de novo em Lisboa, minha senhora, desde a morte do snr. D.

João VI.

- Agora ha o seu amigo Ega, por exemplo.

- É verdade, ha o Ega... Como o acha v. exc.ª, senhora baroneza?

Ella nem baixou a voz para dizer:

- Olhe, eu como o achei sempre um grande presumido e não gosto d'elle, não posso dizer nada...

- Oh senhora baroneza, que falta de caridade!

O escudeiro annunciára o jantar. A condessa tomou o braço de Carlos, - e, ao atravessar o salão, entre o frouxo murmurio de vozes e o rumor lento das caudas de sêda, pôde dizer-lhe asperamente:

- Esperei meia hora; mas comprehendi logo que estaria entretido com a brazileira...

Na sala de jantar, um pouco sombria, forrada de papel côr de vinho, escurecida ainda por dois antigos paineis de paizagem tristonha, a mesa oval, cercada de cadeiras de carvalho lavrado, resaltava alva e fresca, com um esplendido cesto de rosas entre duas serpentinas douradas. Carlos ficou á direita da condessa, tendo ao lado D. Maria da Cunha, que n'esse dia parecia um pouco mais velha, e sorria com um ar cansado.

- Que tem feito todo este tempo, que ninguem o tem visto? Perguntou-lhe ella, desdobrando o guardanapo.

- Por esse mundo, minha senhora, vagamente...

Defronte de Carlos, o snr. Sousa Netto, que tinha tres enormes coraes no peitilho da camisa, estava já observando, emquanto remexia a sopa, que a senhora condessa, na sua viagem ao Porto, devia ter encontrado nas ruas e nos edificios grandes mudanças... A condessa, infelizmente, mal tinha sahido durante o tempo que estivera no Porto. O conde, esse, é que admirára os progressos da cidade. E especificou-os: elogiou a vista do Palacio de Crystal; lembrou o fecundo antagonismo que existe entre Lisboa e Porto; mais uma vez o comparou ao dualismo da Austria e da Hungria. E através d'estas coisas graves, lançadas d'alto, com superioridade e com peso, a baroneza e a senhora d'escarlate, aos dois lados d'elle, fallavam do convento das Selesias.

Carlos, no emtanto, comendo em silencio a sua sopa, ruminava as palavras da condessa. Tambem ella conhecia já a sua intimidade com a «brazileira». Era evidente pois que já andava alli, diffamante e torpe, a tagarellice do Damaso. E quando o criado lhe offereceu Sauterne, estava decidido a bater no Damaso.

De repente ouviu o seu nome. Do fim da mesa uma voz dizia, pachorrenta e cantada:

- O snr. Maia é que deve saber... O snr. Maia já lá esteve.

Carlos pousou vivamente o copo. Era a senhora d'escarlate que lhe fallava, sorrindo, mostrando uns bonitos dentes sob o buço forte de quarentona pallida. Ninguem lh'a apresentára, elle não sabia quem era. Sorriu tambem, perguntou:

- Onde, minha senhora?

- Na Russia.

- Na Russia?... Não, minha senhora, nunca estive na Russia.

Ella pareceu um pouco desapontada.

- Ah, é que me tinham dito... Não sei já quem me disse, mas era pessoa que sabia...

O conde ao fundo explicava-lhe amavelmente que o amigo Maia estivera apenas na Hollanda.

- Paiz de grande prosperidade, a Hollanda!... Em nada inferior ao nosso... Já conheci mesmo um hollandez que era excessivamente instruido...

A condessa baixára os olhos, partindo vagamente um bocadinho de pão, mais séria de repente, mais secca, como se a voz de Carlos, erguendo-se tão tranquilla ao seu lado, tivesse avivado os seus despeitos. Elle, então, depois de provar devagar o seu Sauterne, voltou-se para ella, muito naturalmente e risonho:

- Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo idéa d'ir á Russia. Ha assim uma infinidade de coisas que se dizem e que não são exactas... E se se faz uma allusão ironica a ellas, ninguem comprehende a allusão nem a ironia...

A condessa não respondeu logo, dando com o olhar uma ordem muda ao escudeiro.

Depois, com um sorriso pallido:

- No fundo de tudo que se diz ha sempre um facto, ou um bocado de facto que é verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mim basta-me...

- A senhora condessa tem então uma credulidade infantil. Estou vendo que acredita que era uma vez uma filha d'um rei que tinha uma estrella na testa...

Mas o conde interpellava-o, o conde queria a opinião do seu amigo Maia. Tratava-se do livro de um inglez, o major Bratt, que atravessára a Africa, e dizia coisas perfidamente desagradaveis para Portugal. O conde via alli só inveja - a inveja que nos têm todas as nações por causa da importancia das nossas colonias, e da nossa vasta influencia na Africa...

- Está claro, dizia o conde, que não temos nem os milhões, nem a marinha dos inglezes.

Mas temos grandes glorias; o infante D. Henrique é de primeira ordem; e a tomada d'Ormuz é um primor... E eu que conheço alguma coisa de systemas coloniaes, posso affirmar que não ha hoje colonias nem mais susceptiveis de riqueza, nem mais crentes no progresso, nem mais liberaes que as nossas! Não lhe parece, Maia?

- Sim, talvez, é possível... Ha muita verdade n'isso...

Mas Ega, que estivera um pouco silencioso, entalando de vez em quando o monoculo no olho e sorrindo para a baroneza, pronunciou-se alegremente contra todas essas explorações da Africa, e essas longas missões geographicas... Porque não se deixaria o preto socegado, na calma posse dos seus manipansos? Que mal fazia á ordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrario, davam ao Universo uma deliciosa quantidade de pittoresco! Com a mania franceza e burgueza de reduzir todas as regiões e todas as raças ao mesmo typo de civilisação, o mundo ia tornar-se n'uma monotonia abominavel. Dentro em breve um touriste faria enormes sacrificios, despezas sem fim, para ir a Tombuctu - para quê? Para encontrar lá pretos de chapéo alto, a lêr o Jornal dos Debates!

O conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, sahindo do seu vago abatimento, movia o leque, dizia a Carlos, deleitada:

- Este Ega! Este Ega! Que graça! Que chic!

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