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- Je ne sais pas, dizia Melanie, je ne sais pas... Mais elle vous aime bien, allez!

Estavam defronte do portão. A tipoia esperava. E, ao fundo da rua d'acacias, a porta da casa aberta deixava passar a luz do corredor, frouxa e triste. Carlos julgou vêr mesmo a figura de Maria Eduarda, embrulhada n'uma capa escura, de chapéo, atravessar n'essa claridade... Ouvira decerto rodar a carruagem. Que afflicta paciencia seria a sua!

- Vai-lhe dizer que vim, Melanie, vai! murmurou Carlos.

A rapariga correu. E elle, caminhando devagar sob as acacias, sentia no sombrio silencio as pancadas desordenandas do seu coração. Subiu os tres degraus de pedra - que lhe pareciam já d'uma casa estranha. Dentro, o corredor estava deserto, com a sua lampada mourisca alumiando as panoplias de touros... Alli ficou. Melanie, com o chale na mão, veio dizer-lhe que a senhora estava na sala das tapeçarias...

Carlos entrou.

Lá estava, ainda de capa, esperando de pé, palida, com toda a alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lagrimas. E correu para elle, arrebatou-lhe as mãos, sem poder fallar, soluçando, tremendo toda.

Na sua terrivel perturbação, Carlos achava só esta palavra, melancolicamente estupida:

- Não sei porque chora, não sei, não há razão para chorar...

Ella pôde emfim balbuciar:

- Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa contar-te... Eu ia lá, tinha mandado Melanie por uma carruagem. Ia vêr-te... Nunca tive a coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrivel... Mas escuta, não digas nada ainda, perdôa, que eu não tenho culpa!

De novo os soluços a suffocaram. E cahiu ao canto do sofá, n'um chôro brusco e nervoso, que a sacudiu toda, lhe fazia rolar sobre os hombros os cabellos mal atados.

Carlos ficára diante d'ella, immovel. O seu coração parecia parado de surpreza e de duvida, sem força para desafogar. Apenas agora sentia quanto baixo e brutal deixar-lhe o cheque - que tinha alli na carteira e que o enchia de vergonha... Ella ergueu o rosto, todo molhado, murmurou com um grande esforço:

- Escuta-me!... Nem sei como hei de dizer... Oh, são tantas coisas, são tantas coisas!...

Tu não te vaes já embora, senta-te, escuta...

Carlos puxou uma cadeira, lentamente.

- Não, aqui ao pé de mim... Para eu ter mais coragem... Por quem és, tem pena, faze-me isso!

Elle cedeu á supplicação humilde e enternecedora dos seus olhos arrazados d'agua: e sentou-se ao outro canto do sofá, afastado d'ella, n'uma desconsolação infinita. Então, muito baixo, enrouquecida pelo chôro, sem o olhar, e como n'um confessionario - Maria começou a fallar do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando, entre grandes soluços que a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam enterrar nas mãos a face afflicta.

A culpa não fôra d'ella! não fôra d'ella! Elle devia ter perguntado áquelle homem que sabia toda a sua vida... Fôra sua mãi... Era horroroso dizel-o, mas fôra por causa d'ella que conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandez... E tinha vivido com elle quatro annos, como sua esposa, tão fiel, tão retirada de tudo e só occupada da sua casa, que elle ia casar com ella! Mas morrera na guerra com os allemães, na batalha de Saint-Privat. E ella ficára com Rosa, com a mãi já doente, sem recursos, depois de vender tudo... Ao principio trabalhára... Em Londres tinha procurado dar lições de piano... Tudo falhára, dois dias vivera sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com fome! com fome!

Ah, elle não podia perceber o que isto era!... Quasi fôra por caridade que as tinha repatriado para Paris... E ahi conhecera Castro Gomes. Era horrivel, mas que havia d'ella fazer! Estava perdida...

Lentamente escorregára do sofá, cahira aos pés de Carlos. E elle permanecia mmovel, mudo, com o coração rasgado por angustias differentes: era uma compaixão tremula por todas aquellas miserias soffridas, dôr de mãi, trabalho procurado, fome, que lh'a tornavam confusamente mais querida; e era o horror d'esse outro homem, o irlandez, que surgia agora, e que lh'a tornava de repente mais maculada...

Ella continuava fallando de Castro Gomes. Vivera tres annos com elle, honestamente, sem um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era estar quieta em casa. Elle é que a forçava a andar em ceias, em noitadas...

E Carlos não podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as mãos, que procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!...

- Oh não, não me mandes embora! gritou ella prendendo-se a elle anciosamente. Eu sei que não mereço nada! Sou uma desgraçada... Mas não tive coragem, meu amor! Tu és homem, não comprehendes estas coisas... Olha para mim! porque não olhas para mim? Um instante só, não voltes o rosto, tem pena de mim...

Não! elle não queria olhar. Temia aquellas lagrimas, o rosto cheio d'agonia. Ao calor do seio que arquejava sobre os seus joelhos, já tudo n'elle começava a oscillar, orgulhos, despeitos, dignidade, ciume... E então, sem saber, a seu pezar, as suas mãos apertaram as d'ella. Ella cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente: e anciosa implorava do fundo da sua miseria um instante de misericordia.

Oh, dize que me perdôas! Tu és tão bom! Uma palavra só... Dize só que não me odeias, e depois deixo-te ir... Mas dize primeiro... Olha ao menos para mim como d'antes, uma só vez!...

E eram agora os seus labios que procuravam os d'elle. Então a fraqueza em que sentia afundar-se todo o seu sêr encheu Carlos de cólera, contra si e contra ella. Sacudiu-a brutalmente, gritou:

- Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste, tu?

Largára-a, prostrada no chão. E de pé, deixava cahir sobre ella a sua queixa desesperada:

- É a tua mentira que nos separa, a tua horrivel mentira, a tua mentira sómente!

Ella ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma pallidez de desmaio.

- Mas eu queria dizer-t'o, murmurou muito baixo, muito quebrado diante d'elle, deixando cahir os braços. Eu queria dizer-t'o... Não te lembras, n'aquelle dia em que vieste tarde, quando eu fallei da casa de campo, e que tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu disse-te logo: «ha uma coisa que te quero contar...» Tu nem me deixaste acabar. Imaginavas o que era, que eu queria ser só tua, longe de tudo... E disseste então que haviamos d'ir, com Rosa, ser felizes para algum canto do mundo... Não te lembras?... Foi então que me veio uma tentação! Era não dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, annos depois, quando te tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua estima, confessar-te tudo e dizer-te: «agora, se queres, manda-me embora.» Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma tentação, não resisti... Se tu não fallasses em fugirmos, tinha-te dito tudo... Mas mal fallaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grande esperança, nem sei que! E além d'isso adiava aquella horrivel confissão! Emfim, nem posso explicar, era como o céo que se abria, via-me comtigo n'uma casa nossa... Foi uma tentação!... E depois era horrivel, no momento em que tu me querias tanto, ir dizer-te «não faças tudo isso por mim, olha que eu sou uma desgraçada, nem marido tenho...» Que te hei de explicar mais? Não me resignava a perder o teu respeito. Era tão bom ser assim estimada... Emfim foi um mal, foi um grande mal... E agora ahi está, vejo-me perdida, tudo acabou!

Atirou-se para o chão, como uma creatura vencida e finda, escondendo a face no sofá.

E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando bruscamente até junto d'ella, tinha só a mesma recriminação, a mentira, a mentira, pertinaz e de cada dia... Só os soluços d'ella lhe respondiam.

- Porque não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivaes, quando sabias que tu eras tudo para mim?...

Ella ergueu a cabeça fatigada:

- Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse d'outro modo... Via-te já a tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por ahi dentro de chapéo na cabeça, a perder a affeição á pequena, a querer pagar as despezas da casa... Depois tinha remorsos, ia adiando.

Dizia «hoje não, um dia só mais de felicidade, ámanhã será...» E assim ia indo! Emfim, nem eu sei, um horror!

Houve um silencio. E então Carlos sentiu á porta Niniche que queria entrar e que gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadellinha correu, pulou para o sofá, onde Maria permanecia soluçando, enrodilhando a um canto: procurava lamber-lhe as mãos, inquieta: depois ficou plantada junto d'ella, como a guarda-l'a, desconfiada, seguindo, com os seus vivos olhos d'azeviche, Carlos que recomeçára a passear sombriamente.

Um ai mais longo e mais triste de Maria fel-o parar. Esteve um momento olhando para aquella dôr humilhada... Todo abalado, com

os labios a tremer, murmurou:

- Mesmo que te pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora nunca mais? Ha esta mentira horrivel sempre entre nós a

separar-nos! Não teria um unico dia de confiança e de paz...

- Nunca te menti senão n'uma coisa, e por amor de ti! disse ella gravemente do fundo da sua prostração.

- Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te poderia

acreditar... Como havia de ser, se agora mesmo quasi que nem acredito no motivo das tuas lagrimas?

Uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente seccos rebrilharam, revoltados e largos, no marmore da sua

pallidez.

- Que queres tu dizer? Que estas lagrimas tem outro motivo, estas supplicas são fingidas? Que finjo tudo para te reter, para não te

perder, ter outro homem, agora que estou abandonada?...

Elle balbuciou:

Are sens