"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » 🌘 🌘 ,,Os Maias'' - de Eça de Queirós🌘 🌘

Add to favorite 🌘 🌘 ,,Os Maias'' - de Eça de Queirós🌘 🌘

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

- Já por acaso sucedeu a alguem coisa mais horrivel? exclamou por fim, cruzando violentamente os braços diante do Ega, que se abatera no sofá, assombrado. Pódes tu conceber um caso mais sordido? E bem mais burlesco? É para estalar o coração. E é para rebentar a rir. Estupendo! Ahi, nesse sofá, ahi onde tu estás, o homemzinho, muito amavel, de flôr ao peito, a dizer: «Olhe que aquella creatura não é minha mulher, é uma creatura que eu pago...» Comprehendes isto bem! Aquelle sujeito paga-a... Quanto é o beijo? Cem francos. Ahi estão cem francos... É de morrer!

E recomeçou no seu passeio, desvairado, desabafando mais, recontando tudo, sempre com as palavras do Castro Gomes, que elle deformava ainda n'uma brutalidade maior...

- Que te parece, Ega? Dize lá. Que fazias tu? É horrível, heim?

Ega, que limpava pensativamente o vidro do monoculo, hesitou, terminou por dizer que, considerando as coisas com superioridade, como homens do seu tempo e «do seu mundo», ellas não offereciam nem motivos de cólera, nem motivos de dôr...

- Então não comprehendes nada! gritou Carlos, não percebes o meu caso!

Sim, sim, Ega comprehendia claramente que era horrivel para um homem, no momento em que ia ligar com adoração o seu destino ao d'uma mulher, saber que outros a tinham tido a tanto por noite... Mas isso mesmo simplificava e amenisava as coisas. O que fôra um drama complicado tornava-se uma distracção bonançosa. Ficava Carlos, desde logo, alliviado do remorso de ter desorganisado uma familia: já não tinha de se exilar, a esconder o seu erro, n'um buraco florido da Italia; já o não prendia a honra para sempre a uma mulher a quem talvez não o prenderia para sempre o amor. Tudo isto, que diabo! Eram vantagens.

- E a dignidade d'ella! exclamou Carlos.

Sim, mas a diminuição de dignidade e pureza não era na verdade grande, porque antes da visita de Castro Gomes já ella era uma mulher que foge do seu marido - o que, sem mesmo usar termos austeros, nem é muito puro nem muito digno... Decerto, tudo isso era uma humilhação irritante - não superior todavia á d'um homem que tem uma Madona que contempla com religião, suppondo-a de Raphael, e que descobre um dia que a tela divina foi fabricada na Bahia por um sujeito chamado Castro Gomes! Mas o resultado intimo e social parecia-lhe ser este: Carlos até ahi tivera uma bella amante com inconvenientes, e agora tinha sem inconvenientes uma bella amante...

- O que tu deves fazer, meu caro Carlos...

- O que eu vou fazer é escrever-lhe uma carta, remettendo-lhe o preço de dois mezes que dormi com ella...

- Brutalidade romantica!... Isso já vem na Dama das Camelias... Sobretudo é não vêr com boa philosophia as nuances.

O outro atalhou, impaciente:

- Bem, Ega, não fallemos mais n'isso... Eu estou horrivelmente nervoso!... Até logo. Tu jantas em casa, não é verdade? Bem, até logo.

Sahia atirando a porta, quando Ega agora tranquillo, disse, erguendo-se muito lentamente do sofá:

- O homemzinho foi para lá.

Carlos voltou-se, com os olhos chammejantes:

- Foi para os Olivaes? Foi ter com ella?

Sim, pelo menos mandára a tipoia á quinta do Craft. Ega, para conhecer esse snr.

Castro Gomes, fôra metter-se no cubiculo do guarda-portão. E vira-o descer, accender um charuto... Era com effeito um d'esses rastaquouèros que, n'esse infeliz Paris que tudo tolera, veem ao Café de la Paix às duas horas para tomar a sua groseille, tesos e embrutecidos... E fôra o guarda-portão que lhe dissera que o sujeito parecia muito alegre e mandára o cocheiro bater para os Olivaes...

Carlos parecia aniquilado:

- Tudo isso é nojento!... No fim talvez até se entendam ambos... Estou como tu dizias aqui há tempos: «Cahiu-me a alma a uma latrina, preciso um banho por dentro!»

Ega murmurou melancolicamente:

- Essa necessidade de banhos moraes está-se tornando com effeito tão frequente!...

Devia haver na cidade um estabelecimento para elles.

Carlos, no seu quarto, passeava diante da mesa onde a folha branca de papel, em que ia escrever a Maria Eduarda, já tinha a data d'esse dia, depois - Minha senhora, n'uma letra que elle se esforçára por traçar firme e serena: - e não achava outra palavra. Estava

bem decidido a mandar-lhe um cheque de duzentas libras, paga esplendidamente ultrajante das semanas que passára no seu leito. Mas queria juntar duas linhas regeladas, impassiveis, que a ferissem mais que o dinheiro: não encontrava senão phrases de grande cólera, revelando um grande amor.

Olhava a folha branca: e a banal expressão Minha senhora dava-lhe uma saudade dilacerante por aquella a quem na vespera ainda dizia «minha adorada», pela mulher que se não chamava ainda Mac-Gren, que era perfeita, e que uma paixão indomavel, superior á razão, entontecera e vencera. E o seu amor por essa Maria Eduarda, nobre e amante, que se transformára na Mac-Gren, amigada e falsa, era agora maior infinitamente, desesperado por ser irrealisavel - como o que se tem por uma morta e que palpita mais ardente junto da frialdade da cova. Oh! se ella pudesse resurgir outra vez, limpa, clara, do lodo em que afundára, outra vez Maria Eduarda, com o seu casto bordado!... De que amor mais delicado a cercaria, para a compensar das affeições domesticas que ella deixasse de merecer! Que veneração maior lhe consagraria - para supprir o respeito que o mundo superficial e affectado lhe retirasse! E ella tinha tudo para reter amor e respeito - tinha a belleza, a graça, a intelligencia, a alegria, a maternidade, a bondade, um incomparavel gosto... E com todas estas qualidades dôces e fortes - era apenas uma intrujona! Mas porque? porque?

Porque entrára ella n'esta longa fraude, tramada dia a dia, mentindo em tudo, desde o pudor que fingia até ao nome que usava!

Apertava a cabeça entre as mãos, achava a vida intoleravel. Se ella mentia - onde havia então a verdade? Se ella o trahia assim, com aquelles olhos claros, o universo podia bem ser todo uma immensa traição muda. Punha-se um mólho de rosas n'um vaso, exhalava-se d'elle a peste! Caminhava-se para uma relva fresca, ella escondia um lamaçal! E para que, para que mentira ella? Se, desde o primeiro dia em que o vira, tremulo e rendido, a contemplar o seu bordado como se contempla uma acção de santidade - lhe tivesse dito que não era esposa do snr. Castro Gomes, mas só amante do snr. Castro Gomes - teria a sua paixão sido menos viva, menos profunda? Não era a estola do padre que dava belleza ao seu corpo e valor ás suas caricias... Para que fôra então essa mentira tenebrosa e descarada -

que lhe fazia suppôr agora que eram imposturas os seus mesmos beijos, imposturas os seus mesmos suspiros!... E com este longo embuste o levava a expatriar-se, dando a sua vida inteira por um corpo por que outros davam apenas um punhado de libras! E por esta mulher, tarifada ás horas como as caleches da Companhia, elle ia amarguarar a velhice do avô, estragar irreparavelmente o seu destino, cortar a sua livre acção de homem!

Mas porque? Porque fôra esta farça banal, arrastada por todos os palcos de opera comica, da cocotte que se finge senhora? Porque o fizera ella, com aquelle fallar honesto, o puro perfil e a doçura de mãi? Por interesse? Não. Castro Gomes era mais rico do que elle, mais largamente lhe podia satisfazer o appetite mundano de toilettes, de carruagens... Sentia ella que Castro Gomes a ia aabandonar, e queria ter ao lado aberta e prompta outra bolsa rica? Então mais simples teria sido dizer-lhe: «eu sou livre, gósto de ti, toma-me livremente, como eu me dou.» Não! Havia alli alguma coisa secreta, tortuosa, impenetravel... O que daria por a conhecer!

E então pouco a pouco foi surgindo n'elle o desejo de ir aos Olivaes... Sim, não lhe bastaria desforrar-se arrogantemente, atirando-lhe ao regaço um cheque embrulhado n'uma insolencia! O que precisava, para sua plena tranquillidade, era arrancar do fundo d'aquella turva alma o segredo d'aquella torpe farça... Só isso amansaria o seu incomparavel tormento. Queria entrar outra vez na tóca,

vêr como era aquella outra mulher que se chamava Mac-Gren, e ouvir as suas palavras. Oh!

iria sem violencia, sem recriminações, muito calmo, sorrindo! Só para que ella lhe dissesse qual fôra a razão d'aquella mentira tão laboriosa, tão vã... Só para lhe perguntar serenamente: «Minha rica senhora para quer foi toda esta intrujice?» E depois vêl-a chorar... Sim, tinha esta anciedade cheia d'amor de a vêr chorar. A agonia que elle sentira no salão côr de musgo do outono, emquanto o outro arrastava os rr, queria vêl-a repetida n'esse seio, onde elle atá ahi dormira tão dôcemente, esquecido de tudo, e que era bello, tão divinamente bello!...

Bruscamente, decidido, deu um puxão á campainha. Baptista appareceu todo abotoado na sua sobrecasaca, com um ar resoluto, como armado e prompto a ser util n'aquella crise que adivinhava...

- Baptista, corre ao hotel Central e pergunta se já entrou o snr. Castro Gomes!... Não, escuta... Põe-te á porta do Central, e espera até que entre aquelle sujeito que aqui esteve...

Não, é melhor perguntar!... Emfim, certifica-te de que o sujeito ou voltou ou está no hotel.

E apenas estejas bem certo d'isso, volta aqui, á desfilada, n'uma tipoia... Um batedor seguro, que é para me levar depois aos Olivaes!...

Immediatamente, dada esta ordem, serenou. Era já um allivio immenso não ter de escrever a carta, e achar palavras acerbas que a deviam dilacerar. Rasgou o papel devagar.

Depois fez o cheque de duzentas libras, ao portador. Elle mesmo lh'o levaria... Oh, decerto, não lh'o atirava romanticamente ao regaço... Deixal-o-hia sobre uma mesa, sobrescriptado a Madame Mac-Gren... E de repente sentiu uma compaixão por ella. Via-a já, abrindo o enveloppe com duas grandes lagrimas, lentas, caladas, a rolarem-lhe na face... E os seus proprios olhos se humedeceram.

N'esse momento Ega, de fóra, perguntou se era importuno.

- Entra! gritou.

E continuou passeando, calado, com as mãos nos bolsos: o outro, em silencio tambem, foi encostar-se á janella sobre o jardim.

- Preciso escrever ao avô a dizer-lhe que cheguei, murmurou Carlos por fim, parando junto da mesa.

- Dá-lhe recados meus.

Carlos sentára-se, tomára languidamente a penna: mas bem depressa a arremessou: cruzou as mãos por detraz da cabeça no espaldar da cadeira, cerrou os olhos, como exhausto.

- Sabes uma coisa que me parece certa? disse de repente o Ega da janella. Quem escreveu a carta anonyma ao Castro Gomes foi o Damaso!

Carlos olhou para elle:

- Achas?... Sim, talvez... Com effeito quem havia de ser?

- Não foi mais ninguem, menino. foi o Damaso!

Are sens