Então Sousa Netto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega esta pergunta grave: V. exc.ª pois é em favor da escravatura?
Ega declarou muito decididamente ao snr. Sousa Netto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo elle, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido, quem era sériamente temido... Por isso ninguem agora lograva
ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse licito dar vergastadas... Só houvera duas civilisações em que o homem conseguira viver com razoavel commodidade: a civilisação romana, e a civilisação especial dos plantadores da Nova Orleans. Porque? porque n'uma e n'outra existira a escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte!...
Durante um momento o snr. Sousa Netto ficou como desorganisado. Depois passou o guardanapo sobre os beiços, preparou-se, encarou o Ega:
- Então v. exc.ª n'essa idade, com a sua intelligencia, não acredita no Progresso?
- Eu não senhor.
O conde interveio, affavel e risonho:
- O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem razão, tem realmente razão, porque os faz brilhantes...
Estava-se servindo Jambon aux épinards. Durante um momento fallou-se de paradoxos.
Segundo o conde, quem os fazia tambem brilhantes e difficeis de sustentar, excessivamente difficeis, era o Barros, o ministro do reino...
- Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Netto.
- Sim, pujante, disse o conde.
Mas elle agora não fallava tanto do talento do Barros como parlamentar, como homem d'estado. Fallava do seu espirito de sociedade, do seu esprit...
- Ainda este inverno nós lhe ouvimos um paradoxo brilhante! Até foi em casa da snr.ª
D. Maria da Cunha... V. exc.ª não se lembra, snr. D. Maria? Esta minha desgraçada memoria! Ó Thereza, lembras-te d'aquelle paradoxo do Barros? Ora sobre que era, meu Deus?... Emfim, um paradoxo muito difficil de sustentar... Esta minha memoria!... Pois não te lembras, Thereza?
A condessa não se lembrava. E emquanto o conde ficava remexendo anciosamente, com a mão na testa, as suas recordações, - a senhora d'escarlate voltou a fallar de pretos, e de escudeiros pretos, e d'uma cozinheira preta que tivera uma tia d'ella, a tia Villar... Depois queixou-se amargamente dos criados modernos: desde que lhe morrera a Joanna, que estava em casa havia quinze annos, não sabia que fazer, andava como tonta, tinha só desgostos.
Em seis mezes já vira quatro caras novas. E umas desleixadas, umas pretenciosas, uma immoralidade!... Quasi lhe fugiu um suspiro do peito, e trincando desconsoladamente uma migalhinha de pão:
- Ó baroneza, ainda tens a Vicenta?
- Pois então não havia de ter a Vicenta?... Sempre a Vicenta... A snr.ª D. Vicenta, se faz favor.
A outra contemplou-a um instante, com inveja d'aquella felicidade.
- E é a Vicenta que te penteia?
Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada... Mas sempre caturra.
Agora andava com a mania de aprender francez. Já sabia verbos. Era de morrer, a Vicenta a dizer j'aime, tu aimes...
- E a senhora baroneza, acudiu o Ega, começou por lhe mandar ensinar os verbos mais necessarios.
Está claro, dizia a baroneza, que aquelle era o mais necessario. Mas na idade da Vicenta já de pouco lhe poderia servir!
- Ah! gritou de repente o conde, deixando quasi cahir o talher. Agora me lembro!
Tinha-se lembrado emfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros que os cães, quanto mais ensinados... Pois, não, não era isto!
- Esta minha desgraçada memoria!... E era sobre cães. Uma coisa brilhante, philosophica até!
E, por se fallar de cães, a baroneza lembrou-se do Tommy, o galgo da condessa; perguntou por Tommy. Já o não via ha que tempos, esse bravo Tommy! A condessa nem queria que se fallasse no Tommy, coitado! Tinham-lhe nascido umas coisas nos ouvidos, um horror... Mandára-o para o Instituto, lá morrera.
- Está deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha, inclinando-se para Carlos.
- Deliciosa.
E a baroneza, do lado, declarou tambem a galantine uma perfeição. Com um olhar ao escudeiro, a condessa fez servir de novo a galantine: e apressou-se a responder ao snr.
Sousa Netto, que, a proposito de cães, lhe estava fallando da Sociedade protectora dos animaes. O snr. Sousa Netto approvava-a, considerava-a como um progresso... E, segundo elle, não seria mesmo de mais que o governo lhe désse um subsidio.
- Que eu creio que ella vai prosperando... E merece-o, acredite a senhora condessa que o merece... Estudei essa questão, e de todas as sociedades que ultimamente se têm fundado entre nós, á imitação do que se faz lá fóra, como a Sociedade de Geographia e outras, a Protectora dos animaes parece-me decerto uma das mais uteis.
Voltou-se para o lado, para o Ega:
- V. exc.ª pertence?
- Á Sociedade protectora dos animaes?... Não senhor, pertenço a outra, á de Geographia. Sou dos protegidos.
A baroneza teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se extremamente sério: pertencia á Sociedade de Geographia, considerava-a um pilar do Estado, acreditava na sua missão civilisadora, detestava aquellas irreverencias. Mas a condessa e Carlos tinham rido tambem: - e de repente a frialdade que até ahi os conservára ao lado um do outro reservados, n'uma ceremonia affectada, pareceu dissipar-se ao calor d'esse riso trocado, no brilho dos dois olhares encontrando-se irresistivelmente. Servira-se o Champagne, ella tinha uma côrzinha no rosto. O seu pé, sem ella saber como, roçou pelo pé de Carlos; sorriram ainda outra vez; - e, como no resto da mesa se conversava sobre uns concertos classicos que ia haver no Price, Carlos perguntou-lhe, baixo, com uma reprehensão amavel:
- Que tolice foi essa da brazileira?... Quem lhe disse isso?
Ella confessou-lhe logo que fôra o Damaso... O Damaso viera contar-lhe o enthusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhãs inteiras que lá passava, todos os dias, á mesma hora... Emfim o Damaso fizera-lhe claramente entrevêr uma liaison.