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Desceram ao jardim, que lhe agradou tambem, quieto e burguez, com a sua cascatasinha chorando n'um rythmo dôce. Sentaram-se um instante sob o velho cedro, junto a uma mesa rustica de pedra, onde estavam entalhadas letras mal distinctas e uma data antiga; o chalrar das aves nos ramos pareceu a Maria mais dôce que o de todas as outras aves que ouvira; depois arranjou um ramo para levar como relíquia.

Mesmo em cabello foram vêr defronte as cocheiras: o guarda-portão ficou de boné na mão, embasbacado para aquella senhora tão linda, tão loira, a primeira que via entrar no Ramalhete! Maria acariciou os cavallos, e fez uma festa grata e mais longa á Tunante, que tantas vezes levára Carlos á rua de S. Francisco. Elle via n'estas simples coisas as graças incomparaveis d'uma esposa perfeita.

Recolheram pela escada particular de Carlos - que Maria achava «mysteriosa» com aquelles velludos grossos côr de cereja, forrando-a como um cofre, e abafando todo o rumor de saias. Carlos jurou que nunca alli passára outro vestido - a não ser o do Ega, uma vez, mascarado de varina.

Depois deixou-a no quarto, um momento para ir dar ordens ao Baptista: mas quando voltou encontrou-a a um canto do sofá, tão descahida, tão desanimada, que lhe arrebatou as mãos, cheio d'inquietação.

- Que tens, amor? Estás doente?

Ella ergueu lentamente os olhos que brilhavam n'uma nevoa de lagrimas.

Pensar que tu vaes deixar por mim esta linda casa, o teu conforto, a tua paz, os teus amigos... É uma tristeza, tenho remorsos!

Carlos ajoelhára ao seu lado, sorrindo dos seus escrupulos, chamando-lhe tonta, seccando-lhe n'um beijo as lagrimas que rolavam... Considerava-se ella então valendo menos que a cascata do jardim e alguns tapetes usados?...

- O que eu tenho pena é de te sacrificar tão pouco, minha querida Maria, quando tu sacrificas tanto!

Ella encolheu os hombros, amargamente.

- Eu!

Passou-lhe as mãos entre os cabellos, puxou-o brandamente para o seu seio - e dizia, baixo, como fallando ao seu proprio coração, calmando-lhe as incertezas e as duvidas:

- Não, com effeito, nada vale no mundo senão o nosso amor! Nada mais vale! Se elle é verdadeiro, se é profundo, tudo mais é vão, nada mais importa...

A sua voz morreu entre os beijos de Carlos, que a levava abraçada para o leito - onde tentas vezes desesperava d'ella como d'uma deusa intangivel.

Ás cinco horas pensaram em jantar. A mesa fôra posta n'uma saleta que Carlos quizera em tempo revestir de colxas de setim cor de perola e botão d'ouro. Mas não estava ainda arranjada; as paredes conservavam o seu papel verde-escuro; e Carlos puzera alli ultimamente o retrato de seu pai - uma teia banal, representando um moço pallido, de grandes olhos, com luvas de camurça amarella e um chicote na mão.

Era Baptista que os servia, já com um fato claro de viagem. A mesa, redonda e pequena, parecia uma cesta de flôres; o champagne gelava dentro dos baldes de prata; no aparador a travessa d'arroz dôce tinha as iniciaes de Maria.

Aquelles lindos cuidados fizeram-na sorrir, enternecida. Depois reparou no retrato de Pedro da Maia: e interressou-se, ficou a contemplar aquella face descórada, que o tempo fizera livida, e onde pareciam mais tristes os grandes olhos d'arabe, negros e languidos.

- Quem é? perguntou.

- É meu pai.

Ella examinou-o mais de perto, erguendo uma vela. Não achava que Carlos se parecesse com elle. E voltando-se muito séria, emquanto Carlos desarrolhava com veneração uma garrafa de velho Chambertin:

- Sabes tu com quem te pareces ás vezes?... É extraordinario, mas é verdade. Pareces-te com minha mãi!

Carlos riu, encantado d'uma parecença que os aproximava mais, e que o lisonjeava.

- Tens razão, disse ella, que a mamã era formosa... Pois é verdade, ha um não sei quê na testa, no nariz... Mas sobretudo certos geitos, uma maneira de sorrir... Outra maneira que tu tens de ficar assim um pouco vago, esquecido... Tenho pensado n'isto muitas vezes...

Baptista entrava com uma terrina de louça do Japão. E Carlos, alegremente, annunciou um jantar á portugueza. Mr. Antoine, o chef francez, fôra com o avô. Ficára a Michaela, outra cozinheira de casa, que elle achava magnifica, e que conservava a tradição da antiga cozinha freiratica do tempo do snr. D. João V.

- Assim, para começar, minha querida Maria, ahi tens tu um caldo de gallinha, como só se comia em Odivellas, na cella da madre Paula, em noites de noivado mystico...

E o jantar foi encantador. Quando Baptista se retirava, elles apertavam-se rapidamente a mão por cima das flôres. Nunca Carlos a achára tão linda, tão perfeita: os seus olhos pareciam-lhe irradiar uma ternura maior: na singela rosa que lhe ornava o peito via a superioridade do seu gosto. E o mesmo desejo invadiu-os a ambos, de ficarem alli eternamente, n'aquelle quarto de rapaz, com jantarinhos portuguezes á moda de D. João V, servidos pelo Baptista de jaquetão.

- Estou com uma vontade de perder o comboio! disse Carlos como implorando a sua approvação.

- Não, deves ir... é necessario não sermos egoistas... Sómente não te descuides, mandame todos os dias um grande telegramma... Que os telegraphos foram unicamente inventados para quem se ama e está longe, como dizia a mamã.

Então Carlos gracejou de novo sobre a sua parecença com a mãi d'ella. E baixando-se a remexer a garrafa de champagne dentro do gelo:

- É curioso não m'o teres dito antes... Tambem tu nunca me fallaste de tua mãi...

Um pouco de sangue roseou a face de Maria Eduarda. Oh, nunca fallára da mamã, porque nunca viera a proposito...

- De resto não havia coisas muito interessantes a contar, acrescentou. A mamã era uma senhora da ilha da Madeira, não tinha fortuna, casou...

- Casou em Paris?

- Não, casou na Madeira com um austriaco que fôra lá acompanhar um irmão tisico...

Era um homem muito distincto, viu a mamã, que era lindíssima, gostaram um do outro, et voilà...

Dissera isto sem erguer os olhos do prato, lentamente, cortando uma aza de frango.

- Mas então, exclamou Carlos, se teu pai era austriaco, meu amor, tu és tambem austriaca... És talvez uma d'essas viennenses que tu dizes que tem um tão grande encanto...

Sim, talvez, segundo essas coisas dos codigos, era austriaca. Mas nunca conhecera o pai, vivera sempre com a mamã, fallára sempre portuguez, considerava-se portugueza.

Nunca estivera na Austria, nem sabia mesmo allemão...

- Não tiveste irmãos?

- Sim, tive, uma irmãsinha que morreu em pequena... Mas não me lembra. Tenho em Paris o retrato d'ella... Bem linda!

N'esse momento em baixo, na calçada, uma carruagem, a trote largo, estacou. Carlos, surprehendido, correu á janella com o guardanapo na mão.

- É o Ega! exclamou. É aquelle velhaco que chega de Cintra!

Maria erguera-se, inquieta. E um momento, de pé, ambos se olharam, hesitando... Mas o Ega era como um irmão de Carlos. Elle esperava só que o Ega recolhesse de Cintra para o levar á Toca. Melhor seria que o encontro se désse alli, natural, franco e simples...

- Baptista! gritou Carlos, sem vacillar mais. Dize ao snr. Ega que estou a jantar, que entre para aqui.

Maria sentára-se, vermelha, dando um geito rapido aos ganchos do cabello, arranjado á pressa, um pouco desmanchado.

A porta abriu-se, - e o Ega parou, assombrado, intimidado, de chapéo branco, de guarda-sol branco, e com um embrulho de papel pardo na mão.

- Maria, disse Carlos, aqui tens emfim o meu grande amigo Ega.

E ao Ega disse simplesmente:

- Maria Eduarda.

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